Os Direitos Humanos na Perspectiva de Marx e Engels, de José Damião de Lima Trindade
Prefácio
O livro de José Damião de Lima Trindade, Os direitos humanos na perspectiva de Marx e Engels – emancipação política e emancipação humana, já pode ser considerado um dos grandes textos tanto do pensamento jurídico quanto do marxismo. Sua confecção reflete a história de seu autor, um intelectual e homem público cujo pensamento e ação sempre se orientaram às perspectivas sociais transformadoras.
O tema dos direitos humanos não foi desconhecido a Marx. Ainda jovem, saído que era de uma formação jurídica, pôs-se a fazer um balanço crítico dos direitos humanos, da sua universalidade e do seu reputado progressismo. É no contexto geral de sua obra, no entanto, até chegar a O capital, que Marx inscreve o destino dos direitos humanos na própria lógica do direito, correlato que é, como forma jurídica, da forma mercantil. Enquanto o pensamento tradicional situava o problema do direito no direito, Marx, brilhantemente, fura tal cerco reducionista e inscreve o direito na totalidade, nas estruturas sociais e históricas do capitalismo.
José Damião de Lima Trindade, para fazer a sistematização da reflexão de Marx e de Engels sobre os direitos humanos, começa esta sua obra desnudando o panorama geral do tema dos direitos humanos no século XVIII e no século XIX. Trata-se de uma investida de fôlego do autor, que à questão histórica já havia dedicado o seu importante livro História social dos direitos humanos. É a partir do pano de fundo histórico que se revela o início do pensamento marxiano, o contexto do jovem Marx e o seu posterior aprofundamento das reflexões a respeito da natureza específica do direito no capitalismo.
Há uma contradição filosófica insolúvel entre a visão tradicional e estabelecida sobre os direitos humanos e a perspectiva marxista. Enquanto uma parte do isolamento individualista do detentor da propriedade privada, pensando em categorias eternas e invariantes, Marx parte da história, do todo, do conflito de classes. Além disso, conforme vai se desnudando em O capital e em outras obras – e o mesmo com Engels, vide seu opúsculo sobre O socialismo jurídico –, não se trata apenas de uma distinção quanto ao método de apreensão do todo. A questão dos direitos humanos, para o marxismo, revela, mais que o humano, o direito. A manutenção da lógica jurídica é a afirmação da própria mercadoria, da circulação, da atomização, da relação contratual de exploração entre classes.
Mas claro está que a conquista dos direitos humanos, o arrancar dos direitos sociais, é um processo de luta. Trindade expõe com vigor a concepção da importância do que se conseguiu obter juridicamente a partir do combate de classe, na medida em que, embora a forma jurídica já se encontre estabelecida justamente para dar meio à exploração capitalista, seus contornos que venham a majorar ou minorar direitos humanos e sociais são conquistas arrancadas à força pelos explorados. A história dessa luta deve ser preservada e respeitada.
Ocorre que, dialeticamente, as conquistas sociais alcançadas juridicamente no capitalismo são tendencialmente conservadoras. Adaptam-se ao modo de produção e nele se inserem numa lógica de distensão e aumento apenas quantitativo de ganhos. Movimentos de luta contra o capital, de minorias, sindicatos, trabalhadores e mesmo partidos políticos, quando alcançam seus resultados ou se encontram no poder estatal, tendem a um conservadorismo que reforça os vínculos da reprodução do capital.
Em toda a tensão histórica da luta de classes, os direitos humanos se veem em processos de obtenção de ganhos e de perda de potencial, como é o caso dos tempos neoliberais. Trindade afirma, em sua obra, a importância do horizonte contido nos temas dos direitos sociais, das garantias da pessoa e mesmo nas questões da ecologia. Violações sistemáticas ainda se dão em todos esses campos, negando até mesmo aquilo que as sociedades capitalistas formalmente já afirmam.
A partir da sistematização da obra de Marx e Engels, Trindade aponta, na questão dos direitos humanos, para a crítica profunda e consequente da sua limitação, até hoje, aos problemas do indivíduo burguês – direitos civis e políticos – e a sólida instituição da garantia jurídica da propriedade privada, a qual se revela como cidadela indevassável do capitalismo. A necessidade de se afirmar a humanidade dos homens, e, para isso, não se tornar refém do jogo inexpugnável da propriedade privada, empreendendo a superação histórica dos direitos humanos, é extraída, acima de tudo, da própria lógica do direito: Trindade, de ponta a ponta de sua obra, bem esclarece que, a partir de Marx e Engels, a forma jurídica é a forma do capital.
José Damião de Lima Trindade é um dos mais notáveis juristas e intelectuais brasileiros. Ainda bem jovem, ao tempo de sua formação na Faculdade de Direito do Largo São Francisco – USP – foi um batalhador da resistência à infâmia da ditadura militar brasileira, tendo enfrentado situações extremas. Procurador do Estado de São Paulo, participante ativo de movimentos sociais, palestrante, autor de livros, artigos e textos de referência, sua bela história o enobrece e muito orgulha o povo brasileiro. Trata-se de um jurista e intelectual do povo.
Tive a honra muito grande de orientar a dissertação de mestrado de José Damião de Lima Trindade na pós-graduação em Direito político e econômico da Universidade Presbiteriana Mackenzie, na qual um núcleo de juristas tem se aglutinado para pesquisas no campo do marxismo jurídico, extraindo, com pioneirismo e coesão de grupo, as consequências da relação entre economia, política e cidadania pelo ângulo da filosofia crítica. Presidi a banca de defesa de sua dissertação, que contou com as ilustres participações dos Profs. Drs. Gilberto Bercovici e Alessandro Octaviani, ilustres pensadores críticos do Direito brasileiro. A dissertação de Trindade, aprovada unanimemente com nota máxima, fazendo jus a todas as distinções da tradição universitária, deu base ao presente livro.
Este livro, Os direitos humanos na perspectiva de Marx e Engels, é obra de vulto. E é seu autor, José Damião de Lima Trindade, notável jurista e filósofo do Direito.
Prof. Dr. Alysson Leandro Mascaro
Doutor e Livre-docente em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela USP, é Professor da Faculdade de Direito da USP (Largo São Francisco). Na Universidade Presbiteriana Mackenzie, é Professor e Orientador de Mestrado e Doutorado, no Programa de Pós-Graduação em Direito Político e Econômico. Advogado e parecerista, em São Paulo. Membro da Comissão de Ensino Jurídico da OAB/SP. Autor, dentre outros, de Utopia e Direito: Ernst Bloch e a ontologia jurídica da utopia (Ed. Quartier Latin).
Introdução
Em que termos pode-se situar, contemporaneamente, a relação entre o marxismo e os direitos humanos?
Duas visões podem ser descartadas, desde logo. A primeira, a vulgata stalinista do marxismo, porque se limitou a empobrecer e maltratar o debate, simplesmente relegando o “assunto” dos direitos humanos ao sótão dos trastes imprestáveis da burguesia. A segunda visão também pode ser desconsiderada, porque não passa de uma vulgarização ideológica de direita: limita-se a proclamar que “direitos humanos e marxismo são incompatíveis”, platitude que nada explica, embora, à força da repetição, haja ingressado em um senso comum que, precisamente por haver se tornado “comum”, não sente mais a responsabilidade de se justificar.
Mas há um terceiro modo de se ver essa relação que vem ganhando respeitabilidade: trata-se da abordagem que sustenta, com estas ou com outras palavras, que uma compreensão mais apropriada e atual do socialismo deve concebê-lo como a ampliação, o aprofundamento e a universalização dos direitos humanos. No limite, socialismo e direitos humanos reduzir-se-iam um ao outro. Os professores Manuel Atienza e Juan Ruiz Manero, catedráticos de Filosofia do Direito da Universidade de Alicante (Espanha), dois porta-vozes eminentes desse enfoque, chegam a avaliar que:
Esta dirección de pensamiento que propugna la necessaria conexión del socialismo como el desarrollo y profundización de los derechos humanos del liberalismo, es hoy francamente dominante en el pensamiento marxista; al menos, en el marxismo de los países occidentales avanzados (1).Não há como deixar de se apreender nessa abordagem o retorno a alguma sugestão de socialismo evolucionário, seja ou não referenciado em Eduard Bernstein ou em outros formuladores. Só por isso, já se colocaria na ordem do dia a necessidade de aclarar-se a relação entre marxismo e direitos humanos.
Mas há outro fator – este, de natureza urgentemente prática – que exige o esclarecimento dessa relação. Referimo-nos ao processo atual de crise tendencial dos direitos humanos em suas várias dimensões. Desde, no mínimo, a década de 1980, os direitos econômicos, sociais e culturais dos trabalhadores, malgrado as contratendências localizadas e desuniformes (2), ingressaram em movimento de estagnação e/ou retrocesso em escala internacional. Aliviado da pressão operária, da ameaça de novas revoluções socialistas e da bipolaridade com a União Soviética, o capital busca recuperar o que fora forçado a ceder aos trabalhadores durante a maior parte do século XX. Justapondo-se a essa tendência à regressão social, as potências centrais, além das costumeiras agressões militares a nações frágeis, passaram a perpetrar, desde o início do século XXI, sob o mote da autodefesa do Estado – e sob a complacência da ONU – persistentes violações às garantias individuais (ressurgência dos campos de concentração, da tortura “legalizada” e/ou clandestina, dos assassinatos de inimigos políticos etc.). Conquistas seculares dos trabalhadores, e outras conquistas civilizatórias, entram em risco. Por fim, até o elementaríssimo direito humano a um planeta sadio resvala em um plano inclinado rumo a algum apocalipse ambiental e climático, empurrado pela lógica de acumulação obsessiva e destrutiva do capital.
Portanto, além do acicate conceitual, ganha atualidade diretamente política a demanda de estabelecer-se perfeitamente a relação teórica entre marxismo e direitos humanos – para tornar clara a relação prática que pode ser estabelecida entre ambos.
Essa investigação demanda, antes de tudo, o retorno às origens dessa relação: por um lado, o resgate das concepções jusfilosóficas dos direitos humanos e da existência social concreta que vieram a adquirir; por outro lado, a recuperação da reflexão marxiana-engelsiana sobre ambas as dimensões. Estaremos, então, em condições de situar como essa relação pode expressar-se contemporaneamente.
Nessa empreitada, surge logo a constatação de que o direito “ocupa posição muito secundária nas pesquisas teóricas de Marx” (3). Essa subalternidade não chega a ser inesperada: Karl Marx, assim como Friedrich Engels, empenhou-se, sobretudo, em desvendar a formação do modo de produção capitalista, as estruturas objetivas e subjetivas de sua reprodução social, as leis tendenciais do movimento histórico do capital e as possibilidades concretas de sua superação. A reflexão sobre o direito integrou uma parte dessa reflexão muito mais abrangente.
Todavia, se o direito – consequentemente, os direitos humanos – não esteve no centro das atenções de Marx e Engels, isto está longe de significar que o houvessem tomado por desimportante. Ao contrário, a investigação de ambos culminou por situar o direito, em síntese, como componente necessário da instância superestrutural da sociedade fundada na divisão do trabalho para a produção de mercadorias – portanto, como uma forma social e histórica, não perene nem eterna –, instância dotada de uma autonomia relativa que opera em uma interrelação complexa com a base econômica de cada formação social. Trata-se de uma construção teórica que está longe de ser “simples”, mesmo porque sua adequada apreensão demandará, necessariamente, a recuperação das concepções marxiana-engelsianas que lhes dão fundamento: as concepções desses dois autores a respeito do homem, de consciência, de História, de sociedade, de Estado, de relações sociais, da dinâmica das classes sociais, bem como das interações recíprocas entre essas várias dimensões. Recuperar esse universo conceitual fundante, ao menos em suas linhas estruturais, constitui, portanto, condição necessária para, então, chegar-se a uma compreensão adequada da evolução da postura de Marx e Engels frente ao direito e aos direitos humanos.
Ademais, a temática do direito e dos direitos humanos, salvo em poucos textos desses autores, emerge aos poucos, distribuída por algumas milhares de páginas que produziram no curso de quase quatro décadas de formação de seu pensamento, o que torna necessária, portanto, uma viagem paciente ao longo do itinerário intelectual de ambos, à busca de pepitas de compreensão.
A presente investigação centrar-se-á nas elaborações teóricas de Marx e Engels, uma vez que foi a partir do campo conceitual originário por eles inaugurado que viriam a ganhar sentido os desdobramentos teóricos e as polêmicas que outros pensadores marxistas depois ensejariam. Com esse propósito, adotaremos por método muito mais a visita direta aos escritos desses dois autores do que às suas leituras – embora, por vezes, também venha a ser útil enriquecer a investigação com preciosas percepções de bons comentadores.
Por fim, em proveito da compreensão das circunstâncias que, em certos casos, favoreceram ou até tornaram necessário a Marx e Engels engendrar conceitos novos ou dar desenvolvimentos novos a conceitos com que já operavam, buscaremos, sempre que se afigurar recomendável, contextualizar a conjuntura social e política em que cada texto foi produzido – mas sem pretensão historiográfica. Podemos, assim, dar início à nossa caminhada.
Notas:
(1) ATIENZA, Manuel, e MANERO, Juan Ruiz. Marxismo y Filosofia del Derecho. Cidade do México: Ediciones Coyoacán, 2004, p. 30.
(2) O movimento bolivariano, a insurgência zapatista, a emergência política indígena nos países andinos, o movimento “alteromundista”, as políticas sociais “compensatórias” de alguns governos etc.
(3) ENGELS, Friedrich, e KAUTSKY, Karl. O socialismo jurídico. São Paulo: Editora Ensaio, 1991, p. 48.
Palavras-chave: Direito, direitos humanos, capitalismo, socialismo, comunismo, emancipação, Marx, Engels.
Mercado a que se destina
Este livro direciona-se às disciplinas de Filosofia do Direito, Filosofia Geral, Teoria do Estado, Sociologia Jurídica, Psicologia Jurídica, Psicologia e Ciência Política dos cursos de graduação e pós-graduação em Direito, Filosofia, Sociologia, Ciência Política e Psicologia.
Tábua da matéria
Sobre o autor, vii
Dedicatória, ix
Prefácio, xi
Introdução, xvii
PRIMEIRA PARTE
Os direitos humanos nos tempos de Marx e Engels
Capítulo I – A situação política na Europa, 23
Capítulo II – O direito natural e seus usos, 31
Capítulo III – Os direitos do homem burguês, 43
Capítulo IV – A “ontologia” liberal do ser humano e o seu legado, 51
SEGUNDA PARTE
O direito e os direitos humanos no desenvolvimento da cosmovisão de Marx e Engels
Capítulo I – Um hegeliano inquieto, 61
Capítulo II – Do céu à terra, da teoria à prática, 69
Capítulo III – Direitos humanos: o homem civil e seu duplo político, 75
Capítulo IV – O ser social e a dialética do concreto, 83
Capítulo V – O homem (encarnado) e sua práxis, 91
Capítulo VI – A “substância” frutal e a função do proletariad,o 97
Capítulo VII – A concepção materialista da História, 105
Capítulo VIII – Da classe “em si” à classe “para si”, 121
Capítulo IX – Tudo o que era sólido desmancha no ar, 135
Capítulo X – Dialética materialista à quente: duas aplicações práticas, 155
Capítulo XI – Crítica da economia política: o direito como superestrutura, 165
Capítulo XII – O capital: a apropriação da mais-valia e a sua forma jurídica, 179
Capítulo XIII – A forma de Estado de transição “finalmente encontrada”, 215
Capítulo XIV – O Direito no socialismo, 227
Capítulo XV – Do reino da necessidade ao reino da liberdade: a historicidade da família, da propriedade privada, do Estado e do Direito, 239
Capítulo XVI – A concepção jurídica do socialismo, 269
Capítulo XVII – Legalismo e práxis revolucionária: o desafio da esfinge, 281
Conclusões, 291
Marxismo e direitos humanos: uma contradição filosófica, 291
As conquistas sociais na plataforma do marxismo, 298
A superação histórica dos direitos humanos, 314
Bibliografia, 319