O Brasil de Lula e o fatalismo dos fracos (Coluna do Ruy Braga no Blog da Boitempo)
Este mês de abril, Perry Anderson publicou um longo artigo sobre “O Brasil de Lula” na prestigiosa London Review of Books. Vale a pena conferir. Demonstrando grande familiaridade com as principais questões nacionais, o historiador inglês soube providenciar para o mundo anglófono uma útil e exitosa síntese de nossas recentes diatribes, especialmente, aquelas relacionadas ao período do “Mensalão”. Por um lado, afora detalhes que desconhecia sobre a história do projeto editorial da revista Piauí, as informações de nossa cena política são, como não poderia deixar de ser, largamente conhecidas. Por outro, o que realmente me chamou a atenção neste artigo é a conclusão contida no balanço, igualmente bem-sucedido, das principais interpretações a respeito da hegemonia lulista.
Ao longo de boa parte do texto, somos convidados a comparar três das mais paradigmáticas interpretações do “lulismo”: a hipótese do “subperonismo”, avançada por FHC, a hipótese do, digamos assim, “neofordismo” (devido à comparação das duas presidências de Lula àquelas de F. D. Roosevelt), sustentada por André Singer e a hipótese da “hegemonia às avessas”, desenvolvida por Chico de Oliveira. Em suma, se para FHC, Lula encarna, pura e simplesmente, a velha tradição populista latino-americana da manipulação das massas pela liderança carismática, barganhando a adesão popular por meio da caridade pública e da adulação, tanto para Singer, quanto para Oliveira, o lulismo representaria, ao contrário, um fenômeno social inovador. Vejamos…
Singer argumenta que o lulismo seria a expressão ideológica de uma fração de classe social, o subproletariado, que, após o período de redemocratização do país, mover-se-ia no campo político tendo em vista duas preocupações principais: a esperança de que o Estado possa diminuir a desigualdade social e o medo de que os movimentos sociais possam criar desordem política. Chico, ao contrário, entende que a chave-explicativa para a hegemonia lulista deve ser buscada na combinação do atual processo econômico da globalização financeira com o papel político deletério que o “transformismo” da alta burocracia sindical passou a desempenhar no país ao se inserir no jogo pesado do investimento capitalista, sobretudo, por intermédio do controle político, potencializado pela eleição de Lula em 2002, dos fundos salariais geridos como fundos de investimento.
Para o leitor bem informado, também, aqui, não haveria nenhum motivo para espanto. Estas são, em linhas bastante esquemáticas, as principais interpretações de que dispomos hoje no país acerca do atual momento hegemônico. A surpresa encontra-se não nas diferenças, e estas são abissais, existentes entre FHC, Singer e Chico, mas na suposta convergência entre eles: “Oliveira não contesta a caracterização da psicologia dos pobres empreendida por seu amigo, André Singer, (…). O subproletariado é assim mesmo como Singer descreveu: sem ressentimentos contra os ricos, satisfeito com os alívios modestos e graduais em suas condições de existência.” Apesar de não ter sido mencionado por Anderson, podemos, sem muita adjetivação, ampliar este consenso também para FHC.
Se de fato, como aponta corretamente o historiador inglês em outra passagem, “a última década não assistiu a qualquer mobilização das classes populares no Brasil”, ainda assim, “o medo da desordem e a aceitação da hierarquia, que mantêm os movimentos populares separados entre si na América Latina” deveriam ser, em primeiro lugar, demonstrados, para, então, podermos interpretá-los a contento. Não sei até que ponto Chico se reconheceria no retrato pintado por Anderson, mas, me parece razoável argumentar que, olhando para as pesquisas e resultados eleitorais recentes – além, naturalmente, da (aparente) falta de mobilização das massas trabalhadoras no país -, o subproletariado brasileiro está, ao menos até o presente, “acomodado”, ou seja, “satisfeito” com os modestos ganhos que o recente ciclo de relativa desconcentração de renda entre aqueles que vivem dos rendimentos do trabalho proporcionou.
Então, porque aquilo que parece meridianamente claro para as principais interpretações correntes a respeito do lulismo soa ensurdecedoramente desarmônico aos meus ouvidos? Ao ler o artigo de Perry Anderson lembrei-me de uma passagem dos Cadernos dos cárcere em que Antonio Gramsci medita sobre as permanentes reviravoltas das luta de classes: “Porque, no fundo, se o subalterno era ontem uma coisa, hoje não mais o é: tornou-se uma pessoa histórica, um protagonista; se ontem era irresponsável, já que era ‘paciente’ de uma vontade estranha, hoje sente-se responsável, já que não é mais paciente, mas sim agente e necessariamente ativo e empreendedor. Mas, mesmo ontem, será que ele era apenas simples ‘paciente’, simples ‘coisa’, simples ‘irresponsabilidade’? Não, por certo; deve-se aliás sublinhar que o fatalismo não é senão a maneira pela qual os fracos se revestem de uma vontade ativa e real”.
Estaria o subproletariado brasileiro realmente “satisfeito”? Se estiver, qual o significado dessa satisfação? Dialogando com os operadores de telemarketing, grupo subproletário pós-fordista que cresce exponencialmente no país desde 1998 – e que, durante o governo Lula, espalhou-se pelo Nordeste, vale observar -, tive várias oportunidades de verificar quão poderosa pode ser a noção de “fatalismo dos fracos como vontade real e ativa” para a análise sociológica crítica e reflexiva a respeito do lulismo. Mesmo Perry Anderson parece concordar com Gramsci quando afirma, ao final de seu referido artigo, que: “O extraordinário peso eleitoral das populações mais pobres, somado à gigantesca escala da desigualdade econômica, para não falar da injustiça política, fazem do Brasil uma democracia diferente de qualquer outra do Norte, mesmo aquelas onde as tensões de classe foram um dia muito mais altas, ou o movimento dos trabalhadores muito mais forte. A contradição entre essas duas grandezas só agora começa a operar. Caso o progresso passivo se transformasse em intervenção ativa, a história teria um outro final”.
Parece-me que o debate sobre o lulismo necessita urgentemente de uma boa dose de reflexão a respeito do “fatalismo dos fracos” a fim de examinar laboriosa e, sobretudo, dialeticamente, o significado racional dessa tal “satisfação” (momentânea) manifestada nas últimas eleições pelo subproletariado brasileiro. Caso contrário, podemos muito bem ser atropelados pela, na expressão do comunista sardo, “atividade empreendedora” dos subalternos. Definitivamente, não seria a primeira vez na história da sociologia…
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Ruy Braga, professor do Departamento de Sociologia da USP e ex-diretor do Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania (Cenedic) da USP, é autor, entre outros livros, de Por uma sociologia pública (São Paulo, Alameda, 2009), em coautoria com Michael Burawoy, e A nostalgia do fordismo: modernização e crise na teoria da sociedade salarial (São Paulo, Xamã, 2003). Na Boitempo, coorganizou as coletâneas de ensaios Infoproletários – Degradação real do trabalho virtual (com Ricardo Antunes, 2009) e Hegemonia às avessas (com Francisco de Oliveira e Cibele Rizek, 2010), sobre a hegemonia lulista. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às segundas-feiras.