O Brasil de Lula, entrevista com Franck Gaudichaud
O Brasil de Lula
por Evelyne Bechtold-Rogno, de Nouveaux Regards
Um balanço de oito anos do governo Lula: um social-liberalismo à brasileira, em um país que ganha importância maior na geopolítica regional e internacional. Conheça a análise do politólogo Franck Gaudichaud, doutor em Ciência Política e mestre em Civilização Hispanoamericana na Universidade Grenoble 3 (ILCEA), membro do Comitê de Redação da revista Dissidences e da Associação França-América Latina.
P - Como se situa o Brasil numa perspectiva geopolítica, especialmente com respeito aos demais países latino-americanos?
R – Algumas cifras são esclarecedoras: o Brasil representa em extensão a metade do território Sul-americano e sua população supera 190 milhões de habitantes. É um gigante sob todos os pontos de vista. Sua economia se situa, aproximadamente, no oitavo ou nono lugar mundial, logo atrás da Espanha. Faz parte do grupo BRIC: Brasil, Rússia, Índia e China, acrônimo que designa os grandes países chamados emergentes. Mas os dirigentes brasileiros rejeitam esse termo e consideram que representam uma economia “emergida”.
É um país que, no plano diplomático e geopolítico, sempre buscou a autonomia, multilateralismo e certa independência. Desde que Lula governa, esse aspecto se acentuou ainda mais. O Brasil quer jogar na primeira divisão. Reclama, por exemplo, um lugar no Conselho de Segurança da ONU. É também um dos promotores do G-20, que foi concebido como um fórum econômico mais amplo que o G-8 e aberto a alguns países do Sul.
A vontade de se desenvolver de forma independente frente ao poder estadunidense levou o Brasil a dizer “não” ao projeto imperial da ALCA em 2005, junto da Venezuela e Argentina. É um fato que o voto do Brasil era absolutamente determinante já que dele dependia a continuidade do projeto. Por outro lado, não existe dúvida de que o Brasil desempenha um papel predominante no Mercosul e, em geral, é um país chave para pensar a integração econômica dos países da América Latina.
Assim, o Brasil teve um papel essencial na recente entrada da Venezuela nesse mercado comum. No entanto, ainda que o Brasil preconize a autonomia, não defende um modelo de desenvolvimento alternativo ao capitalismo, exatamente o contrário. No campo econômico atua seguindo uma orientação capitalista desenvolvimentista e, em alguns aspectos, neoliberal. Em suas relações com os países da região, se detecta um claro desejo de hegemonia de proximidade. Alguns autores falam de “semi-imperialismo” ou de “imperialismo periférico”.
Várias empresas brasileiras são multinacionais que praticam uma política econômica agressiva com seus vizinhos: Petrobras, com o petróleo, ou Odebrecht, no âmbito da construção, provocaram conflitos importantes com países próximos, como a Bolívia ou o Equador... A mesma relação desigual se dá com o Paraguai, concernente aos recursos hidroelétricos comuns em Itaipu, onde o Paraguai foi privado de sua soberania no setor. A burguesia financeira e industrial brasileira (em especial a de São Paulo) defende assim suas prerrogativas no mercado mundial, o que, por outro lado, não impede os acordos estratégicos entre Brasil e Estados Unidos, com respeito, por exemplo, aos agrocombustíveis.
Do ponto de vista diplomático, a presidência atual tentou se esconder, ao apoiar os governos de esquerda ou centro-esquerda da região. Lula sempre apoiou Chávez (como, por exemplo, durante o golpe de Estado de abril de 2002), também mantém boas relações com o governo cubano e foi muito claro sobre a situação em Honduras diante do golpe contra o presidente Zelaya.
Além disso, Lula ameaçou não participar da Cúpula UE-América Latina de Madri, em maio, se Lobo – o presidente hondurenho golpista – estivesse presente (este último teve que desistir). Sua diplomacia favorece as relações Sul-Sul no plano diplomático, mas também no econômico. A China veio a ser um dos seus principais sócios econômicos: em oito anos, o comércio desse país com o Brasil aumentou 750%...
Seguindo um princípio de multipolaridade e buscando ter mais espaço no cenário mundial, o governo brasileiro rejeita as ingerências das grandes potências do Norte em assuntos dos países do Sul, o que explica seu apoio ao Irã frente aos Estados Unidos ou a denúncia das novas bases militares estadunidenses na Colômbia.
O Brasil investe no desenvolvimento da Unasul (União de Nações Sul-americanas), que responde à sua preocupação de independência política e consolidação econômica, com um projeto que prevê instaurar uma moeda e um parlamento comuns. Se se materializa, a dita união concentrará uma população de 360 milhões de habitantes e será, em extensão (17 milhões de km²), a maior união econômica, monetária e política do mundo.
Mas numerosos obstáculos ainda precisam ser superados, devidos às múltiplas competições econômicas intrarregionais e as tensões existentes entre os diferentes setores do capital, obstáculos que, paradoxalmente, foram criados pelas elites brasileiras ao defender sistematicamente seus interesses em detrimento da perspectiva de cooperação real.
As relações do Brasil com a União Europeia se inscrevem nessa preocupação de maior inserção competitiva no mercado mundial. O Brasil firmou com a França um importante contrato de fornecimento de armamento. O Mercosul está em negociação com a UE, ainda que se choque com o protecionismo europeu, sobretudo no terreno da agricultura.
P – Qual balanço se pode fazer ao final de oito anos de governo Lula?
R – Segundo vários analistas, as enormes decepções que seguiram à chegada do PT e do Lula ao governo em 2002 eram previsíveis. É verdade que uma parte da esquerda e dos movimentos sociais não havia analisado até que ponto a natureza e a orientação política do PT tinham mudado entre o começo dos anos 80 e a vitória eleitoral de 2002.
O PT foi fundado em fevereiro de 1980 a partir de uma oposição coletiva e popular radical à ditadura militar. Desde o final de 1978, sindicalistas, intelectuais, dirigentes de movimentos populares falavam da necessidade de criar no Brasil um novo partido independente, de classe e abertamente socialista. O PT foi um dos maiores partidos operários do mundo e continua sendo o partido de esquerda mais importante da América Latina.
No início, reuniu vários setores sociais mobilizados: sindicalistas, é certo que procedentes principalmente da Central Única dos Trabalhadores (CUT), que representam sua coluna vertebral; militantes de movimentos associativos, de feministas, de bairros; mas também muitas comunidades cristãs de base, inspiradas na Teologia da Libertação. Em 20 anos, e depois de três derrotas eleitorais sucessivas nas eleições presidenciais, o partido mudou muito. De um programa inicial anticapitalista, que prometia uma alternativa radical, o discurso se tornou cada vez mais moderado, de centro-esquerda.
Em 2002, o slogan da campanha de Lula era “Paz e amor”... Temos aqui um novo exemplo do que o britânico Perry Anderson analisou na Europa: “a esquerda ganhou seus galões de partido de governo depois de ter perdido a batalha das ideias”. O PT sofreu uma transformação de sua composição social, deixando um lugar cada vez maior para as classes médias e intelectuais num processo de institucionalização-burocratização do seu aparato e de sua direção, progressivamente ocupada pelos parlamentares e pelos diferentes eleitos em detrimento dos sindicalistas de ontem.
Apesar de tudo, a vitória de Lula em 2002 despertou muitas esperanças no país e inclusive em toda América Latina. Mas chegou o momento de fazer um balanço. O sociólogo Emir Sader fala do “enigma Lula”, que escaparia dos julgamentos já feitos. Outros sociólogos como Michael Löwy ou Atilio Boron são mais críticos, e este último aponta que esses dois mandatos foram marcados pelo “possibilismo conservador”. Seguramente, é possível constatar que Lula renegou os ideais do PT de 1980 em prol da estabilidade macroeconômica e dos interesses do capital, que ficaram muito acima das reformas sociais prometidas.
Há sinais evidentes de continuísmo da política de F. H. Cardoso (o governante anterior), com o argumento de que a salvação do Brasil continua sendo o mercado mundial, a exploração massiva de matérias primas e a abertura do país (e de sua mão de obra) para as transnacionais. Neste sentido, o “êxito” econômico é real: a economia do Brasil é uma das mais dinâmicas do mundo, com mais de 5 % de crescimento anual, e vista de Brasília a crise só foi uma “marolinha”, em palavras do próprio Lula.
Sem tocar na estrutura social, e com o aplauso dos grandes empresários e do FMI, o governo do Brasil pratica taxas de juros muito elevadas, para grande beneficio dos capitais especulativos internacionais. Este “êxito” tem como contraponto a manutenção, inclusive o incremento, das desigualdades sociais e de renda, o que constitui um dos principais problemas democráticos reais do país. O Brasil é uma espécie de “Suíça-Índia”, que reúne no mesmo território rendas extremas.
Mesmo assim, Lula não atuou sobre essas desigualdades estruturais: durante seu mandato, a renda dos mais pobres aumentou de maneira notável, porém a dos ricos ainda mais. Segundo o economista Pierre Salama, o número de brasileiros com mais de um bilhão de dólares em ativos financeiros cresceu mais de 19%, somente entre 2006 e 2007.
Outro problema ainda maior é que o Brasil embarcou em uma política de agronegócios, que inclui o cultivo intensivo de organismos geneticamente modificados e de agrocombustíveis, para grande alegria de empresas como a Monsanto, acolhidas com os braços abertos, mas com consequências sociais e ambientais desastrosas. Isto foi o que levou a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, a se demitir.
Nestas condições, a grande reforma agrária tão esperada, tão anunciada durante a campanha, não foi cumprida. No Brasil, não poderá haver desenvolvimento alternativo, democrático e sustentável sem uma reforma agrária radical. Trata-se de um problema incontornável. Toda esta política foi um jato de água fria para os movimentos sociais e em particular para o Movimento dos Sem Terra (MST), que é o maior movimento social do continente e um dos mais interessantes por suas formas de auto-organização e da impressionante educação popular.
Sem dúvida, essas políticas públicas conservadoras foram favorecidas pelos obstáculos institucionais do Estado federal que é o Brasil. O PT é minoritário na Câmara de Deputados e no Senado, e só é majoritário em três estados. Desde o princípio, tentou aliar-se com a direita liberal e latifundiária para governar, o que acentuou sua imobilidade, em particular do ponto de vista da política agrária.
Ademais, a exigência de estabilidade econômica e o respeito à grande propriedade privada eram argumentos aos quais Lula era muito sensível no momento de sua eleição, como mostra a Carta aos Brasileiros que publicou durante a campanha. Seus principais assessores econômicos haviam saído das escolas do pensamento neoliberal estadunidense, e a contra-reforma do sistema de pensões dos funcionários foi uma das primeiras medidas que tomou seu governo.
Esta revisão das conquistas sociais dos funcionários conduziu à aparição das primeiras diferenças no seio do PT e levou à criação do PSOL, em torno das figuras da esquerda como Heloísa Helena ou Plínio de Arruda Sampaio. Mesmo assim, seria errado esquecer que Lula continua sendo extraordinariamente popular, sobretudo entre as classes mais pobres (particularmente do Nordeste). Levou a cabo vários programas sociais assistencialistas (especialmente durante o segundo mandato), muito rentáveis eleitoralmente, como o Bolsa Família, que conseguiu tirar da miséria extrema mais de 20 milhões de brasileiros.
A cobertura social e os salários mínimos também foram ampliados e a criminalização dos movimentos sociais por parte do Estado baixou consideravelmente, abrindo espaços de diálogo e inclusive de cooptação de muitos dirigentes sociais e sindicais. Não se deve ignorar que os grandes grupos midiáticos estão nas mãos de uma oligarquia arcaica, ainda ferozmente hostil a Lula, que continua a considerá-lo um sindicalista procedente da esquerda, e por isso tão potencialmente perigoso em razão da composição de sua base social.
Em resumo, poderia dizer que a política de Lula conjuga uma política macroeconômica neoliberal e uma política social assistencialista centrada na luta contra a extrema pobreza, dando finalmente estabilidade ao sistema, razão pela qual o ex-sindicalista é considerado por Wall Street e por grande parte das elites como um dos melhores presidentes da história democrática do país. Poderia qualificar sua gestão de “social liberalismo à brasileira” ou talvez como fazem alguns autores de “liberal-desenvolvimentismo”, posto que o Estado brasileiro continua querendo regular uma parte da atividade econômica do país.
P – Como vê o futuro do país?
R – Lula não pode voltar a se apresentar nas próximas eleições de outubro. Para o PT, o desafio é fazer “lulismo sem Lula”, captar sua popularidade, evidentemente com poucas mudanças na orientação política e econômica. A candidata atual é Dilma Rousseff. Economista de formação, chefe do gabinete ministerial de Lula, uma espécie de primeira-ministra, militou na juventude nos movimentos de luta armada contra a ditadura. Pouco carismática, subiu muito nas pesquisas graças ao apoio decidido de Lula, e é provável que ganhe as eleições no primeiro turno frente ao principal candidato da oposição, José Serra (social-democracia liberal).
À esquerda do PT, o PSOL apresenta Plínio de Arruda Sampaio, lutador social incansável e grande defensor da reforma agrária. Mas, infelizmente, não haverá candidato comum da esquerda radical, em particular com o PSTU (Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado – trotskista) e o Partido Comunista Brasileiro (PCB). Marina Silva será a candidata dos verdes, encarnando a ecologia liberal.
Apesar da crítica de uma parte da esquerda, é provável que o PT consiga o apoio de importantes setores populares e daqueles que não querem a volta de uma direita repressiva e do centro neoliberal encarnado pela candidatura de Serra. A médio prazo, creio que é interessante ver o que sucede no Movimento Sem Terra, dos sem teto e das organizações sindicais. Este verão se tentou criar uma nova central sindical classista, na perspectiva de um sindicalismo mais independente que a CUT frente ao poder e que congregue operários combativos junto a estudantes, feministas e coletivos afro-brasileiros e indígenas. Este primeiro passo não deu certo. Mas acredito que este tipo de recomposição “desde baixo” pode fazer surgir a esperança de uma renovação das alternativas anticapitalistas no Brasil, terra do Fórum Social Mundial e da consigna “outro mundo é possível”.
9/10/2010
Fonte: ViaPolítica/Tlaxcala/Noveaux Regards
Fonte: https://www.cetri.be
Título do original em francês: “Bilan Lula: Um social-liberalisme a la bresilienne”
Evelyne Bechtold-Rogno é jornalista do Comitê de Redação da revista Nouveaux Regards, de Paris.
Contato com o entrevistado: franck.gaudichaud@u-grenoble3.fr
URL desta entrevista em Tlaxcala: https://www.tlaxcala-int.org
Data de publicação do texto original em francês: 29/09/2010
Em espanhol: https://www.cetri.be
Traduzido por Mariana Ferreira Gomes Stelko, para Tlaxcala