Marcos Del Roio: O capital além do imperialismo
O capital além do imperialismo
Marcos Del Roio
Creio ser hoje uma necessidade impostergável, até pelas implicações políticas de monta que acarreta, questionar se as formulações dos refundadores do marxismo do início do século XX, particularmente no que tange à questão do imperialismo, permanecem válidas e em que medida. Importante lembrar que a referida refundação do marxismo, operada principalmente por Rosa Luxemburg e Lenin (como desde logo percebeu Lukacs), definiu-se basicamente em torno da questão do imperialismo e da cisão teórica com o social-reformismo (o chamado oportunismo). Cabe hoje perguntar se ainda persiste a fase imperialista do processo de acumulação do capital, sendo as mudanças evidenciadas nos últimos anos e décadas apenas de invólucro, não passando assim a questão de um cedimento diante da ofensiva ideológica da mesma forma capitalista. Ou pode-se dizer que as mudanças são de tal monta e tal qualidade a indicar o ingresso da contradição capitalista em processo numa nova e peculiar fase de seu desenvolvimento? É certo que essas poucas linhas que se seguem não poderão mais que levantar, e de modo muito sumário, problema de tal complexidade, servindo apenas para insistir em ser esse um dos desafios mais cruciais do marxismo contemporâneo.
I
O tema do imperialismo estava bastante presente na publicística de fins de século XIX, seja entre os agentes e propagandistas da expansão colonial, seja entre os críticos. Há um certo consenso de que o imperialismo tem algo de novo em relação aos impérios da antigüidade, ou mesmo aqueles dos albores da modernidade capitalista, instrumentos que foram de acumulação originária do capital. Os apologistas enfatizavam as virtualidades da grandeza nacional e a capacidade de apaziguar os conflitos sociais internos. Os críticos liberais – e logo também os social-reformistas – acentuavam as características que pareciam ser "desvios" na trajetória inelutável de paz, progresso social e institucionalização (liberal) democrática do Ocidente. O imperialismo seria então produto da ação de camadas sociais dissociadas do moderno processo produtivo, de camadas agrárias sobreviventes de um tempo pregresso, associados a indústria bélica. Tal era, por exemplo, a base do raciocínio de Kautski, para quem o imperialismo contrariava a "racionalidade" burguesa, a qual sugeriria a adoção de uma ordem pacífica e democrática regulamentada pelo mercado.
Uma visão radicalmente crítica do imperialismo foi sistematizada inicialmente por Rosa Luxemburg e, logo depois, por Lenin, ambos associando o imperialismo à guerra, em oposição à revolução socialista. Para a análise do imperialismo, Rosa parte da problemática posta por Marx da reprodução ampliada do capital. A acumulação é observada por dois diferentes versos: o primeiro se realiza nos espaços concretos de produção ampliada do valor ampliado (a fábrica, a mina e a empresa agrícola) e no mercado; o segundo ocorre sobre os espaços e formas sociais pré-capitalistas como a economia camponesa e artesanal gestada no feudalismo, na economia comunal oriental em suas variantes e na vasta zona colonial, exigindo a utilização da violência político-militar e gerando fortes tensões sociais, mais acentuadas nas zonas de "contato".
Em sentido amplo, o imperialismo é inerente à acumulação do capital, estando presente desde suas origens, ainda no seio do feudalismo. Para Rosa o que importa, porém, é deslindar a particularidade da acumulação do capital e do imperialismo na virada para o século XX, observando então como a indústria bélica havia se tornado uma demanda necessária da reprodução ampliada, tanto no que se refere ao investimento produtivo como instrumento de poder político. Um poder político voltado contra a concorrência imperialista, contra as classes subalternas e contra os povos submetidos. Mais que uma "catástrofe" econômica advinda dos limites da reprodução ampliada do capital, alcançados com o esgotamento das possíveis fontes de matéria-prima e zonas externas a serem engolfadas pela sanha do capital, Rosa supunha a revolução socialista como desdobramento de uma crise político-militar envolvendo toda a teia imperialista. Ao não levar na devida consideração as possibilidades de um significativo aumento na produtividade do capital, Rosa previa que o esgotamento do mercado externo deveria então provocar uma estagnação e saturação do mercado mundial capitalista.
Crítico radical da ordem do capital no início do século XX, tal como Rosa, Lenin reconhecia que o imperialismo era intrínseco ao capitalismo em todas as suas fases, assim também como existia já antes mesmo do capitalismo. O que efetivamente interessava a ele, no entanto, era diagnosticar a peculiaridade do imperialismo capitalista da sua época, buscando entender o processo de acumulação como totalidade sócio-histórica. Antes de mais nada, Lenin entende que o imperialismo preserva o conteúdo essencial do capitalismo da época concorrencial, confirmando as tendências gerais analisadas por Marx.
O fundamento econômico-social e a peculiaridade do imperialismo capitalista está na concentração da produção em grande unidades técnico-produtivas (grande indústria) que promovem a socialização do processo produtivo e a concentração, também, da força de trabalho assalariada. A dinâmica da acumulação do capital, porém, estimula a formação de monopólios que estrangulam a pequena empresa, realçando a questão da propriedade dos meios de produção da riqueza social. O monopólio concentra a riqueza social em proporção maior que a produção e a força de trabalho, pois que é produto da fusão do capital industrial produtivo com o capital bancário usuário. Além da concentração produtiva ocorre a concentração bancária, produto de uma especulação sem freios, que promove a fusão e a subordinação da indústria e do comércio. Assim, o monopólio deriva da dominação do capital financeiro, produto este da fusão do capital industrial com o capital bancário, fazendo com que ocorra uma diferenciação no seio da burguesia com a emergência de uma oligarquia financeira crescentemente parasitária.
A monopolização da produção capitalista gera uma massa excedente de capital que precisa ser exportado. Enquanto o capitalismo concorrencial exportava principalmente mercadorias maquinofaturadas em troca de matéria prima e bens agrícolas, na fase monopólica exporta-se técnica de produção e meios de financiamento para países atrasados, tendo em conta o óbvio motivo que o mercado dos países imperialistas concorrentes encontra-se virtualmente fechado. Na época que Lenin escreve, a divisão do mundo e do mercado mundial está concluída, e de maneira profundamente desigual, como é próprio da maneira do capital organizar a produção e os espaços. Isso fazia antever um acirramento da competição interimperialista que resultaria em guerras pela redivisão da riqueza acumulada e dos espaços coloniais, que servem de garantia de suprimento de matéria-prima.
O imperialismo, para as classes dominantes, é ainda uma forma de evitar a "guerra civil", pois aparece como escape das tensões sociais. Mas a verdade é que, além de uma diferenciação no seio da classe dominante com o aparecimento da oligarquia financeira, a fase imperialista da acumulação promove uma diferenciação na classe operária, com seus estratos superiores, adestrados para o trabalho "científico", sendo cooptados para a ordem do capital, com a concessão de benesses materiais e de circunscritos direitos de cidadania. É essa a base material do social-reformismo (o oportunismo) que se dissocia da sorte das grandes massas proletárias.
Assim, é também próprio da era imperialista a existência de duas tendências fundamentais no movimento operário, a reformista e a revolucionária. O imperialismo, ao mesmo tempo que divide social e ideologicamente o movimento operário e difunde o capitalismo pelos países agrários coloniais, dando corpo a dominação do capital financeiro, alimenta tendências a estagnação e ao "rentismo", estimulando o crescimento da ala revolucionária do movimento socialista e dando um novo sentido a questão nacional, que se ajusta às zonas conquistadas pelo imperialismo capitalista.
A compreensão – exposta de forma tão sucinta – que Lenin tinha do imperialismo estava longe de satisfazer o autor, mas foi essencial para dar respaldo teórico tanto à cisão com o reformismo quanto para estabelecer as balizas da revolução socialista internacional que estava prestes a eclodir em oposição à guerra imperialista. Lenin supunha, sem alimentar ilusões, que o capitalismo imperialista e de monopólio era já uma forma inicial de transição em direção a uma forma social superior – o socialismo – e que uma época mais ou menos longa de guerras imperialistas e de revoluções socialistas estava se iniciando, mas não esperava que a revolução ficasse circunscrita à atrasada Rússia. Embora Lenin tivesse estudado e refletido sobre o taylorismo, defendendo mesmo sua introdução na Rússia soviética, é provável que o entendesse como sendo uma necessidade passageira no primeiro momento da transição, quando o processo de produção pouco se diferenciaria do monopólio capitalista. (Talvez esteja aqui um dos maiores limites da teoria revolucionária da época imperialista, pouco capaz de aprofundar a crítica do processo produtivo do capital como fundamento da dominação política).
II
Um firme passo à frente no entendimento crítico da ordem social na fase imperialista, num momento de crise do capital mas também de refluxo do movimento socialista diante do desencadeamento de uma série de "revoluções passivas" (o americanismo, o fascismo,...), foi dado por Gramsci nas reflexões efetuadas nos anos 30, quando encontrava-se encarcerado. Gramsci retoma e aprofunda as reflexões lenineanas também no que diz respeito a própria materialidade do capital na fase imperialista (mesmo porque toda a obra teórica de Gramsci esta fincada, além da realidade italiana e ocidental, na universalidade proposta por Lenin, impondo-lhe a reflexão sobre a questão do partido, dos intelectuais, da hegemonia, etc.).
Apesar da violência da crise capitalista de 1929, Gramsci se detêm a perscrutar as fortes possibilidades de estabilização da ordem do capital por um tempo relativamente longo, em função do desencadeamento de "revoluções passivas" que poderiam cobrir toda uma época histórica. Tanto quanto Lenin, Gramsci elege o reformismo economicista como adversário no interior do movimento operário, mas procura discernir as causas profundas da derrota da revolução socialista e o vigor do reformismo nas potencialidades hegemônicas do capital monopolista. Nesse ponto, em certa medida, acaba contrastando a tese de Lenin do "apodrecimento" do capitalismo imperialista, assim como a idéia conexa de "decadência ideológica" da burguesia (idéia essa na qual Lukacs persistiu).
Gramsci percebeu o enorme potencial do padrão de acumulação presente no EUA e mesmo a possibilidade deste apresentar uma solução para a crise e os limites do capitalismo europeu. A energia do capital no EUA estava na ausência de camadas sociais parasitárias que na Europa existiam devido a sobreposição da herança feudal com o "rentismo" do capital especulativo. Por outro lado, com o fordismo, mais do que nunca, a hegemonia, ou seja dominação política e direção ético-cultural, nasce e se consolida na fábrica. A "racionalização" da produção e do processo de trabalho, fazendo uso da "organização científica", ampliou em muito a produtividade e o poder do capital que, em troca de altos salários que possibilitam o consumo e o lazer e alguns outros benefícios sociais, conseguiu a resignação de parte da classe operária, submetida a uma operação de recriação de seu perfil e de seu ser trabalhador. O fordismo provoca então um desdobramento da classe operária, entre uma camada superior privilegiada e uma massa marginalizada pelo próprio processo de inovação gerencial e técnica. Gramsci via então muito maiores as dificuldades para a conformação de uma corrente revolucionária no seio da classe operária, e a exigência de um longo período de acúmulo de forças e "guerra de posição".
Tanto as formulações de Taylor quanto as de Ford estavam enunciadas antes de 1914, tendo eles sistematizado idéias e práticas já presentes no processo produtivo do capital na fase inicial de gestação do imperialismo. Mas Lenin não poderia mais que ter intuído como a sua implementação seria parte constitutiva da fase imperialista da acumulação do capital. Tendo por pressuposto as idéias gerais de Lenin sobre o imperialismo, Gramsci sugeriu que o americanismo, o fordismo e a organização científico-racional do trabalho constituíam a forma da reprodução do capital numa época imperialista que supunha recomposta após a contenção da irrupção revolucionária socialista de 1917-1921. A crise capitalista dos anos 1929-1933 completou o quadro do padrão de acumulação quando o capital encarou a necessidade de uma intervenção reguladora do Estado tanto no processo de acumulação propriamente dito, quanto no controle da força de trabalho. Assim, os escritos de Lord Keynes completam a obra de Taylor e Ford na organização da hegemonia do capital confrontada com a ameaça socialista, materializada na existência da URSS e dos partidos comunistas.
O persistente conflito interimperialista e a dura resistência operária, tanto no EUA quanto na Europa e Japão, retardaram até os anos 50 o apogeu e a completa realização desse padrão de acumulação próprio da era imperialista. Nesse momento, o evolver da "guerra fria" havia já congelado o potencial antagônico presente na revolução de Outubro e nos partidos comunistas da Europa ocidental. Derrotada a opção corporativo-fascista, com enorme diversidade entre países e regiões, o padrão de acumulação fordista-taylorista articulou-se com um Estado assistencial de governo representativo que promoveu a normatização do conflito social dentro da ordem do capital. A reprodução da hegemonia burguesa dependia de um certo consenso em torno das regras do conflito social que permitisse a setores mais ou menos amplos da classe operária taylorizada ter acesso não só a bens de consumo de massa mas também a assistência social por parte do Estado. A hegemonia do capital articula numa totalidade sócio-histórica a reprodução ampliada e o consenso social materializado em instituições políticas representativas.
Para que esse padrão fosse viável, era imprescindível uma crescente produtividade do trabalho morto acumulado, sem o que o fundo fiscal do Estado que tornava possível as políticas públicas de assistência, se dissolveria. Como decorrência, houve uma relativa diminuição do parasitismo apontado por Lenin, e uma aceitação regulamentada da pressão operária, desde que confinada dentro dos limites do reformismo. Aliás, o apogeu do Estado assistencial da época imperialista representou também o apogeu do reformismo do movimento operário, que pode contabilizar alguns ganhos relativos palpáveis. Claro que a presença reforçada do socialismo de Estado, expandido da URSS para a Europa oriental e China, com as garantias sociais que apresentava e a ausência de propriedade privada dos grandes meios de produção, ofereceu um ulterior respaldo a pressão operária nos países imperialistas. Embora o socialismo de Estado fosse uma forma específica de acumulação não-capitalista do capital, realizando um "comunismo tosco" (no dizer de Marx), cumpriu um papel decisivo na contenção da sanha do capital e do imperialismo.
A difusão do capitalismo por vastas regiões do globo, produto da própria expansão imperialista, potencializou a configuração de novos Estados e nacionalidades, inseridos todos na lógica do capital (mesmo quando pretendendo oferecer uma via alternativa nacional-popular de cariz socialista). Apesar do pânico causado por algumas revoluções sociais nos espaços conquistados para o saque imperialista, a verdade é que nenhuma delas pode mais que renegociar os termos da sua inserção no mercado mundial do capital. A maioria dos países, no entanto, caiu nas garras de classes dominantes forjadas pela própria dominação imperialista e que aceitaram de bom grado o papel de sócios na exploração de seus povos. A exportação do capital excedente continuou oferecendo algumas técnicas de produção e circulação de mercadorias aos países dependentes em troca do controle das fontes de matéria-prima e do endividamento financeiro crescente. De todo modo (e essa é uma das contradições do capitalismo imperialista) alguns países, sem que se rompesse os laços de subalternidade, completaram sua revolução burguesa, dando luz a um particular capitalismo monopolista, como o caso exemplar do Brasil.
III
Em fins dos anos 60, assistiu-se a insurgência – pela garantia de direitos – dos novos sujeitos sociais gerados nas décadas de esplendor da dominação do capital imperialista, como as mulheres, os jovens e as etnias marginalizadas no processo produtivo do capital. Em concomitância, a força político-cultural acumulada pelo movimento operário em função da própria expansão do capital nos moldes fordistas e keynesianos, possibilitou um avanço significativo da pressão do trabalho vivo sobre o capital, de modo a ultrapassar os limites do tolerável (ainda que mantida nos contornos do reformismo). Os limites da produtividade do trabalho, dentro desse padrão de acumulação, estavam sendo alcançados junto com a crescente pressão operária que ameaçava transbordar a hegemonia burguesa e com a decorrente crise fiscal do Estado. Somados ao fortalecimento militar da URSS, a revolução nacional-popular no Vietnã, a pressão de zonas periféricas do sistema imperialista para renegociar sua inserção (países árabes, Índia, Brasil,...), obrigaram a que o capital desse início a um largo movimento ofensivo de reorganização da sua dominação.
A reordenação da hegemonia do capital passa pelo reforçamento do capital financeiro (com o ressurgimento da especulação) e pela desestruturação da classe operária e suas relações de solidariedade social (institucionalmente expressas no sindicato e partido de massa) no próprio processo de produção. É certo tratar-se então de uma decisão política do capital, tendo em vista desvencilhar-se da pressão operária, que além de trabalho e consumo passa a querer sempre mais acesso à cultura e o próprio governo da economia. A ofensiva do capital promove uma fundamental mudança na sua própria materialidade e também na forma da acumulação. Antes de mais nada, é desencadeado um processo de inovação gerencial e tecnológica com o objetivo de, a um só tempo, desarmar politicamente o movimento operário e resgatar a produtividade do capital: o "emagrecimento" da produção baseada na grande indústria articula ambos os objetivos. Esse processo inovativo é conduzido precisamente pelo capital financeiro, o setor mais fortalecido com a crise dos primeiros anos 70 e o maior beneficiário e receptor do serviço das impagáveis dívidas acumuladas pela zona periférica do sistema imperialista, contando com capital excedente a ser investido na produção de ciência e tecnologia.
A produção rígida, programada, mecânica e parcializada da grande indústria fordista taylorizada, conta com uma força de trabalho especializada e que deve trabalhar em silêncio e "escondida" atrás das máquinas, para não causar distúrbios ao processo produtivo; nesse caso, a comunicação e a informação aparecem apenas como justaposta e diacrônica. A revolução informacional, por sua vez, ambiciona um produção flexível, segundo a demanda do mercado e baseada em máquinas eletrônicas inteligentes e comunicantes, promovendo então uma sobreposição entre produção e comunicação, sendo essa uma mudança decisiva no ser do capital. A própria "grande indústria" vê-se substituída por uma fábrica "minimalista", sendo o verdadeiro poder transferido para as cadeias de distribuição de bens, pois são essas a determinar os fluxos, o tempo e a quantidade da produção. Há uma alteração no inteiro ciclo produtivo do capital e uma inversão na relação entre produção/consumo e oferta/demanda de modo a contestar a própria fórmula da "lei da Say".
De acordo com esse padrão, torna-se necessário gestar uma classe operária polivalente e comunicativa, parte de um processo produtivo que incorpora a subjetividade do trabalhador, que deve estar presente e visível em todos os momentos a fim de ser inteiramente subsumido à vontade do capital: a máquina que controla o operário se internaliza, apropriando-se de seu cérebro e desmaterializando os meios de produção. A produção de mais-valia escapa dos muros da grande indústria fordista e se estende do laboratório de pesquisa científica ao consumo, e a nova classe operária, diversificada ao extremo pela ação do capital, dá luz a esse setor capaz de articular imediatamente conhecimento científico e trabalho produtivo. Ao mesmo tempo, os grandes monopólios cercam-se de uma rede de pequenas empresas que se movem segundo seus desígnios, ajudando a fragmentar o mundo do trabalho e a flexibilizar a produção.
Então, no padrão de acumulação do capital que vem se gestando, decisiva é a propriedade, controle e gestão dos meios de produção do conhecimento científico, muito mais do que a propriedade dos meios materiais de produção (terra e máquinas), e no qual a matéria-prima é o saber e a inteligência, mais do que bens físicos e naturais. E é precisamente por estar sob controle monopolista do capital financeiro é que este é capaz de constituir-se não só em principal polo do processo de acumulação, mas também ser a matriz do capital cognitivo. O monopólio da informação permite que o capital financeiro leve a extremos sua natureza especulativa, transferindo capital-dinheiro de um ponto a outro do globo em questão de segundos, sempre em busca da maior valorização, sem que passe pelo processo produtivo. É assim também que o capital se "espiritualiza" e o trabalho vivo torna-se sempre mais supérfluo.
Mas o capital financeiro, sob forma de capital cognitivo, investe também na produção, ali onde a valorização é rápida e exponencial, como é o caso da indústria bélica e de bens de consumo de luxo (e mesmo no narcotráfico). Acontece que a indústria bélica e a indústria de bens de consumo diferenciado e sofisticado exige uma força de trabalho altamente qualificada e pede um mercado de consumo limitado e de alto poder de compra. Isso apenas reafirma o movimento do capital em direção a sua crescente dissociação do trabalho vivo, produzindo uma crescente massa de marginalizados do processo produtivo e a "servilização" daqueles que permanecem ligados à produção, em relação à empresa capitalista, que estabelece novas hierarquias nas relações de trabalho. A grande maioria da força de trabalho deverá reduzir-se ao trabalho temporário pouco qualificado ou a desocupação pura e simples, num processo de proletarização e marginalização de uma magnitude nunca antes vista. O salário passa a ser sempre mais uma questão individual e os direitos sociais dos trabalhadores pouco a pouco se esvanecem, perdendo significado. Com isso, ocorre um estímulo a criminalidade generalizada e um tendencial colapso da ordem jurídica do próprio capital.
A poupança de trabalhadores e a globalização das empresas monopolistas permite uma certa retomada do processo de valorização fundado na alta produtividade e na oferta mundial adequada a demandas locais, conseguindo assim que se controle a inflação de preços produzida pela crise do padrão fordista. Não há mais hoje qualquer canto da Terra que não esteja sob o domínio do capital, que se encontra mundializado na sua reprodução ampliada e na sua gestão por parte de poucos grupos monopolistas que interagem nas finanças, nas comunicações e na produção e apropriação privada de ciência e tecnologia, de informação e símbolos. A ofensiva do capital, visando reorganizar sua hegemonia, foi tão efetiva, que se imbricou com a crise histórica do socialismo de Estado, induzindo-o ao colapso interno e à incorporação ao império universal do Ocidente liberal.
A reordenação da hegemonia do capital tem implicações em todas as dimensões da vida social. A crise fiscal e administrativa do Estado deriva do esgotamento do padrão fordista imperialista de acumulação e da passagem para uma nova fase mundializada da acumulação, na qual o Estado torna-se extraterritorial, em função do movimento do capital. Esse novo Estado que se gesta se desimcumbe da garantia de direitos sociais e das políticas públicas de assistência, em favor de uma nova "sociedade civil" formada por ONGs, que assume parcialmente as funções públicas do Estado, aliviando a crise fiscal e legitimando as ideologias neo-liberais. Essa reconstrução neo-liberal do Estado se articula e é facilitada pelas alterações de fundo no processo de reprodução do capital, que esfarela os sujeitos sociais coletivos formados durante a época fordista, antes de tudo o classe operária taylorizada (ainda que essa subsista de forma numerosa em várias regiões do mundo). Com isso há também uma crise da representação política dos interesses, principalmente das classes subalternas. Por outro lado o Estado reforça sempre mais suas instâncias coercitivas, aumentando assim as analogias formais com o Estado liberal original. No entanto, o Estado neo-liberal, pelo contrário, não só é extraterritorial como se antepõe à formação de identidades coletivas de caráter classista ou nacional.
Assim, os objetivos da ofensiva do capital, nesse final de século, foram parcialmente atingidos, com o resgate (ainda que limitado e de pouco fôlego), do processo de valorização, e a indução da crise do movimento operário (e também do socialismo de Estado). As instituições e a cultura do movimento operário em todas sua vertentes vivem uma crise sem precedentes, mas, diferentemente do que se diz com irritante insistência, a crise afeta de maneira mais cabal ao reformismo, e isso por dois motivos: tem sido por décadas a tendência predominante e acomodada ao padrão fordista imperialista, e depois porque a reorganização da hegemonia do capital lhe diminuiu ao extremo as possibilidades. As tendências comunistas, por seu turno, não conseguiram propor uma alternativa com potencial hegemônico, em parte por ter sua cultura política acoplada ao socialismo de Estado, ele mesmo incapaz de consolidar uma alternativa democrático-socialista.
IV
É o momento de se voltar às questões formuladas no início dessa exposição, oferecendo algumas conclusões incertas e muito provisórias. Se é verdade que está se gestando uma nova fase do desenvolvimento histórico da acumulação de capital, essa é produto da vitória do capital financeiro imperialista sobre o movimento operário e sobre o socialismo de Estado, possibilitando o ingresso num novo padrão de acumulação que, no entanto, agrava sobremaneira as contradições próprias do ser do capital e, por ora, não resolveu o problema das baixas taxas de valorização ampliada. Nesse caso, estaríamos ingressando num fase peculiar do processo de acumulação diferenciado do capitalismo imperialista de monopólios analisado por Rosa Luxemburg e Lenin.
Como a fase imperialista preserva e aprofunda as contradições gerais do processo capitalista, presentes já na fase concorrencial e desvendadas por Marx, a fase que está em gestação também preserva e coloca num novo patamar as contradições emersas no tempo histórico anterior. A questão de como rotular essa nova e peculiar fase da contradição em processo é evidentemente de pouca relevância, mas vem se consolidando as expressões "capitalismo globalizado" ou "globalização" (a partir da publicística controlada pelo capital) ou ainda "capitalismo cognitivo" (como sugerem alguns estudiosos marxistas como André Tosel ou Lorenzo Cillàrio), para enfatizar dois aspectos distintivos dessa nova época da contradição em processo. De uma maneira mais simples, François Chesnais, enfatizando o aspecto da crescente financeirização do capital e de seus fluxos ao redor do planeta, prefere a expressão "mundialização do capital".
O capital financeiro deu origem aos monopólios e á época imperialista no final do século XIX, e nesse final de século XX, a própria massa de capital acumulado financeiramente possibilitou o aparecimento do capital cognitivo como possível força distintiva do novo padrão de acumulação. O monopólio dos grandes bancos, numa escala muito maior, continua existindo, mas a grande indústria, analisada já por Marx, e que predominou em toda época fordista imperialista está em relativo declínio, sendo substituída por uma fábrica emagrecida e alongada, que gera um trabalhador coletivo com um novo perfil e que não tende para um crescimento numérico indefinido. A contradição inter-capitais, que no início do século ocorria na disputa entre monopólios, na sua maioria "nacionais", e que explodia em conflitos entre diversos imperialismos militarizados, não mais se manifesta dessa maneira. É por meio da desterritorialização e da transnacionalização que o processo de monopolização tem avançado.
O conflito inter-capitais permanece sendo sempre mais feroz, mas a existência de organismos supranacionais do capital (Fundo Monetário Internacional, Banco Mundial e Organização Mundial do Comércio), mostra os esforços para se garantir a sincronização do ciclo de acumulação do capital entre as zonas que compõem a Tríade dominante (EUA-Europa germanizada-Oriente nipônico), transferindo as manifestações mais violentas de crise para as regiões periféricas e subalternas do império universal do Ocidente liberal. A existência de uma força militar única (a OTAN), que serve como polícia da ordem global do capital, é outro elemento a indicar uma mudança formal indiscutível.
A chamada "crise asiática", lida como uma "crise financeira", e que redimensionou significativamente o peso e o papel do Japão, é uma manifestação do agravamento da crise do capital. Até por isso, muito ao contrário de estarmos nos aproximando de uma ordem estável ou pacífica, a importância da indústria bélica exige – fundamental no resgate das taxas de acumulação – que novas armas sejam sempre testadas (como nas guerras do Iraque ou da Iugoslávia), que a violência ressentida da crescente massa de marginalizados sem identidade sociocultural e sem ocupação, tornados supérfluos para o capital, seja mantida sob controle, numa guerra civil mundial de baixa intensidade. De modo algum pode tampouco ser descartada a possibilidade de num futuro imperscrutável apresentar-se o risco de um conflito bélico de proporções entre os componentes da Tríade ou com algum poder emergente alternativo, como a China.
A repartição colonial de amplos territórios, a fim de garantir mercados e matéria-prima, é o aspecto que mais visivelmente perdeu sentido. Há espaços soltos ao abandono pois que nada tem a oferecer no padrão de acumulação que ora se gesta, a não ser talvez algum lucro para traficantes de armas ou drogas, como é o caso dos Balcãs, da África central e de partes da América meridional. A pretendida liberalização geral e a entrega do setor público dos Estados caudatários da Tríade, permite a colonização dos mercados pelos grandes monopólios globais em disputa, mas a química fina tende a prescindir sempre mais de matéria-prima e de recursos naturais que não sirvam para acentuar o monopólio da propriedade privada do conhecimento.
Nesse cenário, a exportação de capital também tem outro conteúdo, com os créditos servindo não mais para importar meios de produção, mas para financiar o acesso ao saber incorporado aos bens e serviços gerados no interior da Tríade. Além disso, alguns países podem servir de reservatório para o capital financeiro, até que apareçam oportunidades melhores de valorização especulativa. Também nesse novo patamar de acumulação do capital, a contradição cidade/campo, tão importante ainda na época fordista/imperialista, tende a se dissolver com a urbanização generalizada promovida pelas comunicações, pelo consumo e pela produção sintética de alimentos. Assim, o conteúdo e o significado econômico-político da questão da terra sofre alterações profundas, exigindo uma releitura que transcenda a fórmula política da aliança operário-camponesa.
Tanto Rosa quanto Lenin notaram que foi a configuração do imperialismo a possibilitar a divisão do movimento operário socialista em duas vertentes fundamentais, aspecto esse também aprofundado por Gramsci posteriormente na análise do fordismo. A passagem para uma época de desenvolvimento capitalista com suas peculiaridades próprias como a que estamos vivendo, obriga a encarar a crise do movimento operário e de suas vertentes, as quais eram constitutivas da era fordista imperialista. Nos últimos anos é bastante visível a crise das organizações sindicais e dos partidos políticos de trabalhadores que tem observado a erosão no número de aderentes e a perda de eficácia de formas de luta que possibilitaram exercer pressão sobre o capital e conquistar certos direitos. Hoje, o sindicalismo mal consegue defender-se perante o ataque do capital, e os partidos surgidos do movimento operário procuram mais adequar-se a essa nova ordem, incorporando o liberalismo, do que resistir expressando-se como instrumento político cultural do antagonismo social.
Um novo movimento operário só pode ser criado tendo por fundamento as contradições específicas da atual fase do capital. O seu núcleo duro, por assim dizer, só pode ser a classe operária intelectualizada que manipula conhecimento científico, símbolos e palavras, mas que é parte de um universo mais amplo de um trabalho comunicativo que articula todo o circuito reprodutivo do capital, incluindo atividades inovativas e herdadas da história e das fases pregressas da contradição em processo. No momento, porém, esse setor procede a organização da produção segundo os desígnios do capital, pressionado pela sua posição no processo produtivo e seduzido que está por salários astronômicos, possibilitados pelas vantagens comparativas produzidas pelo desenvolvimento desigual e combinado da ordem capitalista globalizada.
Esse setor do mundo do trabalho só pode tomar consciência da sua contradição antagônica com o capital na medida que se aproxime de uma aliança político-cultural com os trabalhadores autônomos da produção informatizada que, por sua vez, tem que superar sua postura tendencialmente individualista. Esses setores do mundo do trabalho, gerados nessa nova fase do capital, deverão ainda ampliar as alianças para o mundo do trabalho assalariado da época fordista-keynesiana. Esse setor do mundo do trabalho cresce em número em várias regiões subalternas do império universal, mas submetidas a salários e condições de vida muito baixas, além de desprovido de direitos, enquanto que nos países mais avançados assiste-se um claro refluxo para formas de ação política defensivas de caráter "neo-corporativistas". Soma-se a esses setores uma crescente massa de trabalhadores precários e temporários.
Apenas os conflitos de interesse que opõem esses setores do mundo do trabalho é que possibilita a manutenção do império universal do Ocidente liberal, mas sua superação não é tarefa de pouca monta e nem será resolvida pelo mero desenvolvimento das forças produtivas, já que esse tende a fragmentar e contrapor o mundo do trabalho e não unifica-lo como um gigantesco trabalhador coletivo dotado do conhecimento que move o ciclo reprodutivo do capital (como sugeria a análise de Marx). A constituição desse novo e gigantesco proletariado em classe é a única possibilidade de impedir que o capital se transforme no sujeito único da história e que coloque a sobrevivência da humanidade em risco, pelo uso de armas sofisticadas e pelo agravamento das condições ambientais e sanitárias.
Mas a recriação política do movimento operário (em termos inteiramente novos, enfatize-se) e a reproposição da revolução socialista (e do comunismo) dependem, em grande medida, da capacidade da cultura marxista de elaborar uma teoria que resgate, na prática, o senso de humana comunidade e que se transforme em força material capaz de superar o atual estado de coisas. Este está identificado num capitalismo cognitivo globalizado, hegemonizado pelos interesses da oligarquia financeira, no qual o imperialismo continua evidentemente existindo com toda sua truculência, tendo mesmo atingido o estágio de um império universal conduzido pela dinâmica do capital, almejado desde há muitos séculos pelo Ocidente.
No entanto, como se procurou mostrar, o imperialismo não pode mais ser visto como o elemento delimitativo do conteúdo e da peculiaridade da atual fase do processo de acumulação do capital, obrigando que sejam extraídas as devidas conclusões políticas. Dentre essa conclusões, deve ser destacada a necessidade de se construir uma ampla aliança do mundo do trabalho que extrapole as fronteiras nacionais e englobe também os trabalhadores dos Estados imperialistas originais, haja vista não mais ser possível o "social-imperialismo" que alimentava as condições de vida da classe operária desses países e alimentava a ideologia reformista. Essa perspectiva deve confluir, num paradoxo apenas aparente, com outra que indica a necessidade de recomposição do Estado nacional democrático, não se tratando, porém, de um mero resgate do Estado como forma de inserção no mercado mundial, mas sim como necessária instância mediadora no período de transição, a fim de que possa construir novas identidades e que se erijam andaimes na luta contra o capital, sempre na forma de espaços públicos socialista-libertários.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
- CHESNAIS, François – A mundialização do capital, S. Paulo, Xamã editora, 1996.
CILLARIO, Lorenzo et alli – Trasformazione e Persistenza, Milano, Franco Angeli, 1990.
DEL ROIO, Marcos – O Império Universal e seus Antípodas: a ocidentalização do mundo, S. Paulo, Ícone Editora, 1998.
GRAMSCI, Antonio – Maquaivel, a Política e o Estado Moderno, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1967.
LENIN, Vladimir – Imperialismo Fase Superior do Capitalismo, S. Paulo, Hucitec.
LUXEMBURG, Rosa – A Acumulação do Capital, S. Paulo, Abril Cultural (Os Economistas).
TOSEL, André – Études sur Marx (et Engels), Paris, Ed. Kimé, 1996.
Marcos Del Roio (delroio@mhd.org) é professor de Ciência Política da FFC-Unesp (Marília) e presidente do Instituto Astrojildo Pereira.