Resenha do livro Trabalho e Proletariado no Capitalismo Contemporâneo, de Sérgio Lessa.

04/12/2009 02:24

Trabalho e Proletariado no Capitalismo Contemporâneo

Sérgio Lessa

São Paulo: Cortez, 2007, 359 p.

 

por ADRIANO NASCIMENTO*

 

A implantação de novas tecnologias e novas formas de organização do processo de trabalho ocorrida no capitalismo contemporâneo deu origem a uma copiosa bibliografia que logo adquiriu grande relevo na agenda das ciências sociais contemporâneas. A opinião hegemônica passou a ser aquela de que as transformações das últimas décadas, sobretudo aquelas ligadas às tecnologias de informação e à automação da produção, levaram a uma profunda mutação na natureza da sociedade capitalista e, em conseqüência, na relação entre o proletariado e as demais classes sociais. Nesse diapasão ganhou destaque a visão de que o proletariado se metamorfoseara, ou para absorver em seus quadros outros assalariados antes estranhos ao seu conceito, ou para expurgar a si mesmo de um conceito que já ficara vetusto por não considerar a nova face do trabalho e da produção.    

Nessa extensa bibliografia, tornou-se lugar-comum a idéia de que passamos a viver em uma nova sociedade, uma sociedade pós-capitalista ou pós-industrial, na qual já não é mais determinante a luta de classes. Já para aqueles que ainda aceitam o “paradigma” da luta de classes, tornou-se uma trivialidade afirmar que a luta de classes dá-se em uma nova moldura, diversa daquela do século XIX, na razão em que as classes trabalhadoras adquiriram uma nova forma de inserção na estrutura da sociedade.

Na contra-corrente dessas tendências teóricas, a recente obra Trabalho e Proletariado no Capitalismo Contemporâneo, de Sérgio Lessa, é um dos mais contundentes e provocativos textos que se dedica a investigar o significado das transformações econômicas e políticas ocorridas no capitalismo contemporâneo e que buscam compreendê-las à luz dos conceitos desenvolvidos por Marx. Nesse intento não são os manuscritos de Marx, como os famosos Grundrisse, que oferecem suporte para o autor. Mas sim, O Capital. Isto porque, na opinião de Lessa, “o abandono da prioridade exegética do Livro I de O Capital teve sempre um mesmo e único resultado: a dissolução da classe operária em outras classes sociais como os assalariados ou uma amorfa classe média” (p. 250).   

Ancorado, portanto, na “leitura imanente” e “ortodoxa” do opus magnum marxiano e na assunção das proposições do filósofo alemão como “argumentos de autoridade”[1], Lessa debate com alguns dos mais influentes autores das ciências sociais contemporâneas. No debate realizado, três enfoques ganham destaque. No primeiro, de talhe ontológico, o foco são as teses de que as transformações nos processos produtivos teriam mudado a essência das classes sociais. No segundo, de cunho sociológico, a análise recai sobre os autores que tomaram trabalho como idêntico a emprego fordista. O último enfoque, de caráter político, discute se é ainda o proletariado a classe revolucionária hoje. Estes enfoques comparecem nas três partes que compõem o livro.

Na Parte I, Lessa apresenta suas críticas aos teóricos representantes do que considera o primeiro e o segundo adeus ao proletariado[2]. A vaga do primeiro adeus ao proletariado viria na esteira de um momento histórico marcado pelas conseqüências teóricas e políticas das transformações nos processos de trabalho e no padrão de consumo em massa dos países imperialistas, ocorridos com a ascensão do fordismo e do Estado de Bem-Estar (p. 56). Segundo Lessa, na década de 1950, o contexto histórico do primeiro adeus ofereceu indícios empíricos, prontamente seguidos de “manipulações ideológicas”, para aqueles que viam nas alterações na estrutura da produção, nas classes sociais e no Estado, razões suficientes para se infirmar as teses marxianas sobre o proletariado e suas relações com outras classes.

O foco inicial de Lessa é o adeus ao proletariado operado no interior da esquerda. No primeiro adeus, teóricos como Mallet, Belleville, Gurvitch, Braverman e Gorz, sempre resguardadas as diversidades em suas reflexões, se apoiavam, implícita ou explicitamente, na tese de que “o desenvolvimento tecnológico seria o momento determinante no desenvolvimento das forças produtivas e, portanto, das relações de produção e das classes sociais” (p. 39). Subjacente à análise de Lessa está a visão de que o “fetichismo da técnica”[3] pautaria as análises da sociologia do trabalho dos anos 1950, 1960 e 1970. Tal sociologia avalia de maneira neutra as novas tecnologias, como se per si fossem capazes de realizar mudanças profundas na sociedade, sobretudo na relação entre as classes. As hipóteses de extinção do proletariado ou de fusão do proletariado com o conjunto dos assalariados teriam como pano de fundo a tese de que as novas tecnologias alterariam o fundamento das classes sociais.

De acordo com Lessa, essas visões estiveram presentes, nos anos 1960, em Serge Mallet, ao defender que as novas tecnologias estariam substituindo as antigas plantas fabris por “fábricas sem operários” e, em conseqüência, que a nova classe trabalhadora passaria mais por ser identificada a partir das práticas e hábitos de consumo do que pela sua função nas atividades produtivas. Na mesma década e com um registro só aparentemente distinto, Pierre Belleville argumenta que a classe trabalhadora estaria em expansão, na medida em que a nova articulação entre trabalho produtivo e trabalho improdutivo dada pelas novas tecnologias colocara antigos “opositores” da classe trabalhadora (como os engenheiros) em condições de vida cada vez mais próximas dos operários. Uma década mais tarde, Harry Braverman oferecerá uma versão extremamente influente do primeiro adeus ao defender a existência do fenômeno da proletarização dos setores médios da sociedade e a dissolução da distinção entre atividades produtivas e improdutivas, na medida em que estas últimas também são subsumidas à lógica do capital. E, por fim, na obra catalisadora das visões do primeiro adeus, emblematicamente denominada Adeus ao proletariado, André Gorz defende a integração do proletariado ao horizonte burguês, que seria responsável por subtrair do proletariado até mesmo veleidades revolucionárias, restando à “não-classe” dos “não-trabalhadores”, criada nos interstícios do capitalismo em crise, o projeto revolucionário de abolição do trabalho e afirmação das atividades autônomas.

A vaga do primeiro adeus ao proletariado é seguida pelo vagalhão do segundo. Este se dá em condições históricas marcadas pela crise estrutural do capital manifestada nos anos 1970, seguida pela “reestruturação produtiva”, pela substituição do Estado de Bem-Estar pelo Estado Mínimo do neoliberalismo e pela débâcle do bloco soviético. O período anterior tem solução de continuidade na retração das greves operárias a partir de meados dos anos 1970. Argumenta Lessa que a baixa intensidade da atividade contestatória do proletariado nos anos de 1950-1960 é seguida pelo período contra-revolucionário dos anos 1970-1980 que se estende ao início do século XXI.  Trata-se de uma conjuntura que conduzirá ao menor rigor e ao maior conservadorismo dos analistas. Nas palavras de Lessa, o segundo adeus ao proletariado, capitaneado por C. Offe, M. Piore e C. Sabel, A. Schaff e J. Lojkine, terá como característica ser “mais explícito em seu conservadorismo, mais banal em sua elaboração e mais inconsistente teoricamente. Suas teorias serão mais pobres, simplórias e suas teses serão permeadas por evidentes contradições” (p. 58). Tudo leva a crer que, de acordo com Lessa, o segundo adeus não teria sido um adeus apenas ao proletariado, mas também a qualquer projeto de transformação revolucionária da sociedade. O horizonte burguês coincidiria com o horizonte da humanidade e o adeus ao proletariado não estaria longe de um adeus à revolução. Nas palavras do autor: “No segundo adeus, a existência da classe operária enquanto sujeito revolucionário é uma tese sequer considerada; pertence como que à pré-história da discussão” (p. 78).

Isso se evidenciaria na medida em que, com a tese da “crise da sociedade do trabalho”, Claus Offe sustenta o fim do papel revolucionário do proletariado; com o advento do toyotismo ou “especialização flexível”, Piore & Sabel prega o retorno à produção artesanal, suporte para o surgimento de uma sociedade mais democrática; com o “fim do trabalho manual”, Adam Schaff vaticina o “desaparecimento da classe operária” e a necessidade de novos partidos e um novo movimento sindical; e, com a tese da perda das “antigas clivagens categoriais entre dirigentes e operários”, das “funções informacionais no trabalho produtivo” e da emergência dos trabalhadores “produtivos improdutivos”, Jean Lojkine defende que é necessário persuadir a “massa dos assalariados e dos cidadãos” de que é chegada a hora de se elevar a humanidade a novos patamares de desenvolvimento (p. 70). 

A Parte II, “Trabalho e trabalho abstrato, trabalhadores e proletariado”, é a parte de melhor êxito do texto, mas certamente também a mais polêmica e desafiadora. Da pars destruens inicial, voltada para infirmar as teses dos adeuses, o texto avança para sua pars construens, cujo propósito é refletir sobre os conceitos de trabalho e trabalho abstrato, assalariados e proletariado, trabalho produtivo e improdutivo, trabalho manual e trabalho intelectual, sempre com aporte em O Capital.

Para Sérgio Lessa, em O Capital, estaria presente a distinção entre trabalho, como “eterna condição da existência humana” (Marx), ou seja, trabalho como conversão da natureza nos bens indispensáveis à reprodução da sociedade, e trabalho abstrato, isto é, trabalho em sua forma especificamente capitalista, responsável pela função de produzir mais-valia. Após estabelecer essa distinção, o autor considera que, hoje, quase todo trabalho responsável pelo intercâmbio orgânico com a natureza teria se convertido em trabalho abstrato. Mas de nenhuma forma o inverso seria verdadeiro. Não se pode supor que todo trabalho abstrato seja produtor do “conteúdo material da riqueza social”. Evitar este equívoco seria importante para demarcar as fronteiras entre o proletariado e os demais trabalhadores assalariados.

Lessa encara como fundamental para a definição de proletariado a caracterização precisa de trabalho produtivo e a delimitação das formas em que este trabalho produtivo se apresenta. Segundo ele, Marx define o trabalho produtivo como a forma de trabalho existente apenas nas sociedades capitalistas maduras; forma de trabalho caracterizada pela função de valorizar o capital (p. 153). No entanto, se não seria equivocado dizer que o trabalhador produtivo é aquele que produz mais-valia, o mesmo não seria verdadeiro para a afirmação de que todo trabalhador produtivo é proletário. Isto porque enquanto os demais trabalhadores produtivos não proletários cumprem apenas uma única função, aquela de servir a “autovalorização do capital”, o proletariado teria como differentia specifica o fato de cumprir uma dupla função: produzir e valorizar o capital[4] (p. 168).

Esta caracterização do proletariado como o membro do trabalho coletivo que responde por produzir e valorizar o capital tem um sentido. O trabalhador que Lessa tem em conta como proletário é tão somente aquele membro do trabalhador assalariado cuja função é operar o intercâmbio com a natureza e como conseqüência servir como base para a formação do “capital social total” (p. 171). Marx, segundo compreende o autor, tornou evidente que a produção de mais-valia não pode se dissociar da produção do “conteúdo material da riqueza social”. Não é possível um trabalho abstrato que se dissocie do trabalho concreto. Em outro prisma significa dizer que não é possível uma produção de valor de troca que se autonomize absolutamente da conversão da natureza em valores de uso. Os trabalhadores assalariados que transformam a natureza com seu trabalho manual são a classe social com a função social de reprodução do capital e, por extensão, da vida social burguesa.

Cabe, portanto, a pergunta: o trabalhador intelectual compõe o proletariado? A resposta do autor é categórica: “com a gênese das sociedades de classe surge e se intensifica a divisão social do trabalho e, o trabalho manual e o intelectual, antes ‘interligados’ no ‘sistema natural cabeça e mão’, ‘separam-se até se oporem como inimigos’” (p. 148). Lessa rejeita, portanto, a idéia de que os indivíduos que exercem trabalho intelectual façam parte do proletariado, ou seja, as atividades voltadas para supervisão, concepção e controle, são exteriores ao campo de atividades próprio do proletariado, pois expressam a dominação de classe e não podem ser entendidas como partícipes do trabalhador coletivo (p. 190).

Com efeito, o autor procura tomar uma via distinta àquelas dos adeuses ao proletariado. Insiste em não dissolver o proletariado no assalariamento, em não considerá-lo enquanto apenas valorizador do capital, em não “imbricar” o trabalho produtivo com o improdutivo e em não fundir o trabalho manual com o intelectual. Em verdade persevera na tese da distinção entre o proletariado e os demais assalariados. Mesmo que ambos sejam explorados, a riqueza material é produzida e extraída apenas do proletariado, para depois ser distribuída por todos os setores do capital, e, por esse caminho, para todos os assalariados. A distinção possui, portanto, uma dimensão de classe. Proletários e assalariados não são partícipes da mesma classe social porque as “classes sociais se diferenciam e se determinam mutuamente pelas respectivas inserções na estrutura produtiva” (p. 178). Todavia, é tomado em devida conta que a situação objetiva das classes não conduz a uma atuação típica das mesmas, pois “a relação entre esta determinação e a atuação das classes nos processos sociais é mediada, necessariamente, pela consciência dos indivíduos que a compõem” (idem). Assim, na síntese entre determinação objetiva e determinação ideológica, cabe à base produtiva o momento predominante. Com isso entende que autores como o estruturalista Nicos Poulantzas transitaram para o terreno do idealismo ao colocar peso predominante nas relações ideológico-políticas quando da conceituação das classes sociais (p. 215).

Por fim, a Parte III é voltada à demonstração da “atualidade do pensamento de Marx”. Lessa entende que os teóricos que buscaram demonstrar ambigüidades e contradições na obra do autor de O Capital acabaram por revelar as suas próprias contradições com Marx, pois “longe de ser confuso, Marx foi preciso ao tratar do trabalho, da relação deste com o trabalho abstrato, dos fundamentos ontológicos das classes sociais pelo lugar que ocupam na estrutura produtiva, da distinção ontológica entre o proletariado e os demais assalariados que faz dos operários a classe revolucionária” (p. 251). Argumenta Lessa que a demonstração do rigor e da coerência de uma obra não é suficiente para solucionar os ingentes problemas colocados pela realidade. As categorias necessitam ser submetidas ao crivo da história. Nesse sentido, o autor testa sua leitura imanente da obra de Marx mediante o cotejamento com trabalhos empíricos que cuidaram das transformações contemporâneas.

De sua incursão pelos trabalhos empíricos emerge a convicção de que as “novas formas de trabalho” e as “novas formas de gerência” são “expressões particulares do velho trabalho abstrato” que não alteraram as relações de produção capitalistas, tampouco abalaram a propriedade privada burguesa; persiste também a certeza de que o trabalho intelectual continua se opondo como inimigo ao trabalho manual; e mantém-se ainda mais evidente que trabalho produtivo e trabalho improdutivo nem se confundiram nem se “imbricaram” e continuam como momentos inerentes à reprodução do capital. De tudo isso, brota a atualidade do proletariado como “a única classe com potencial para cumprir a função histórica de sujeito da superação da ordem burguesa” (p. 313).

Lessa não sucumbe, portanto, às teses que adjudicam potenciais revolucionários a sujeitos históricos diversos do proletariado. Não cede às teses que consideram como motor da história as divisas anti-capitalistas presentes na “massa marginal” e nos “novos movimentos sociais”. Tampouco dobra-se à idéia de que seria a “classe assalariada intelectual” o “sujeito revolucionário”. A atualidade das análises e das categorias de Marx é a confirmação da atualidade histórica do proletariado como classe revolucionária.

O importante livro de Lessa tem provocado discussões nos meios de esquerda. A negação de uma noção ampliada de classe trabalhadora e a recusa de qualquer outro protagonista que não o proletariado – trabalhador manual da cidade e do campo – para o projeto comunista reacendem controvérsias e estimulam polêmicas. É uma rigorosa e notável contribuição para a tese da centralidade ontológica do trabalho na vida cotidiana e para a centralidade revolucionária do proletariado na sociedade capitalista.  



* Doutorando em Ciência Política pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

[1] Em interessante prefácio onde discute relevantes questões de método e se posiciona quanto à necessária prioridade dos estudos sobre o proletariado se focarem em O Capital, Lessa contrapõe corajosamente e de maneira habilmente fundamentada a ortodoxia, a leitura imanente e o argumento de autoridade ao dogmatismo e ao ecletismo (p. 14).

[2] Lessa considera em seu livro a existência de três adeuses ao proletariado. Uma vertente nos anos 1960-1970, outra nos anos 1980-1990, além de uma vertente brasileira. Lessa julga as obras recentes de Marilda Iamamoto, Ricardo Antunes e Demerval Saviani, como exemplos de ajustes nacionais à liturgia do adeus.

[3] A crítica ao “fetichismo da técnica” é desenvolvida com verticalidade na Parte III.

[4] O excerto de O Capital que funciona como arrimo para a tese de Lessa é o seguinte: “Por ‘proletário’ só se deve entender economicamente o assalariado que produz e valoriza o ‘capital’” (Marx).