O capitalismo no olho do furacão, por Edmilson Costa
A terceira onda da crise: o capitalismo no olho do furacão – desarticulação monetário-financeira, depressão prolongada e lutas sociais
A crise sistêmica global encaminha-se para um novo patamar de ebulição, com impactos muitos mais explosivos do que em 2008, quando quebrou o Lehmon Brothers. Podemos dizer que aquele episódio, apesar das conseqüências devastadoras para a economia mundial e, especialmente, para os Estados Unidos, deve ser considerado apenas como o início da crise sistêmica global. As contradições violentas que se acumularam no interior do sistema capitalista desde a década de 70 e se aprofundaram com as políticas monetaristas nas décadas de 80 e 90, ainda não se manifestaram em toda a sua plenitude. Estamos nos aproximando de mudanças quantitativas e qualitativas no interior da ordem internacional capitalista, tais como a desarticulação do sistema monetário-financeiro que emergiu após a Segunda Guerra Mundial, a depressão prolongada na grande maioria dos países capitalistas centrais, especialmente na economia-líder, e a retomada das lutas sociais em dimensão global.
O período que se abre agora vai entrecruzar um conjunto de fenômenos explosivos que tornarão o início da crise apenas como a primeira ventania antes da grande tempestade. Passado o período de tensa calmaria ocorrido em função das injeções trilionárias de dólares pelos governos dos países centrais, principalmente os EUA, ocasião em que os meios de comunicação procuraram criar um clima manipulatório de normalidade e retomada do crescimento, a hora da verdade está chegando para todos os gestores políticos do grande capital, todos eles ainda presos aos valores de um mundo que começou a ruir em 2008 e, por isso mesmo, não conseguem compreender a profundidade da crise, nem tomar as medidas necessárias para enfrentá-la. Continuam a utilizar os mesmos métodos do passado para fenômenos inteiramente novos do mundo do presente.
A recessão na Europa e, especialmente, na zona do euro, já uma realidade, muito embora ainda seja mais forte nas regiões da Europa do Sul, os elos débeis do sistema imperialista europeu. Mesmo com todas as tentativas de regulação, injeções trilionárias de recursos para salvar países e bancos, a economia européia está mergulhada na recessão, tanto porque os problemas que originaram a crise não foram resolvidos como porque as medidas de austeridade vão aprofundar ainda mais o processo recessivo. Os ajustes que estão sendo realizados em praticamente todos os países aumentam o desemprego e a queda da atividade econômica. O desemprego médio na região está acima de dois dígitos, sendo que em vários países ultrapassa 20% e entre os jovens este índice ainda é maior. Desemprego significa queda na renda [NR] e queda na renda tem como resultado redução do consumo e, portanto, mais recessão.
Nos Estados Unidos a situação é ainda mais grave, apesar da manipulação da mídia e das estatísticas não revelarem em plenitude a crise da economia-líder. Na verdade, os Estados Unidos condensam todos os problemas da crise capitalista: uma dívida pública que já ultrapassa 100% do PIB, com impactos potenciais muito mais explosivos que a dívida européia, pois a carga tributária norte-americana corresponde a apenas 19% do PIB, enquanto na Europa ultrapassa uma média de 30%.
A crise fiscal se torna cada vez mais problemática, com vários Estados e municípios em situação pré-falimentar, além do fato de que as políticas de facilidades quantitativas ( qualitative easing 1 e 2 ) estão se tornando inviáveis politicamente, tanto do ponto de vista interno quanto internacionalmente. A crise do setor imobiliário continua se agravando, com o preço das residências caindo à medida em que a crise persiste. Existem ainda os cortes no orçamento que o governo está realizando para satisfazer as pressões dos republicanos.
Essas medidas ainda não produziram resultados explosivos porque o Fed tem conseguido até agora realizar um conjunto de ações que vem adiando a emergência explicita da crise (juros baixíssimos, injeções de recursos no sistema financeiro, facilidades quantitativas, etc), mas esse arsenal de medidas tem limites e não pode se sustentar indefinidamente, uma vez que produzirão efeitos colaterais severos na economia. À medida em que a campanha eleitoral se desenvolva, vai ficar mais clara a gravidade dos problemas. A esses problemas podem ser adicionados a questão do dólar como moeda de reserva mundial e a dívida pública que já ultrapassou 100% do PIB.
Outro ponto importante a ser abordado nesta crise é o surgimento das lutas sociais. Se na primeira onda da crise os trabalhadores praticamente se comportaram como espectadores, a partir da segunda onda, com a crise das dívidas soberanas e as medidas de ajustes do grande capital, as lutas sociais emergiram em praticamente todas as regiões afetadas pela crise. Mesmo ainda embrionárias, com elevado grau de espontaneísmo, sem uma direção com perspectiva de classe na maioria dos países, essas lutas estão se intensificando, especialmente na Europa, onde o capital tem realizado os ajustes mais severos. Mesmo nos Estados Unidos, surgiram vários movimentos em resposta à crise, em vários Estados, especialmente o Ocuppy Wall Stret, que tem grande potencial de desenvolvimento com o aprofundamento da crise.
Esses fenômenos ainda não estão plenamente percebidos em função de avassaladora manipulação midiática que o capital desenvolve cotidianamente para dar uma aparência de normalidade à conjuntura. Mas a crise é dramática e, em algum momento próximo, os elementos objetivos da crise irão se impor e então as pessoas tomarão conhecimento da extensão do problema. Estamos nos aproximando daqueles momento em que o impensável acontece como se fosse fato do cotidiano.
Crises cíclicas e crises sistêmicas
Há uma enorme confusão e desconhecimento sobre a questão das crises e, especialmente, sobre as crises sistêmicas. Por isso, é importante realizarmos um esforço no sentido não só de precisar melhor esta questão como também tentar estabelecer um estatuto teórico às crises sistêmicas, buscando avançar em relação a alguns fundamentos não observados pelos clássicos, de forma a precisar melhor a natureza do fenômeno, bem como suas implicações econômicas, políticas e sociais.
As crises são fenômenos imanentes do sistema capitalista, oriundas da contradição central entre o caráter social da produção e a apropriação privada de seus resultados e ocorrem com periodicidade regular desde os primórdios deste modo de produção. As crises não têm origem monocausal conforme muitos marxistas costumam analisar esses fenômenos. Resultam das contradições gerais do sistema: não tem origem no subconsumo, não é crise de desproporção entre os diversos setores de produção, não é crise em função da queda da taxa de lucro, da especulação financeira ou qualquer outro fator isoladamente. A crise é a fusão das contradições que se acumulam ao longo do ciclo, muito embora possam se expressar mais acentuadamente em uma ou outra variável específica.
Desde Adam Smith que se busca uma explicação para as crises cíclicas do capitalismo, passando por Ricardo, Malthus, Rodsberto, Sismondi, Marshall. Posteriormente, com o desenvolvimento do capitalismo, outros autores desenvolveram novas abordagens da crise, como os ciclos ou ondas longas, de Parvus, Von Gerendem, Kondratiev, Schumpeter, entre outros. Eles buscaram de alguma forma, com as ferramentas de sua época, identificar e compreender os fenômenos das crises. Estado estacionário em Smith, renda decrescente da terra em Ricardo, subconsumo das massas em Malthus, Sismondi e Rodsberto, os ciclos longos de Parvus, Von Gerendem, Krondratiev, as destruições criadoras em Schumpeter, todos eles tentaram explicar a natureza e o desenvolvimento das crises capitalistas.
No entanto, foi Marx quem definiu de maneira mais precisa os fundamentos teóricos das crises capitalistas, ao deslocar a análise da órbita da circulação para a esfera da produção e defini-la como sínteses de todas as contradições do capitalismo.
As crises sistêmicas
Para efeito desta análise, procuraremos diferenciar as crises cíclicas das crises sistêmicas, bem como tentar estabelecer um estatuto teórico para as crises sistêmicas. As crises cíclicas se transformaram em fenômenos recorrentes do modo de produção capitalista e para enfrentá-las o capital já adquiriu vasta experiência e desenvolveu ferramentas para atenuar seus efeitos mais perversos e ressurgir desse processo num patamar superior. Já as crises sistêmicas são bem mais complexas, com duração mais longa e efeitos devastadores mais acentuados. Seus resultados provocam mudanças profundas na vida econômica, na estrutura das relações de produção, na forma de dominação do capital, além de modificações em toda a vida social. Portanto, necessitam de um estatuto teórico à altura dos fenômenos que provoca.
Marx não viveu o suficiente para testemunhar as crises sistêmicas e delas apreender os resultados teóricos que expressou em relação às crises em geral. Escreveu sobre sua época, a época do capitalismo concorrencial e das crises cíclicas. Não tinha obrigação de adivinhar o futuro, nem teorizar sobre aquilo que ainda não existia, não possuía vida material. Como ele próprio enfatiza: "É por isso que a humanidade só apresenta os problemas que é capaz de resolver e, assim, numa observação atenta, descobrir-se-á que o próprio problema só surgiu quando as condições materiais para resolvê-lo já existiam ou estavam, pelo menos, em vias de aparecer". [1]
Mesmo escrevendo sobre as crises em geral, no Manifesto Comunista, Marx já revelava alguma pista sobre o desenrolar das crises no capitalismo, muito embora não tenha escrito especificamente sobre as crises sistêmicas e, principalmente, sobre as crises do período da internacionalização da produção e das finanças, fenômenos que se tornaram conhecidos popularmente como globalização:
"A sociedade burguesa moderna, que criou gigantescos meios de produção e de troca, assemelha-se ao feiticeiro que já não pode controlar os poderes infernais que invocou. Há dezenas de anos a história da indústria e do comércio não é senão a história da revolta das forças produtivas modernas contra as modernas relações de produção ... Basta mencionar as crises comerciais que, repetindo-se periodicamente, ameaçam cada vez mais a sociedade burguesa e seu domínio. Cada crise destrói regularmente não só uma grande massa de produtos fabricados, mas também grande parte das próprias forças produtivas já criadas ... O sistema burguês tornou-se demasiado estreito para conter as riquezas criadas em seu meio ... A que leva isso? Ao preparo de crises mais extensas e mais destruidoras e à diminuição dos meios para evitá-las" [2]
Em outras palavras, Marx já intuía que, à medida que o capitalismo fosse se desenvolvendo, o sistema chegaria ao ponto em que as crises seriam mais prolongadas, mais devastadoras e, especialmente, em função da própria ampliação do domínio do capital no mundo, seus gestores passariam a ter uma margem menor de manobra para evitá-las ou administrá-las, dada a amplitude do processo de acumulação e à junção de contradições cada vez mais novas e complexas neste modo de produção. Possivelmente, se tivesse vivido após 1873, época do início da primeira grande crise sistêmica do capitalismo, teria identificado esse fenômeno e elaborado as conclusões teóricas necessárias.
Friedrich Engels, seu parceiro teórico e de lutas, que viveu bastante tempo após a morte, e organizou sua obra seminal, os volumes II e III do Capital, já vislumbrava que algo de novo estava acontecendo em relação às crise capitalistas, conforme escreveu, em 1886, no prefácio da edição inglesa do Capital. "Enquanto a força produtiva cresce em progressão geométrica, a expansão dos mercados cresce, na melhor das hipóteses, em progressão aritmética. O ciclo decenal de estagnação, prosperidade, superprodução e crise, que se repetiu sempre, de 1827 a 1867, parece ter se esgotado. Mas só para deixarmos aterrissar no lodaçal desesperador de uma depressão crônica e duradoura". [3]
Alguns anos mais tarde, em 1890, em nota de rodapé do tomo II do Capital, Engels volta novamente a se referir às novas manifestações das crises, identificando alguns elementos constitutivos de uma crise diferente, muito embora ainda sem definí-la plenamente, até mesmo porque a crise sistêmica de 1873-1896 não estava totalmente completa nesse período. Apenas indaga se o sistema não estaria diante de um fenômeno mundial de "veemência inaudita":
"A forma aguda do processo periódico, com seu ciclo até então de 10 anos, parece ter cedido lugar a uma alternância mais crônica, mais prolongada, que se distribuiu entre diversos países em tempos diferentes, de melhoria relativamente curta e débil dos negócios e pressão relativamente longa e indecisa. Mas talvez trata-se apenas de uma expansão de duração do ciclo. Na infância do comércio mundial, de 1815 a 1847, pode-se comprovar ciclo de até cinco anos; de 1847 a 1867 os ciclos são decididamente de 10 anos; será que nos encontramos no período preparatório de uma nova crise mundial de veemência inaudita"? [4]
A partir dessas pistas, continuaremos nossa investigação seguindo as pegadas dos fundadores do marxismo, que definiram as crises do capitalismo como colapso da totalidade, a totalidade do capitalismo de sua época, a época do capitalismo concorrencial. Cremos que, a partir de um posto de observação do século XXI, quando o capitalismo atingiu seu amadurecimento pleno, poderemos realizar uma primeira mediação em relação a esta questão teórica, sugerindo que as crises cíclicas representam colapsos parciais da totalidade, enquanto as crises sistêmicas podem ser consideradas rebeliões generalizadas da totalidade contra a cisão da unidade entre valor de uso e valor, mercadoria e dinheiro, produção e consumo, forças produtivas e relações de produção plenamente desenvolvidas em nível mundial, provocadas pelas contradições do sistema capitalista e que se expressam explosivamente em toda a vida social, provocando mudanças quantitativas e qualitativas no modo de produção capitalista.
O correto entendimento teórico destas duas formas de manifestação da crise do capital nos permite compreender melhor a dinâmica histórica do capitalismo. Primeiro, as crises cíclicas são fenômenos perturbadores do curso natural deste modo de produção e já fazem parte do cotidiano histórico. Dada suas manifestações rotineiras, os capitalistas adquiriram experiência suficiente para manejá-las, atenuar suas dimensões mais destrutivas e renascer das cinzas num patamar superior, muito embora carreguem todas as contradições do passado e acrescentem novas contradições que se desenvolverão ao longo do próximo ciclo. As políticas keynesianas utilizadas generalizadamente após a Segunda Guerra Mundial podem ser consideradas como o exemplo mais sofisticado das ferramentas utilizadas pelos capitalistas para administrar o ciclo econômico.
No entanto, as crises sistêmicas têm uma dimensão superior, ocorrem em períodos mais longos, desestruturam toda a ordem anterior e constroem, sob seus escombros, uma nova ordem, isso porque significam a exaustão de um período histórico de acumulação do capital. As crises sistêmicas não só desorganizam de maneira radical o sistema econômico, político e social construído para responder às necessidades da ordem anterior, como atingem todas as instituições da velha ordem, em proporções tais que provocam mudanças no conjunto do sistema e abrem espaço para a contestação do próprio sistema, uma vez que nestas épocas de crises sistêmicas torna-se mais aberta a aliança entre o Estado e as classes dominantes, pois essas duas criaturas siamesas passam a agir abertamente no sentido de colocar todo o ônus da crise na conta dos trabalhadores, o que leva a intensas lutas sociais.
As crises sistêmicas carregam consigo um conjunto de fenômenos novos que vão muito além do horizonte convencional com o qual as classes dominantes estão acostumadas a lidar, para os quais as ferramentas corriqueiras do processo anterior (as crises cíclicas) não surtem os mesmos efeitos. Por isso, são muito mais explosivas, colocam em perigo a ordem capitalista e despertam os trabalhadores para as batalhas de classe. Também são mais duradouras: não apenas por carregarem consigo em bases ampliadas as velhas e novas contradições, mas porque as classes dominantes, acostumadas aos valores da velha ordem em desagregação, teimam em utilizar os instrumentos convencionais, num ambiente em que estes já não produzem mais os resultados que produziam no período precedente.
As crises sistêmicas do capitalismo apresentam características bastante diferentes das crises cíclicas comuns, em função não apenas de sua profundidade devastadora, mas também com relação à forma como se desenvolvem no ambiente econômico e social. Geralmente, as pessoas com pouco conhecimento histórico têm dificuldades de compreender as diferenças entre as crises cíclicas e as crises sistêmicas, confundem os dois fenômenos ou então imaginam as crises sistêmicas como colapsos destrutivos lineares que, ao serem desencadeadas, seguem uma trajetória avassaladora de maneira contínua, sem compassos de espera ou espasmos-recuperação.
A realidade das crises sistêmicas é bastante diferente: estas crises irrompem de maneira unilateral na conjuntura e realizam os primeiros estragos na economia e na sociedade, tomando a todos de surpresa. Mas os governos reagem com uma série de medidas que aliviam momentaneamente os efeitos mais perversos da crise. Num ambiente de tensões nos circuitos que se beneficiavam da bonança anterior à crise, esses setores procuram criar nos meios de comunicação uma atmosfera de normalidade e recuperação da economia, de forma a manter seus privilégios e retornar ao status precedente,
No entanto, a crise irrompe novamente de maneira unilateral na conjuntura, muitas vezes com mais intensidade que no período anterior, ampliando a destruição da primeira onda. Pode acontecer novamente um compasso de espera para emergir uma nova onda da crise e assim por diante até desagregar a velha ordem e provocar mudanças quantitativas e qualitativas no interior do sistema ou a mudança do próprio sistema. Nesse processo há apenas uma constância: a contínua deterioração das condições econômicas, sociais e políticas a cada patamar em que se desenvolve a crise.
As crises sistêmicas são também mais devastadoras porque reproduzem em bases ampliadas todas as contradições do capitalismo. Toda crise do capital traz um conteúdo novo à conjuntura, além de carregar em seu bojo as contradições do passado. No entanto, as crises sistêmicas são muito mais devastadoras porque são crises completas, rebeliões generalizadas da totalidade contra a velha ordem (Campos, 2001). Esta crise que explode em 2008 é a primeira grande crise completa do sistema capitalista, portanto mais explosiva, uma vez que envolve todo o arcabouço econômico e social do sistema capitalista – a esfera da produção, da circulação, do crédito, das dívidas públicas e privadas, o sistema social, o meio ambiente e os valores neoliberais (Costa, 2009).
Como constatam Roubini e Mihm: "Infelizmente, as crises financeiras têm fluxos e refluxos; é raro que explodam de uma só vez e terminem. Na verdade, se parecem mais com furacões, que reúnem suas forças, amainam por algum tempo, para em seguida se tornar mais destrutivos. Isso reflete o fato de que as vulnerabilidades que se acumulam na formação de uma crise são generalizadas e sistêmicas". [5]
Assim foram as crises sistêmicas de 1873 e 1929. Em 1873, a crise começou pela Bolsa de Valores de Viena, seguiu com falências bancárias na Áustria e Alemanha, Estados Unidos e, posteriormente na Inglaterra. A crise se espalhou ainda pela área industrial, tendo como consequência grande desemprego entre os trabalhadores (Coggiola, 2009). [6] Como todas as crises sistêmicas, sua particularidade foi uma longa depressão, até 1896, ou seja, 23 anos de crise. No entanto, esta primeira grande crise sistêmica não foi linear como o senso comum costumar imaginar: ocorreram períodos de recuperação em vários pontos da curva descendente, conforme Dobb : "A grande depressão, iniciada em 1873, foi interrompida por surtos de recuperação em 1880 e 1888 e continuada até meados da década de 90". [7] A crise sistêmica iniciada em 1873 resultou macroeconomicamente na transição do capitalismo concorrencial para o capitalismo monopolista.
A crise de 1929-1945, bem mais documentada, o que nos poupa de alongarmos em seus detalhes, produziu a segunda guerra mundial e a destruição das forças produtivas de praticamente toda a Europa. Nos Estados Unidos, epicentro da crise, o Produto Interno Bruto, entre 1929 e 1933, teve uma queda de mais de 25%, a Bolsa de Valores se desagregou, e o desemprego atingiu um quarto da população economicamente ativa. Da mesma forma que na crise sistêmica de 1873-1896 a crise nos EUA teve momentos de depressão e recuperação, especialmente com a política do New Deal e a produção para guerra, mesmo assim a produção de automóveis só alcançou os patamares do início da crise (1929) quatro anos após o fim da Segunda guerra Mundial, em 1949. [8]
Como pode ser observado na crise anterior, a crise de 1929-1945 produziu mudanças profundas na conjuntura econômica internacional, na organização do capitalismo e na correlação das forças sociais. Primeiro, a União soviética emerge da Segunda Guerra como uma poderosa potência econômica e militar, liderando um sistema socialista composto por um terço da humanidade. Segundo, os países capitalistas, sob pressão dos trabalhadores, reorganizam as relações de produção, tendo como norte teórico o keynesianismo e a construção do Estado do Bem Estar Social. No plano político, cria-se uma nova ordem econômica internacional, com novas instituições e com os países vencedores da guerra com poder de veto na Organização das Nações Unidas.
Portanto, essa nova crise sistêmica de 2008, por incorporar todas as contradições das crises anteriores e por ser a primeira crise completa do sistema capitalista, com certeza resultará também em mudanças de fundo na economia e na sociedade.
A crise sistêmica de 2008
A crise sistêmica de 2008 marca uma diferença qualitativa em relação às duas crises sistêmicas anteriores (1873-96 / 1929-1945), porque surge após um período em que o capitalismo se transformou num sistema mundial completo, em função da internacionalização da produção e da internacionalização financeira, popularmente denominada de globalização. Anteriormente, o sistema só era realmente completo no que se refere a duas variáveis da órbita da circulação: o comércio mundial e a exportação de capitais. Com a globalização, o sistema mundializou objetivamente as esferas da produção e da circulação, unificando globalmente o ciclo do capital e fechando assim uma etapa histórica que se iniciara com a revolução inglesa de 1640 na Inglaterra (Costa, 2009).
A internacionalização da produção possibilitou modificações profundas nas relações de produção internacionais e mudou de maneira expressiva a forma de expropriação do valor por parte da burguesia dos países centrais, possibilitando a descentralização dos ambientes de apropriação da mais-valia. Pela primeira vez na história do capitalismo, a burguesia passou a extrair diretamente e generalizadamente o valor fora de suas fronteiras nacionais, [9] transformando-se assim numa classe exploradora direta tanto nos países centrais quanto na periferia, o que confirma objetivamente o caráter internacional do proletariado.
No passado, a burguesia se apropriava do valor dos países periféricos mediante o comércio internacional, em função da troca desigual (produtos manufaturados versus matérias-primas), o pagamento dos juros das dívidas, os dividendos ou remessas de lucros enviadas pelas filiais de suas empresas que atuavam na órbita da circulação. Agora, o capital vive sua maturidade plena, ao transformar o planeta numa esfera única de investimento, produção, realização e acumulação do capital.
A internacionalização das finanças e, especialmente, a desregulamentação financeira realizada mundialmente após os governos Reagan e Tatcher, aliadas às ferramentas das tecnologias da informação e a universalização dos computadores, possibilitaram ao capital atuar com a mais ampla liberdade possível em todas as partes do mundo e auto-acrescentar-se ao longo das 24 horas do dia, rompendo assim as barreiras do espaço e do tempo, num processo como nunca antes se verificara no sistema capitalista. Para tanto, basta se utilizar da melhor maneira possível os fusos horários para atuar permanentemente em todas as praças financeiras do mundo, em todos os continentes.
Essas modificações operadas na área das finanças marcaram também uma mudança na correlação de forças entre as frações do grande capital internacional: o setor mais parasitário passou a hegemonizar as decisões econômicas e políticas nos países centrais e subordinou todos os outros setores à lógica financeira, desenvolvendo de maneira acelerada um processo especulativo que hegemonizou não só a esfera das finanças, mas contaminou a produção e as decisões orçamentárias do Estado. No plano político, esse movimento foi expresso nas políticas neoliberais desenvolvidas desde o final da década de 70 nos países centrais e, posteriormente, em todos os países capitalistas ligados à economia líder.
O frenesi especulativo se desenvolveu como um rastilho de pólvora, facilitado pela interconexão dos mercados financeiros e sua integração eletrônica, e resultou num enorme descolamento entre a órbita financeira e a esfera da produção, criando assim possibilidades de rupturas de liquidez a uma velocidade impressionante, em função da extraordinária capacidade de propagação pelos meios de comunicação, como se verificou a partir da queda do Lehmann Brothers.
Estas considerações precedentemente elencadas, levando em conta o grau de mudanças que se operou na base do sistema capitalismo, dão à atual crise sistêmica um conteúdo novo, fruto dos novos fenômenos que emergiram nesta fase do capitalismo. Conforme assinalávamos em ensaio publicado em fevereiro de 2009, a crise sistêmica global era profunda, devastadora e de longa duração: "Esta é a primeira grande crise realmente completa [10] do sistema capitalista, por isso mais complexa e potencialmente mais explosiva, uma vez que envolve toda a vida social do sistema capitalista – a esfera da produção, da circulação, o crédito, as dívidas públicas e privadas, o sistema social, o meio ambiente, os valores neoliberais, a cultura individualista e, especialmente, o Estado como articulador do processo de acumulação". [11]
Portanto, a crise sistêmica mundial está em curso, apesar da manipulação diária operada pelos meios de comunicação. Eles buscam quotidianamente confundir os trabalhadores, buscando dar uma aparência de normalidade e recuperação da economia mundial, mas a realidade tem sido mais dura que as miragens plantadas pela mídia. Em breve estaremos assistindo um aprofundamento da crise, tanto nos Estados Unidos quanto na Europa, e a ampliação das lutas sociais nas principais regiões afetadas pela crise, uma vez que as medidas tomadas até agora para enfrentar a crise estão objetivamente criando as condições para seu acirramento.
A crise no coração do sistema
Conforme alertávamos em 2002, a crise mundial do capitalismo só estaria madura quanto atingisse o coração do sistema: os Estados Unidos, a Europa e o Japão. [12] Agora, com a crise sistêmica global, o mundo assiste a maior crise de toda a história do capitalismo e, ao mesmo tempo, inicia-se o processo de amadurecimento para as transformações de todas as instituições construídas em Bretton Woods. O velho sistema monetário-financeiro está desaparecendo, porque já não cumpre mais as funções para as quais foi criado e nem corresponde mais às novas relações de produção oriundas da internacionalização da produção e das finanças. A ordem econômica internacional está à deriva: suas instituições, seus métodos de regulação e ação política dos governos centrais se mostram incapazes de resolver os problemas oriundos da crise.
As várias frações de classe do grande capital, (norte-americano, europeu e japonês) tateiam no escuro, impotentes diante dos fenômenos novos para os quais não estão preparados. Não conseguem entender a profundidade da crise e continuam aplicando sem sucesso os mesmos métodos do passado. Essa impotência diante dos fatos objetivos da vida torna mais agressiva as elites parasitárias dos países centrais, que buscam a todo o custo sair da crise pelos métodos mais primitivos e predatórios, como a fomentação de guerras cada vez destrutivas contra nações que não obedecem aos ditames do capital, a imposições de ajustes econômicos predatórios contra os trabalhadores, buscando regredir seus direitos aos estatutos do século XIX, bem como a manipulação cada vez mais sem cerimônia dos meios de comunicação para justificar suas ações.
Mas a ofensiva do grande capital não pode esconder que o sistema capitalista está doente, passa pelo momento de maior dificuldade em toda a sua história e a crise sistêmica global tende a se agravar mais a cada dia que passa, porque desde que foi desencadeada nenhum dos problemas que a detonaram foi resolvido. Pelo contrário, a crise agora está mais explosiva porque reúne em torno de si todas as contradições do capitalismo oriundas do processo anterior e adiciona os novos fenômenos do capitalismo contemporâneo, o que a torna mais devastadora e cujo momento explosivo se aproxima com uma velocidade expressiva. Em breve, a crise completa do capital estará produzindo fenômenos tão desconcertantes que deixarão os observadores impressionados com sua dinâmica e efeitos econômicos, políticos, sociais e geopolíticos em todo o sistema capitalista.
Nossa investigação buscará apreender os principais elementos constitutivos da crise sistêmica global nas duas principais regiões do capitalismo central, Estados Unidos e a União Européia e, a partir desses dados objetivos, avaliar a profundidade da crise, os principais fenômenos novos que brotarão dessa conjuntura, bem como as possibilidades de mudanças no interior do sistema, a partir da entrada em cena de um novo personagem – os trabalhadores, cuja resistência vem se manifestando em várias regiões, mas com o agravamento da crise está se abrindo um novo patamar na luta de classes internacional.
A crise fiscal nos Estados Unidos
A crise fiscal dos Estados Unidos é muito grave e atinge todas as esferas dos governos federal, estadual e municipal. A sociedade norte-americana está iniciando um período de dificuldades semelhantes aos países da periferia capitalista. O déficit público em 2010 atingiu 1,260 trilhão e nos últimos meses de 2011 atingiu cerca de 10% do PIB. Essa performance tende a se agravar em função da queda da atividade econômica, da redução no consumo das famílias, além do aumento do desemprego. Quer queira ou não o presidente Obama, os Estados Unidos iniciam, premidos pela lógica objetiva dos fatos, um período de austeridade que deverá agravar ainda mais a crise social no País, cuja expressão mais visível é o aumento do número de pobres, que hoje já alcança 60 milhões de pessoas.
A crise nos Estados Unidos tem origem nas contradições do sistema capitalista, mas carrega consigo uma série de problemas específicos que se foram acumulando ao longo dos anos, tais como o deslocamento de plantas industriais para outras regiões e, especialmente, em função de medidas tomadas pelo governo Bush, como a redução de impostos para os setores de maior renda [NR] , os gastos trilionários para resgatar os bancos da crise, as guerras no Afeganistão e Iraque, bem como a chamada "guerra contra o terror", que ampliou de maneira acentuada o aparato de espionagem e exércitos irregulares pelo mundo afora.
Vale ressaltar ainda que os Estados Unidos possuem um problema estrutural em relação ao orçamento. Enquanto nos países da zona do Euro a arrecadação tributária corresponde em média a cerca de 30% do PIB, nos Estados Unidos o País arrecada apenas 19% do produto. Essa é uma debilidade da economia norte-americana, porque o nível de arrecadação torna mais difícil uma solução do déficit no curto prazo, especialmente se levarmos em conta que a redução de impostos e aumento de gastos alteraram o panorama tributário norte-americano para níveis mais baixos desde 1950 (Eichengreen, 2011). A menos que haja uma política de ajuste predatório, o que é um problema com poucas perspectivas em função da reação da população, essa questão vai continuar por bastante tempo.
Esses problemas fizeram com que o déficit se fosse tornando cada vez mais uma bomba de efeito retardado, à medida em que a economia norte-americana perdia competitividade industrial, o setor financeiro passava a hegemonizar as decisões de política econômica, as administrações republicanas reduziam o imposto para os ricos e aumentavam as despesas militares. A crise veio ampliar o déficit, uma vez o governo teve que resgatar os bancos da falência e a recessão oriunda da crise duplicou o nível de desemprego e reduziu o consumo, completando assim um quadro de anemia fiscal no País. Vejamos mais detalhadamente os principais pontos que tornam o déficit fiscal uma questão explosiva, principalmente em função da crise:
1) O deslocamento das plantas fabris para outras regiões operou-se de maneira lenta mas permanente em função da queda na taxa de lucro nos Estados Unidos. Parcelas expressivas das grandes corporações deslocaram-se para vários continentes, especialmente para a Ásia em busca de mão-de-obra e matérias baratas e condições fiscais vantajosas. Os estrategistas do capital imaginavam que o poder hegemônico norte-americano criaria uma economia de serviços, com alta densidade tecnológica, a partir da qual os Estados Unidos capturariam parcela expressiva da mais-valia produzida mundialmente mediante a apropriação das rendas [NR] remetidas do exterior (royalties, patentes, dividendos, juros) e o sistema financeiro se encarregaria de reciclar os capitais que migrariam para Estados Unidos em função de seus mercados sofisticados e hegemônicos. Esse movimento reduziu a dinâmica do setor da economia que produzia o valor e abriu espaço para o frenesi especulativo que veio a se estilhaçar em 2008 e contaminar todos os setores econômicos do País.
A redução da competitividade industrial inverteu um curso histórico: os Estados Unidos passaram de maior exportador mundial para maior importador, acumulando ao longo dos últimos 30 anos crescentes déficit na balança comercial. Na década de 70, os EUA apresentaram apenas pequenos déficits na balança comercial, mas a partir de meados da década de 80 esses déficits foram crescendo de maneira extraordinária até ultrapassar, em 1984, a marca de US$ 100 mil milhões. A partir daí, os saldos negativos na balança comercial foram se avolumando até atingir US$ 328,8 mil milhões em 1999. A partir de 2003, os déficits passam a superar os US$ 500 mil milhões, até ultrapassar os US$ 800 mil milhões em 2006, 2007, 2008, caindo para US$ 634,9 mil milhões em 2010 (Tabela 1).
Tabela 1 – Balança Comercial dos EUA,1983-2010
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1983 | 205,6 | 258,0 | -52,4 |
1984 | 224,0 | 330,7 | -106,7 |
1985 | 218,8 | 336,5 | -117,7 |
1986 | 227,2 | 365,4 | -138,2 |
1987 | 254,1 | 406,2 | -152,1 |
1988 | 322,4 | 441,0 | -118,6 |
1989 | 363,8 | 473,2 | -109,4 |
1990 | 393,6 | 495,3 | -101,7 |
1991 | 421,7 | 488,5 | -66,8 |
1992 | 448,2 | 532,7 | -84,5 |
1993 | 465,1 | 580,7 | -115,6 |
1994 | 512,6 | 663,3 | -150,7 |
1995 | 584,7 | 743,5 | -158,8 |
1996 | 625,1 | 795,3 | -170,2 |
1997 | 689,2 | 869,7 | -180,5 |
1998 | 682,1 | 911,9 | -229,8 |
1999 | 695,8 | 1.024,6 | -328,8 |
2000 | 781,9 | 1.218,0 | -436,1 |
2001 | 729,1 | 1.141,0 | -411,9 |
2002 | 693,1 | 1.161,4 | -468,3 |
2003 | 724,8 | 1.257,1 | -532,3 |
2004 | 814,9 | 1.469,7 | -654,8 |
2005 | 901,1 | 1.673,5 | -772,4 |
2006 | 1.026,0 | 1.853,9 | -827,9 |
2007 | 1.148,2 | 1.957,0 | -808,8 |
2008 | 1.287,4 | 2.103,6 | -816,2 |
2009 | 1.056,0 | 1.559,6 | -503,6 |
2010 | 1.278,3 | 1.913,2 | -634,9 |
2) A conjuntura econômica viria a se deteriorar de maneira dramática após a crise sistêmica global. A redução dos impostos realizada entre 2001 e 2003 e os gastos com as guerras do Afeganistão e Iraque, após a queda das torres gêmeas, aliados à ampliação dos gastos militares secretos em função da política anti-terrorista do governo Bush, continuada por Obama, reduziram drasticamente o perfil tributário dos EUA. Passou-se de um superávit fiscal em 2000 para um déficit de 4% do PIB em 2007-2008 (Eichengreen, 2011). Essa conjuntura seria agravada de maneira dramática em função da crise sistêmica global, que levou o Tesouro a injetar cerca de 8,5 trilhões de dólares para salvar os bancos, o que agravou de maneira dramática a crise fiscal norte-americana.
3) Mas o problema menos conhecido e menos divulgado, mas tão grave como os precedentemente elencados, é a crise fiscal dos Estados e Municípios. Atualmente, 45 Estados estão com suas contas no vermelho. A crise fiscal regional é resultado tanto da recessão que o país enfrenta desde 2008, que reduziu as receitas, quanto das perdas oriundas das aplicações financeiras realizadas por Estados e Municípios na especulação financeira. Uma particularidade da legislação fiscal norte-americana é o fato de que os Estados e Municípios são proibidos de ter déficits, muito embora sempre encontrem uma maneira criativa de burlar a legislação.
Estados grandes e ricos como a Califórnia se encontram em calamidade fiscal, enquanto outros mais pobres também possuem déficits elevadíssimos. Por exemplo, 13 Estados estão com déficit acima de 20% em relação ao ano fiscal de 2011, seis Estados com déficit acima de 30% e 15 com déficit acima de 10%, o que configura uma situação dramática do ponto de vista fiscal (Tabela2). Como a crise eleva as despesas dos Estados e a recessão reduz as receitas, temos assim um dilema difícil de ser resolvido e que tende a se agravar à medida em que a recessão se ampliar pelo conjunto da economia.
Tabela 2 – Déficit dos Estados em relação ao ano fiscal de 2011
Alabama | 12,3 | Loisiania | 14,3 | Oklahoma | 13,7 |
Arizona | 39,0 | Maine | 34,7 | Oregon | 34,2 |
Califórnia | 20,7 | Maryland | 15,3 | Pennsylvania | 16,4 |
Colorado | 25,1 | Massachusetts | 8,6 | Rhode Island | 13,4 |
Connecticut | 28,8 | Michigan | 9,3 | South Carolina | 26,1 |
Delaware | 11,4 | Minnesota | 25,0 | South Dakota | 8,8 |
District of Columbia | 4,5 | Mississipi | 15,9 | Tennessee | 9,4 |
Florida | 19,5 | Missori | 9,4 | Texas | 20,9 |
Georgia | 25,4 | Nebraska | 9,7 | Utah | 14,7 |
Hawai | 16,2 | Nevada | 54,5 | Vermont | 31,3 |
Idaho | 3,5 | New Hampshire | 27,2 | Virginia | 8,5 |
Illinois | 40,2 | New Jersey | 38,2 | Washington | 29,6 |
Indiana | 9,4 | New Mexico | 9,1 | West Virginia | 3,6 |
Iowa | 20,3 | New York | 15,9 | Wiscosin | 24.9 |
Kansas | 10,1 | North Carolina | 30,6 | Wyoming | 10,3 |
Kentucky | 9,1 | Ohio | 11,0 | States total | 19,9 |
Esta crise dentro da crise vem afetando diretamente a população, uma vez que os Estados endividados diminuem os salários dos funcionários e reduzem serviços como linhas de metrô, coleta de lixo, limpeza, assistência médica aos pobres, velhos e deficientes. Há ainda os cortes nas verbas para escolas e faculdades, demissão de professores, policiais, pessoal médico e funcionários públicos em geral. Some-se a isso o fato de que a infraestrutura de vários Estados e Municípios está em frangalhos, com equipamentos sociais precários, pontes desabando, escolas e hospitais sucateados.
Além dos problemas relacionados, um outro fator também veio adicionar mais um elemento explosivo: a crise dos títulos municipais ( Munis Bonds ) e a incapacidade dos governos locais de pagá-los diante da conjuntura de penúria fiscal. Trata-se de um mercado de US$ 3 trilhões, geralmente estável em tempos de bonança. No entanto, como em todas as crises, algumas questões que estavam adormecidas afloram na superfície com uma veemência extraordinária.
Pode-se dizer que há um sinal amarelo no mercado de Munis Bonds, não apenas porque há pelo US$ 10 mil milhões em títulos inadimplentes e outros US$$ 22 mil milhões em estado de stress, como costumam se referir eufemisticamente os comentaristas econômicos norte-americanos. Mas o indicador mais objetivo da crise desse mercado foi o fato de a Standard & Poor´s ter rebaixado a nota tríplice A (AAA) de 4% dos títulos desse mercado. Portanto, à medida em que a crise for avançando, o mercado de Munis Bonds também seguirá a rota de desagregação, amplificando para as populações regionais a crise nacional.
Outros dos indicadores da crise fiscal podem ser localizados nos gastos militares dos Estados Unidos. Mesmo com as promessas de retirada das tropas do Iraque e Afeganistão, os gastos norte-americanos continuam desproporcionais em relação ao resto do mundo. Para se ter uma idéia, o orçamento militar de 2011 está calculado em US$ 700 mil milhões (4,8% do PIB), um quantum maior que os 17 maiores orçamentos militares do planeta e seis vezes maior que o da China, a nação com o segundo maior gasto do mundo. Nesta questão tanto faz ser republicano ou democrata, todos estão de acordo em manter a aperfeiçoar a máquina de guerra norte-americana e continuar alimentando o complexo industrial militar. Segundo informações dos meios de comunicação, essa máquina de guerra é composta por 560 bases militares fora dos Estados Unidos e um aparato de espionagem que tem mais pessoas com acesso a informações secretas que todas as pessoas que vivem na capital, Washington.
Quem imaginar que o final da guerra fria significou a redução desta máquina de guerra está completamente enganado. Hoje, os Estados Unidos não têm concorrentes no espaço aéreo nem nos mares: porta-aviões gigantes, submarinos atômicos, satélites por toda a parte, aviões robôs, bombas inteligentes guiadas a laser, caças-bombardeios, aviões invisíveis, tanques e helicópteros da mais alta sofisticação compõem a máquina militar mais agressiva que a humanidade já conheceu. Muito embora esse aparato seja assustador, ironicamente está perdendo a guerra para beduínos nas areias do Iraque e guerrilheiros das montanhas no Afeganistão, o que demonstra que a hegemonia não envolve apenas questões militares.
A crise da dívida dos Estados Unidos
A dívida dos Estados Unidos condensa atualmente toda a dinâmica da economia norte-americana, seus problemas, contradições e perspectivas, porque sintetiza historicamente as opções econômicas estratégicas, a euforia e as debilidades da economia líder do sistema capitalista. A crise da dívida, portanto, é o elemento catalisador de todos os problemas da sociedade norte-americana. Os dilemas políticos ocorridos recentemente no Congresso, referentes ao aumento do teto da dívida, são apenas a ponta do iceberg da crise política, econômica e social de um sistema imperial em decadência, cujos contornos ficarão mais claros à medida em que a crise for aprofundando as contradições de uma economia ferida.
Ao longo dos últimos 30 anos a dívida pública funcionou como uma espécie de colchão social, econômico e financeiro do sistema de poder imperial norte-americano. Trata-se de um débito que estruturou macroeconomicamente toda a ordem econômica internacional e possibilitou aos Estados Unidos viverem por várias décadas com déficits permanentes, um padrão de vida acima da média mundial, enquanto os países superavitários transformavam seus saldos comerciais positivos em títulos da dívida pública norte-americana.
Em função do poderio de sua economia, da liderança que exerciam no mundo capitalista, da sofisticação de seu mercado financeiro e da liquidez de seus papéis, os títulos da dívida dos EUA eram considerados o porto mais seguro para as aplicações das reservas internacionais de grande maioria dos países industrializados. Nações como a China, o Japão e o Brasil, principais detentores desses títulos, acumularam por anos a fio superávits comerciais e os trocaram por T-Bonds, títulos do Tesouro norte-americano, mesmo a uma taxa de juros extraordinariamente baixa, como se esses papéis representassem a cristalização do valor produzido mundialmente.
Para os Estados Unidos, tratava-se de um bom negócio. Sem trocadilho: um negócio da China! Como num transe de mágica, os sucessivos governos dos Estados Unidos conseguiam trocar papéis pintados (dólares) ou promissórias (títulos da dívida), ambos sem lastro em ativos reais, por bens tangíveis dos países produtores de manufaturas do resto do mundo. Demorou muito para que os governos começassem a compreender que a quantidade de dólares impressos pelos Estados Unidos e espalhados pelo mundo, bem como os títulos da dívida pelos quais trocavam seus superávits comerciais, não possuíam relação direta com os ativos reais dos Estados Unidos. Em outras palavras, os agentes econômicos que participaram dessa pantomina estão atualmente com uma batata quente na mão, pois a qualquer momento podem ser surpreendidos pela terrível notícia que seus papéis não valem quase nada, foram desvalorizados pela lei do valor.
Essa severa realidade está se aproximando com uma velocidade acentuada, em função desta terceira onda da crise global. Conforme advertíamos no início de 2009, a crise iria produzir um conjunto de fenômenos novos: "Quanto mais a crise se acirrar, mais haverá a possibilidade de questionamento da hegemonia norte-americana e um acirramento da disputa interimperialista, pois a crise pode gerar um clima de salve-se quem puder ... Existe ainda a possibilidade concreta de uma maxidesvalorização do dólar ou de um calote generalizado da dívida externa norte-americana". Naquela época pode ter parecido um exagero essas afirmações, mas agora já é parte de uma dolorosa realidade dolorosa para o mundo.
A dívida pública dos Estados Unidos vem crescendo de maneira impressionante desde o início deste século: correspondia a cerca de U$ 5 trilhões em 2000 e agora em outubro de 2011 se situa em torno de US$ 15 trilhões (aumentou três vezes na década), ou seja, cerca de 100% do PIB. Uma dívida dessa magnitude não seria grande problema se as circunstâncias não fossem as mais sombrias para a economia norte-americana, afinal países como a Itália convivem com déficits de mais de 100% do PIB há vários anos. Mas num período de crise sistêmica todos os valores do período anterior passam a ser questionados. O debilitamento da economia, aliada à disputa recente entre os republicanos e democratas em relação ao teto da dívida, acendeu o sinal amarelo para os detentores dos T-Bonds, criou um clima de desconfiança entre principais agentes econômicos, especialmente a China, e dificilmente essa conjuntura será revertida, em função do agravamento da crise.
Em termos de perspectiva, os T-Bonds já não podem ser considerados a base das finanças mundiais, uma vez que estão mais claras uma série de fissuras na estrutura de dominação econômica e financeira dos Estados Unidos. Pela primeira vez em 70 anos, uma agência de classificação de risco rebaixou a nota dos títulos norte-americanos. Um dos principais fundos privados de investimentos dos Estados Unidos, o PINCO, já colocou os T-Bonds fora do seu portfólio. A China, principal credor, discretamente está se desembaraçando desses títulos. E não faz em maior velocidade porque está presa ao destino de seu maior devedor. Caso se desfaça rapidamente a crise se aprofundará, haverá uma grande desvalorização, o que significa também prejuízos na mesma proporção para os chineses. Os bancos centrais dos principais países industrializados estão acelerando a compra de ouro, o que tem feito o preço do metal subir vertiginosamente, ao mesmo tempo em reflete a desconfiança na capacidade dos EUA de honrar a dívida.
Numa conjuntura dessa ordem a tendência principal é uma contínua deterioração da situação econômica financeira do País e, consequentemente, uma perda de confiança dos agentes econômicos na capacidade dos Estados Unidos de honrar a dívida. Quanto mais a conjuntura interna se deteriora (recessão, desemprego, crise imobiliária, austeridade fiscal, crise nas administrações locais, crise do dólar, crise social) basta uma fagulha, um elemento fortuito, para desencadear a nova onda da crise de grandes proporções que já está madura no interior do sistema. Uma crise no coração do sistema se espalhará pelo conjunto do planeta como um rastilho de pólvora, colocando a economia mundial numa situação mais explosiva que a de 2008.
A crise do dólar como moeda mundial
A dívida pública dos Estados Unidos e o dólar são como irmãos siameses. Portanto, o destino de um está ligado à performance do outro e vice-versa. Por isso, a crise da dívida contamina o prestígio da moeda norte-americana, abala sua credibilidade, consolida um clima de desconfiança e abre espaço para que os países passem a contestar com mais rigor a hegemonia do dólar. Por isso, várias nações já propõem abertamente a substituição do dólar como moeda mundial e instrumento de referência das transações internacionais.
O prestigio de uma moeda – especialmente uma moeda de reserva internacional – está umbilicalmente ligado à performance da economia que a emite. Desde os acordos de Bretton Woods o dólar tem sido a moeda de referência internacional. Mesmo que na década de 60 alguns países europeus, especialmente a França, tenham questionado o privilégio norte-americano, mesmo com a desvinculação do dólar em relação ao ouro anunciada por Nixon em 1971, a moeda norte-americana continuou sendo um porto seguro para as reservas internacionais dos Bancos Centrais e para as transações do comércio internacional.
No entanto, com a decadência da economia dos Estados Unidos, a emergência da China como potência mundial e o aparecimento do euro como moeda de grande parte dos países da Europa e, especialmente, com a crise sistêmica mundial e o aumento exponencial do endividamento norte-americano, o panorama mudou radicalmente. O que era impensável em tempos de calmaria – a crise da dívida e a crise do dólar – hoje é uma realidade para grande parte dos agentes econômicos. A maior parte dos Bancos Centrais bem que gostariam de se desfazer do dólar, mas um movimento brusco dessa ordem levaria a economia mundial ao caos e os países detentores de dólares a registrar enormes prejuízos.
O governo norte-americano injetou, desde o início da crise, cerca de US$ 8,5 trilhões para salvar os bancos e empresas e lançou dois Quantitative Easing (QE1 e QE2) e agora está com poucas condições de lançar um Quantitative Easing 3, porque as medidas tomadas anteriormente reduziram o estoque de ações do Federal Reserve, até mesmo estas trilionárias injeções de capitais não apresentaram resultados desejados, uma vez que a economia continua em processo de deterioração. Essa quantidade de dinheiro em circulação é uma bomba de efeito retardado para a economia dos Estados Unidos, pois em algum momento isso se refletirá em aumento da inflação e, conseqüentemente da taxa de juros, o que significa um tiro de misericórdia para qualquer esperança de recuperação econômica.
Além disso, as ações monetárias unilaterais geram sérios atritos com os aliados, porque inauguram uma espécie de guerra cambial sem nenhuma regulação. Com a inundação de dólares sem lastro no mundo, haverá uma sobrevalorização das moedas nacionais (e uma desvalorização do dólar) e um impacto negativo nas balanças comerciais, pois quanto mais valorizada a moeda nacional menos o País terá condições de exportar. Nesse contexto, cada País procurará tomar as medidas necessárias para proteger o seu setor exportador, o que em última instância tenderá a desencadear um protecionismo generalizado, um clima de salve-se quem puder.
Como os Bancos Centrais não podem se desfazer bruscamente do dólar, seguem uma estratégia discreta de diversificar seu portfólio, comprando ouro e realizando transações comerciais bilaterais em moedas locais (yuan na Ásia, Euro na Europa, Real com alguns países da América Latina) ou realizando fortes investimentos na aquisição de ativos reais pelo mundo, como compra de terras na África e América Latina, e empresas lucrativas em vários países, de forma a se desfazerem dos dólares em carteira. Mas esses movimentos não resolvem o problema central: há mais dólares no mundo que os ativos reais norte-americanos possam representar e esse fato em algum momento será um fator para a contestação final do dólar como moeda de reserva, como já vem sendo feito pela China, especialmente com o agravamento da crise, afinal uma economia moribunda não pode ter uma moeda de reserva mundial.
No entanto, a crise não significa que uma outra moeda venha substituir imediatamente o dólar, pois este ainda possui um peso grande na economia mundial e o Euro ou o Yuan ainda não estão em condições de substituí-lo. Para se ter uma idéia, o dólar representava 61% das divisas internacionais, em 2010. Continua a moeda dominante nos mercados cambiais, com 85% das operações; Cerca de 45% dos títulos das dívidas dos países são expressos em dólar (Eichengreem, 2011). Portanto, numa situação de crise, uma solução temporária poderá ser a criação de uma cesta de moeda compostas por Euro, Yuan, Dólar, Real, Rublo e DES (Depósitos Especiais de Saque) do FMI. Mas essa solução não impediria a desarticulação do sistema monetário financeiro montado a partir de 1945.
A crise na União Européia
A União Européia é parte integrante do sistema imperialista mundial, especialmente a Alemanha, França, Inglaterra e Itália, e o velho continente está também envolvido profundamente na crise sistêmica global e sofrerá conseqüências semelhantes às que estão atingindo a economia líder, tendo em vista as interconexões entre o grande capital e as operações econômicas cruzadas entre as várias frações da burguesia dos países centrais. Acrescente-se a isso a identidade destas classes dominantes com o sistema político e econômico neoliberal, implantado a partir do final da década de 70, com a eleição de Margareth Tatcher, na Inglaterra, e Ronald Reagan, nos Estados Unidos, além das próprias contradições do capitalismo europeu.
A formação da zona do euro, sob a orientação do Tratado de Maastricht, consolidou uma Europa do capital, no qual as frações mais reacionárias da burguesia impuseram aos países participantes um conjunto de leis e regras que buscam garantir seus interesses econômicos e políticos, às custas dos trabalhadores e dos povos europeus. Estruturou-se um conjunto de instituições regidas pelos interesses do grande capital, sob a ótica neoliberal, mesmo com este já moribundo, uma hierarquia draconiana entre as nações e um sistema esquizofrênico onde existe uma moeda única sem um Estado para respaldá-la, nem um emprestador de última instância; com um teto de déficit público formal, irrealista, especialmente em função da crise, e uma assimetria fiscal que torna a gestão macroeconômica da política monetária uma lenda.
Apesar de ser parte do sistema imperialista mundial, a União Européia possui um conjunto de singularidades que devem ser levadas em conta na análise desta crise. A primeira é a própria constituição do bloco econômico, um processo que vem se consolidando há várias décadas e que criou certa identidade cultural entre os povos. A segunda é a criação de uma moeda única na zona do euro. Mesmo levando em conta a heterogeneidade das economias, o desenvolvimento desigual e as questões fiscais, o euro rapidamente se constituiu num importante instrumento de reserva dos bancos centrais, representando hoje 21% de todas as reservas em poder dos estados nacionais. Além disso, o próprio desenvolvimento desigual do capitalismo e os interesses dos diversos blocos das burguesias dos países centrais, criam necessariamente disputas entre as frações do grande capital da União Européia e as frações dominantes do capital da economia líder e dos outros países imperialistas, o que tem se refletido em decisões de política internacional e na própria gestão da crise européia.
No entanto, o processo que atinge a Europa e que se expressa atualmente na crise das dívidas soberanas tem origem tanto nas contradições do capitalismo europeu e seu modelo neoliberal atrelado à economia líder, quanto da opção dos seus governos em salvar os bancos com recursos públicos, cujo resultado levou ao acirramento da crise, com a ampliação extraordinária das dívidas soberanas. Se observarmos a evolução das dívidas dos países europeus poderemos ver claramente o impacto fiscal das operações de salvamento dos bancos europeus:
A dívida total dos países da área do euro correspondia a 79,3% do PIB em 2008 e cresceu para 102,4% em 2011. Se observarmos isoladamente os diversos países da Europa, numa hierarquia inversa em função da crise veremos mais precisamente o impacto das operações de salvamento dos bancos. A dívida grega, que em 2008, era de 116,1% do PIB aumentou para 157,1% em junho de 2011. A dívida portuguesa aumentou, no mesmo período, de 80,6% do PIB para 110,8%; a da Espanha de 47,4% para 74,8%; a da Itália, cresceu de de 115,2 para 129,0%; a da Irlanda de 49,6 para 120,4%; a da Inglaterra de 57% para 88,5%; a da França de 77,8 para 97,3%; e a da Alemanha de 69,3 para 87,3%. O Japão, o mais endividado, passou de uma dívida de 174,1 em 2008 para 212,7% em junho de 2011. Em todos os países, o que se nota é um salto extraordinário no endividamento após a crise (Tabela 3).
Tabela 3 – Passivo financeiro dos países centrais em relação ao PIB (junho de 2011)
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Bélgica | 113,7 | 95,9 | 93,3 | 100,5 | 100,7 | 100,4 |
Alemanha | 60,4 | 71,2 | 69,3 | 76,4 | 87,0 | 87,3 |
Grécia | 115,3 | 121,2 | 116,1 | 131,6 | 147,3 | 157,1 |
Irlanda | 39,4 | 32,6 | 49,6 | 71,6 | 102,4 | 120,4 |
Itália | 121,6 | 120,0 | 115,2 | 127,8 | 126,8 | 129,0 |
Japão | 135,4 | 175,3 | 174,1 | 194,1 | 197,7 | 212,7 |
Portugal | 60,2 | 72,8 | 80,6 | 93,1 | 103,1 | 110,8 |
Espanha | 66,5 | 50,4 | 47,4 | 62,3 | 66,1 | 74,8 |
França | 65,6 | 75,7 | 77,8 | 89,2 | 94,1 | 97,3 |
Inglaterra | 45,1 | 46,4 | 57,0 | 72,4 | 82,4 | 88,5 |
EUA | 54,5 | 61,4 | 71,0 | 84,3 | 93,6 | 101,1 |
Eurozona | 75,8 | 78,1 | 76,5 | 86,9 | 92,7 | 95,6 |
Total OCDE | 69,8 | 76,3 | 79,3 | 90,9 | 97,6 | 102,4 |
Apesar de a crise expressar-se mais explicitamente na questão das dívidas soberanas, esta é uma crise do sistema como um todo. Sua expressão nas dívidas soberanas é apenas a face mais visível da crise sistêmica global na Europa. Um dado importante a ser analisado é o fato de que as classes dominantes européias, mesmo com a experiência da primeira onda da crise, continuam insistindo nos velhos métodos do passado como se essa crise não tivesse características inteiramente diferentes das crises anteriores. O mais grave desta cegueira política é o fato de que estão implementando um conjunto de medidas predatórias contra os trabalhadores que terão como conseqüência o aprofundamento da crise, que se espalhará para o conjunto das economias capitalistas; a desagregação do sistema financeiro internacional tal como conhecemos hoje; a recessão prolongada, o aumento do desemprego e a crise social.
Vejamos mais detalhadamente os principais elementos dessa conjuntura explosiva. O ritual é mais ou menos o seguinte: parte expressiva dessa dívida foi incentivada pelos próprios bancos, no seu permanente desejo de lucro fácil e sem risco, uma vez que se imaginava que as dívidas dos Estados eram um porto seguro para as atividades bancárias. Com a crise de 2008, os Estados ampliaram de maneira extraordinária seu endividamento para salvar o sistema bancário da falência. O sistema bancário ganhou sobrevida e impôs condições financeiras draconianas para os próprios países que lhes salvaram da bancarrota. Os Estados entraram em crise em função do aumento cada vez maior do serviço da dívida. Para garantir seus lucros, o sistema bancário vem pressionando as instituições e governos europeus para que imponham aos trabalhadores e ao povo em geral ajustes predatórios para que possam pagar a dívida.
Vale ressaltar que a troika (União Européia, Banco Central Europeu e FMI) tem se comportado nesta crise como uma junta de representantes do grande capital. No entanto, as medidas tomadas até gora, tais como a criação do fundo de resgate, empréstimos bilionários ao sistema bancário, os torniquetes econômicos impostos a países como a Grécia, Irlanda e Portugal, não foram suficientes para resolver a crise, pelo simples fato de que a crise sistêmica que envolve o mundo capitalista não pode ser resolvida com medidas paliativas. Essas medidas apenas adiam o desfecho do processo. Se observarmos o tamanho das dívidas soberanas e os recursos que estão sendo organizados para resgatar as economias de um possível colapso, poderemos constatar que são absolutamente irrelevantes diante da dimensão do problema.
De fato, as dívidas soberanas dos países da zona do euro, conforme podemos observar na tabela, são inadministráveis, pois grande parte desses débitos ultrapassam 100% do PIB. Numa conjuntura de crescimento econômico, as dívidas poderiam ir sendo roladas sem grandes problemas, desde que não ultrapassassem certos limites. No entanto numa conjuntura de crise, com recessão generalizada, desemprego, queda no consumo e na arrecadação tributária, a tendência é o aprofundamento da crise, fato que se concretizará à medida em que o primeiro País se declarar inadimplente, mesmo que este País não tenha grande expressão econômica, tendo em vista a estreita relação entre o endividamento e os bancos da zona do euro. Os chamados mercados entrarão em pânico, contagiando todas as outras dívidas e se instalará o caos econômico, um clima de salva-se quem puder, o que também atingirá em cheio a economia norte-americana.
Por falar na relação bancos europeus-dívidas soberanas , é necessário ressaltar que os bancos do velho continente estão profundamente envolvidos nesse processo e foram partícipes artífices do endividamento público. Em termos concretos, os bancos da Europa têm em carteira 3 trilhões de euros em títulos da dívida soberana, representando quase 8% de seus ativos totais, o que por si só dá uma idéia da dimensão do problema. Se levarmos conta que a crise de 2008 levou à nacionalização de vários conglomerados financeiros europeus, imaginem o que poderá acontecer ao sistema bancário se ocorrer uma onde de calote soberano não apenas na Grécia, Portugal ou Irlanda, mas em países como Espanha ou Itália ou mesmo a França?!
A cegueira do grande capital e seus representantes políticos diante da crise é tamanha que agora eles resolveram, num gesto desesperado, deixar de lado as aparência e intervir diretamente nos países com crises mais explícitas e exercer diretamente o poder político nas instituições e governos da região. É o caso dos pró-consules da Goldman Sachs que assumiram o poder na Europa. Ferina ironia: os homem que fabricaram a crise estão agora comandando o poder econômico e político na Europa. Sob a proteção da manipulação midiática, que os apresenta como um "governo técnico", eles estão encarregados de implementar o trabalho sujo, que consiste em saquear as economias nacionais, privatizar o patrimônio público, aumentar os impostos, ampliar o desemprego, cortar os salários, as pensões, reduzir o padrão de vida dos povos para satisfazer o apetite voraz do capital financeiro.
Vejamos quem são esses personagens: Mário Draghi, antigo vice-presidente e membro do Comitê de Administração da Goldman Sachs, que tinha como uma de suas funções vender swaps aos países europeus, agora é presidente do Banco Central Europeu (BCE); Mario Monti, ex-presidente da Comissão Trilateral, do grupo Bilderberg, também assessor internacional da Goldman, agora é o principal dirigente político da Itália; Lucas Papademos, ex-governador do Banco Central Grego, participou das operações de falsificação das contas do País a serviço da Goldman, agora é o líder político da Grécia; além de outros personagens influentes na Europa e que participam da rede da Goldman na região. [13] Em relação a esses personagens, vale o que disse certa vez Alessio Rastani, ex-trader, numa entrevista à BBC que chocou os mais desavisados; "Os políticos não governam o mundo. A Goldman Sachs governa o mundo".
Essa ação desesperada do grande capital na Europa pode ser o canto dos cisnes antes da tempestade, mas vale uma advertência: a ação ousada do capital representa um perigo para o padrão de vida não apenas dos trabalhadores e da população em geral, mas para a própria democracia, pois a burguesia, em sua busca desesperada para sair da crise não apenas vem colocando todo o custo da crise na conta dos trabalhadores, como também não hesitará em atropelar a democracia e criar um clima de terra arrasada, caos, instabilidade, para atingir seus objetivos, instalando governos de caráter fascista, como ocorreu na Alemanha e Itália na década de 30, com as conseqüências que todos conhecemos.
A luta de classes mudou de patamar
Mas um fenômeno novo vem ocorrendo nesta conjuntura, que é a emergência das lutas sociais em praticamente todas as regiões do planeta. Ainda embrionárias, com certo grau de espontaneísmo, sem uma vanguarda com capacidade de construir um projeto alternativo ao do capital, as lutas de massas mudaram de patamar. Na primeira onda, a crise não teve uma resposta contundente dos trabalhadores, em termos de lutas sociais. Tomados de surpresa pela intensidade da crise, sem uma direção que as orientasse no sentido da combatividade de classe, fragmentados em função da reestruturação produtiva, do refluxo que caracterizou as três décadas de neoliberalismo e da ofensiva contra o movimento sindical e os direitos dos trabalhadores operados pelos sucessivos governos neoliberais, os trabalhadores praticamente se comportaram como coadjuvantes diante da crise mundial.
O grande capital, também tomado de surpresa pela intensidade da crise, buscou num primeiro momento resolver os problemas injetando uma quantidade extraordinária de recursos na área financeira, visando evitar o colapso do sistema. No entanto, tão logo foram aliviados os sintomas mais perversos da crise, o grande capital se estruturou em nível internacional, especialmente nos países centrais, para colocar todo o ônus da crise na conta dos trabalhadores, com medidas draconianas, impensáveis há poucos anos atrás, buscando aplicar aos trabalhadores uma derrota histórica, condição essencial para recuperar as taxas de lucros, disciplinar a classe operária, sair da crise e organizar a economia em novo patamar, de acordo com seus interesses.
Mas, ao contrário do que imaginam os gestores do capital, essas medidas predatórias podem até apresentar algum resultado no curto prazo, mas é uma bomba de efeito retardado no médio prazo, uma vez que provocarão queda na atividade econômica, desemprego, queda na renda e no consumo e, portanto, mais recessão e mais crise. Realizar os ajustes draconianos em nível global, como está sendo feito na Europa, levará o mundo a uma depressão prolongada, maior que na crise de 1930, e a um levante social também de caráter global. Uma coisa é implementar essas medidas em países em que a miséria é parte da vida quotidiana das pessoas. Outra, é realizar essas medidas nos países onde as conquistas sociais já faziam parte do quotidiano da sociedade. A reação nessas sociedades pode ser muito maior, mais organizada, até mesmo porque as relações de produção são muito mais avançadas.
Conforme advertíamos em nosso primeiro artigo, [14] a crise torna a burguesia mais agressiva e evidencia de maneira mais clara os projetos do capital para resolver os problemas oriundos da crise. Do ponto de vista militar, pode-se constatar claramente uma ofensiva do imperialismo no sentido para fomentar intervenções militares e guerras em várias regiões, como os casos recentes da Líbia, da Síria e do Irã. Do ponto de vista econômico há uma ação articulada do capital no sentido de avançar sobre as finanças do Estado, bem como sobre os direitos e garantias dos trabalhadores e, do ponto de vista político, o capital vai cada vez mais tirando a máscara e impondo aos povos governos diretamente geridos pelos representantes do capital, cujas ações vem sendo realizadas no sentido de suprimir as próprias liberdades democráticas típicas dos tempos de calmaria do capitalismo.
Diante desse quadro, os trabalhadores vão tomando consciência da conjuntura num processo de aprendizado mais rápido que nos tempos de calmaria. A partir do momento em que os governos começaram a tomar medidas concretas contra seus direitos e garantias, como no caso atual da Europa, a crise abre espaço para a emergência da luta popular, os trabalhadores e a população começam a sair às ruas em resistência aos ajustes, vão perdendo o medo, reorganizando suas forças e a luta de classes se intensifica.
Conforme ainda afirmávamos no mesmo artigo, a crise iria abrir a possibilidade de uma retomada da luta de massas em caráter mundial, especialmente nos países centrais. "Os desdobramentos desta crise vão atingir profundamente os trabalhadores em termos de emprego e de renda e vão acirrar a luta de classes nos países centrais e na periferia. Ao contrário do senso comum e de muitos companheiros da esquerda, nós achamos que o potencial da classe operária e dos trabalhadores em geral é muito mais forte nos países centrais que na periferia, pois é exatamente nos países centrais onde se encontra a classe operária mais avançada do ponto de vista das forças produtivas e o capitalismo mais maduro. Portanto, é o teatro de operações mais favorável para a luta de classes que nos países atrasados".
Essa nossa análise continua válida para este momento histórico, muito embora a luta de classes não tenha ainda atingido, da mesma maneira que na Europa, o coração da economia líder, os Estados Unidos. Se observarmos o desenvolvimento da luta de classes em caráter mundial desde 2008, poderemos constatar que ocorreu uma mudança de qualidade em praticamente todos os continentes. Poucas pessoas imaginariam a queda dos regimes da Tunísia, do Egito, do Iêmen e as lutas ainda em curso dos povos árabes e do norte da África e Oriente Médio contra os sistemas tirânicos nessas regiões.
Na Europa, onde o ajuste predatório promovido pelo capital é mais forte, tem ocorrido lutas em todos os países e, em muito deles, como na Grécia, se aproxima de insurreição popular. Até mesmo nos Estados Unidos ocorreram várias lutas sociais, em vários Estados, e um importante movimento social, o Ocuppy Wall Street, pode ter um desdobrando muito grande no futuro próximo. Na América Latina, as lutas sociais também estão ocorrendo de maneira efetiva, apesar de a região não ter sofrido o impacto da crise da mesma forma como ocorreu nos países centrais.
Até agora, no entanto, a resistência popular à ofensiva do capital não tem sido realizada de forma organizada na maioria dos países. Isso se deve ao fato de que, em função da crise do socialismo, com a queda da URSS, ocorreu uma desagregação generalizada política, orgânica e ideológica dos comunistas, o que afetou de maneira profunda o curso da luta de classe em nível mundial. Mas a crise é um fenômeno objetivo e se desenvolve independentemente da vontade das pessoas. Como a crise vai se aprofundar, o capital também vai procurar de todas as formas aprofundar o ajuste em caráter mundial, o que ampliará a resposta dos trabalhadores.
O futuro em disputa
A crise, por sua profundidade, dimensão e ofensiva do capital, compõe um labirinto de possibilidades tanto para o capital quanto para os trabalhadores. As crises em geral e as crises sistêmicas em particular, significam a hora da verdade da luta de classes. As classes fundamentais, burguesia e proletariado, entram em disputa aberta mesmo que a luta aparentemente não se torne explícita. Cada classe vai medir forças para implementar seu projeto de acordo com seus interesses e quando mais a crise se estender, maior será o acirramento da luta de classes.
Neste momento o capital está na ofensiva política, militar e econômica, mas seu calcanhar de Aquiles é a própria crise econômica que não consegue resolver. Conforme assinalávamos, a crise se desenvolve em três patamares, a saber: a crise econômica, que leva à crise social, que se os problemas não forem resolvidas leva à crise política. A crise econômica e a crise social estão na ordem do dia e a crise política é o próximo momento da crise sistêmica global, quando ocorrer a desarticulação monetária financeira global e um ambiente de salve-se quem puder, com novas quebras financeiras, protecionismo, ampliação da guerra cambial, ditadura aberta do capital e emergência do movimento social em função da desarticulação política do poder do capital.
Nada está descartado num ambiente de crise econômica, social e política do capital, nem mesmo um governo ao estilo fascista como na década de 30 na Europa, nem a revolução social. As crises funcionam como parteiras de uma nova época tanto para a burguesia quanto para o proletariado. Em função da crise e das lutas sociais, pode iniciar-se um período de repressão aberta contra os trabalhadores, sob o pretexto de manter a lei, a ordem e a estabilidade econômica. Mas também pode ocorrer uma resposta dos trabalhadores muito maior do que se imaginava no início da crise. Vale lembrar que as crises levam a um aprendizado acelerado das massas. Setores que antes pareciam adormecidos, irrompem na cena política de maneira inesperada, há uma mudança nas condições subjetivas de sua organização.
Isso não significa que toda crise sistêmica gere fascismo ou revolução. São apenas possibilidades. Mas a luta entre capital e trabalho em caráter mundial está num outro patamar. O mundo que emergirá após a crise será muito diferente da ordem estruturada em Bretton Woods. Não se pode prever qual será a classe vitoriosa nesse processo que se abriu com a crise de 2008, mas a construção de um mundo futuro será resultado do embate que as duas classes fundamentais travarão ao longo da crise sistêmica global.
1- Karl Marx. Contribuição à Crítica da Economia Política, pag. 6. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
2- Karl Marx. Manifesto Comunista, pg. 45. São Paulo: Boitempo Editorial, 1998.
3- Engels, Friedrich. Prefácio à edição inglesa do capital. Volume I, pg 33. São Paulo: Abril Cultural, 1983.
4- Engels, Friedrich. O capital. Vol. II. Pg. 28. São Paulo: Abril cultural, 1983.
5- Roubini, N. Mihm, S. A economia das crises – Um curso relâmpago sobre o futuro do sistema financeiro internacional. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2010.
6- Coggiola. O. As Grandes Depressões, 1873-1896 - 1929-1939, pag. 72-3. São Paulo: Alameda, 2009.
7- Dobb, M. A Evolução do Capitalismo, 9º. Ed., pag. 300. Rio de Janeiro: LTC, 2009.
8- Coggiola, O. As Grandes Depressões – 1876-18796 – 1929-1939, pag. 73-73. São Paulo: Alameda, 2009.
9- A extração do valor fora das fronteiras nacionais foi abordada anteriormente por Michalet, em seu livro capitalismo mundial (Paz e Terra, 1984), muito embora aquela análise não se referisse à questão da globalização atual.
10- A crise completa do sistema capitalista foi desenvolvida por Lauro Campos (A crise completa – a economia política do não. São Paulo: Boitempo, 2001), muito embora o autor não estivesse se referindo especificamente à crise sistêmica global em curso.
11- Costa, Edmilson. A crise mundial do capitalismo e as perspectivas dos trabalhadores. Resistir.info, 5 de fevereiro de 2009.
12- Trata-se da tese de pós-doutoramento que elaboramos em 2002 no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp.
13- Peter Chistodoulos, hoje administrador da dívida pública grega, também ex-presidente do Banco Nacional da Grécia e ex-trader da Goldman, também participou da maquiagem das contas gregas para favorecer a Goldman; Ottmar Issing, ex-presidente do Bundesbank e conselheiro internacional as Goldman; Peter Sutherland, ex-presidente da Goldman Internacional, e ex-integrante da Comissão de Competição da União Européia; e até mo criar dos BRICS, Peter O´Neil, influente personagem na formulação das políticas econômicas atuais, também é um homem da Goldman, pois presidiu a Goldman Sachs Asset Management.
14- Trata-se do artigo "A crise mundial do capitalismo e a perspectiva dos trabalhadores", publicado inicialmente em resistir.info e depois reproduzido em centenas de sites, blogs de vários países e, posteriormente na revista Novos Temas, do Instituto Caio Prado Junior.
[NR] No Brasil chamam de renda a qualquer espécie de rendimento e não apenas a renda propriamente dita.
Bibliografia
DEPARTMENT of COMMERCE . Bureau of the Census and Bureau of Economic Analysis, Table B, 106, 2011.
CAMPOS, Lauro. A Crise Completa – A economia política do Não. São Paulo: Boitempo Editorial
COGGIOLA, Oswaldo. As Grandes Depressões, 1873-1986; 1929-1939. São Paulo: Alameda, 2009.
COSTA , Edmilson. A Crise Econômica Mundial e as Perspectivas do Capitalismo. São Paulo: Novos Temas, No. 1, 2009.
_____________ A Globalização Neoliberal e as Novas Dimensões do Capitalismo. Tese de Pós-Doutoramento. IFCH-Unicamp, 2002.
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