Precários e periféricos: texto de Ruy Braga sobre as greves dos bancários e dos correios

23/10/2011 13:27

Precários e periféricos

Por Ruy Braga.

As greves dos bancários e dos trabalhadores dos correios tornaram-se recentemente objetos de inúmeras controvérsias. Muitos na mídia estão perguntando: se o governo federal controla a CUT, como explicar um embate tão longo entre os trabalhadores e o Banco do Brasil, a Caixa Econômica Federal e a ECT? Se a CUT controla a maioria das federações e sindicatos engajados nestes movimentos, como interpretar as derrotas que as assembléias sindicais impuseram aos acordos negociados com as empresas por seus representantes? Para além da concorrência de elementos específicos, como o desconto de alguns dias não trabalhados, a iminente privatização dos correios ou o endurecimento dos bancos estatais nas negociações, um processo salta aos olhos de quem está acompanhando a recente radicalização dos trabalhadores no país: estamos diante de uma verdadeira rebelião das bases em relação ao controle governamental exercido sobre os trabalhadores pelos sindicatos.

No começo do ano, foram as greves nos canteiros de obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) que deram o alerta. A greve dos professores do ensino fundamental e médio em diferentes estados e o sucesso da atual campanha nacional pelo investimento de 10% do PIB na educação lograram organizar a indignação das bases. Agora, ecetistas e bancários demostram que a paciência de importantes batalhões de trabalhadores brasileiros está se esgotando. Por quê? Arriscaria duas hipóteses: objetivamente, os ganhos salariais não acompanham a elevação da produtividade do trabalho. Em outras palavras, os trabalhadores estão se matando em condições cada dia mais deterioradas de trabalho sem uma contrapartida salarial que minimize o aumento do estresse, do adoecimento e da fadiga física. Subjetivamente, os trabalhadores começam a perceber que o atual modelo de desenvolvimento econômico pilotado pelo governo federal simplesmente não os favorece. Ao contrário, o casamento da “comodificação” da economia com a financeirização do capital limitou de uma tal maneira a ação do próprio governo que já não há mais espaço para concessões.

Afinal, a Amazônia transformou-se na nova fronteira do investimento em termos de produção de energia? O PAC é fundamental para garantir os lucros das construtoras, das mineradoras e do agronegócio? Pois bem: tome despotismo nos canteiros de obra seguido da mais desavergonhada degradação ambiental! Os dividendos dos acionistas não comportam reajustes salariais? Pobre do trabalhador bancário submetido a metas cada dia mais elevadas e salários corroídos pela inflação. Isso sem mencionar a criação da “Correios SA”, nova cara da velha privatização neoliberal dos serviços públicos. Aliás, a atual presidente não havia prometido durante a campanha eleitoral do ano passado que não iria privatizar as empresas estatais? Ou seja, o governo brasileiro está destruindo um futuro sustentável e justo apenas para salvaguardar lucros de bancos e de grandes grupos privados…

Tendo em vista a sensibilidade derivada da natureza do poder que exercem, os sindicalistas, especialmente aqueles vinculados a CUT, sabem bem que a temperatura nas bases está subindo rapidamente e, temerosos de serem derrotados nas eleições sindicais, como o caso dos metroviários de São Paulo já havia alertado, são obrigados a conduzir movimentos grevistas que não desejam organizar.

Para aqueles interessados em perscrutar o avesso do atual modelo de desenvolvimento vigente no país e entender melhor a elevação da temperatura política nas bases, uma ótima dica de leitura é o livro recém publicado pela Boitempo intitulado Saídas de emergência e organizado por Robert Cabanes, Isabel Georges, Cibele Rizek e Vera da Silva Telles. Por meio de minuciosos relatos etnográficos, somos lançados à infernal realidade da classe trabalhadora paulistana vivendo na periferia da grande metrópole. A partir do relato das experiências cotidianas de vendedores de rua, imigrantes bolivianos, trabalhadoras domésticas, trabalhadores desempregados, operadores de telemarketing…, somos inseridos nas entranhas do áspero e degradado universo limítrofe entre o legal e o ilegal, cuja principal marca é a experiência da precariedade social em suas mais diferentes formas: mercado de trabalho, violência policial, ambiente familiar, vida comunitária, participação religiosa e resistência política. Trabalhadores kafkanianamente transformados em “insetos na ordem capitalista da metrópole paulistana”, para lembrar as palavras de Chico de Oliveira que apresenta o volume.

A sociologia pública do trabalho presente em Saídas de emergência exige uma reflexão crítica acerca do atual modelo de desenvolvimento social pilotado pela burocracia lulista. Depois de ler os registros contidos no livro fica fácil compreender por que a paciência dos trabalhadores está se esgotando. Apesar de toda a propaganda governista entorno da desconcentração de renda entre aqueles que vivem do trabalho, uma conclusão nada óbvia começa a se impor à consciência dos subalternos: o atual modelo não tem nada a oferecer a eles. Em um mundo tomado pela indignação contra a maneira como os governos estão destruindo o futuro a fim de salvaguardar lucros de bancos e de grandes grupos privados, uma tal conclusão pode se tornar politicamente explosiva.

 

***

Ruy Braga, professor do Departamento de Sociologia da USP e ex-diretor do Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania (Cenedic) da USP, é autor, entre outros livros, de Por uma sociologia pública (São Paulo, Alameda, 2009), em coautoria com Michael Burawoy, e A nostalgia do fordismo: modernização e crise na teoria da sociedade salarial (São Paulo, Xamã, 2003). Na Boitempo, coorganizou as coletâneas de ensaios Infoproletários – Degradação real do trabalho virtual (com Ricardo Antunes, 2009) e Hegemonia às avessas (com Francisco de Oliveira e Cibele Rizek, 2010), sobre a hegemonia lulista. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às segundas-feiras.

 

Fonte: Blog da Boitempo