O capital comete o crime. A ocasião faz o bandido, de Maria Orlanda Pinassi
O capital comete o crime. A ocasião faz o bandido
A superlotação dos presídios é a realidade a ser agravada no mundo regido pelo capital que, em escala crescente, precisa, para cada operação, de uma mão-de-obra não somente desqualificada, mas totalmente destroçada e descartável – no sentido mais radical que se possa dar ao termo.
por Maria Orlanda Pinassi
A propósito da ofensiva do PCC, que desde o último mês de maio vem estarrecendo a “opinião pública” e ocupando os espaços mais importantes da mídia nacional e internacional, sugiro um ângulo menos casual para debater um problema fundamentalmente estrutural.
Um bom ponto de partida pode estar em “Delícias do crime” (Editora Busca Vida, 1988), do marxista belga Ernst Mandel (1923-1995), que considera o romance policial o gênero que, mesmo sem querer, melhor se aproxima da natureza mais íntima da prosaica realidade burguesa.
“A história do romance policial é uma história social, pois aparece entrelaçada com a própria história da sociedade. Se formularem a pergunta: “por que a história social deveria estar refletida na história de um gênero literário específico?”, a resposta será: porque a história da sociedade burguesa é também a história da propriedade e da negação dessa propriedade – ou, em outras palavras, o crime; porque a história da sociedade burguesa é também a crescente e explosiva contradição entre as necessidades ou paixões individuais e padrões mecanicamente impostos de conformismo social; porque a sociedade burguesa, e por si mesma, gera o crime, tem origem no crime e conduz a ele; ou talvez porque a sociedade burguesa seja, em resumo, uma sociedade criminosa?”
Pois bem, para intelectuais de esquerda que, como eu, costumam freqüentar o gênero, “Delícias do crime” oferece argumentos que, se não anulam completamente, ao menos ajudam a minimizar o constrangimento pelas horas dedicadas a este tipo de “subliteratura”, condenada por sua ligeireza pequeno-burguesa e alienada. O livro reconta a história do romance policial a partir de um ponto de vista materialista. Assim, com o fito de compor uma história social do romance policial, Mandel redime seus “pares desviantes”, restabelecendo a correspondência indissociável entre crime e contradição social, refletida para as mais diversas páginas literárias, da ficção e da não-ficção, dos últimos quatrocentos anos.
Do pecado original à sua negação
No entanto, é Karl Marx quem puxa o fio da meada lembrando que o conceito liberal de crime – o mesmo que há tanto tempo fornece (e, ironicamente, oculta) o substrato classista da pena contra os que violam a propriedade privada – tem suas origens fincadas nos mais repugnantes atos de usurpação e violência.
Por exemplo, quando narra as atrocidades da acumulação primitiva, Marx destrói a passividade com a qual se convencionou descrever a formação da classe trabalhadora. Os fatos desmistificam o sentido fatalista e, no mínimo, estranho de libertação dado a um movimento vivo e muito violento que expropriou e transformou produtores diretos numa imensa massa de indivíduos despossuídos, lançados a mais absoluta pobreza e à dependência exclusiva do mercado de trabalho.
Da pilhagem inicial aos novos proprietários sobreveio a imperativa necessidade de legitimar e, com isso, potencializar os seus já fabulosos resultados. A regência do capital impunha a reprodução permanente e sempre ampliada daquele primeiro – e já concluído – movimento de expansão e acumulação de riquezas, impulsionada então por uma nova centralidade fundamental: a exploração do trabalho “livre” e assalariado que, até finais do século XIX, conviveu e até mesmo se associou perfeitamente à exploração do trabalho escravo nas colônias (1). Isso significa que a reprodução do movimento necessário à acumulação é também a reprodução da espoliação, do roubo, do logro e, principalmente, da extração do sobretrabalho empregando múltiplos métodos, quase todos muito violentos. Sobre isso, aliás, é importante lembrar que os métodos privados empregados no princípio do processo de desenvolvimento da acumulação jamais caíram em desuso, ao contrário, a eficiência de seus resultados foi complementada por outros métodos, alguns oficializados pelo Estado, muitos dos quais tão truculentos quantos os predecessores (2).
Por isso mesmo é que as primeiras leis precisaram converter o pecado original na mais sagrada das virtudes na terra, abatendo-se com ira sobre os antagonistas da “ordem” que se pretendia instaurar. Desde então, toda concepção do direito haveria de regular e vigiar a relação de dominação do capital sobre o trabalho, essa sim essencial ao funcionamento da sociedade burguesa, tentando manter, na medida do possível, uma distância segura entre os indivíduos pertencentes às duas esferas. Por essa razão, e não por outras, os sem-propriedade tiveram de ser criminalizados na história do capital, até porque a miséria que os reveste é a mais transparente prova da desigualdade material, a mais absoluta conseqüência do enriquecimento sempre ilícito dos proprietários privados (3). A criminalização, portanto, é imprescindível diante do espectro sempre ameaçador de uma possível manifestação da consciência de classe alienada, sobretudo da riqueza por ela criada.
Mas, tanto quanto os métodos privados, as leis dos séculos XVI e XVII também têm as marcas da mais feroz brutalidade, razão pela qual eram imediatamente identificadas como “a expressão da vontade dos conquistadores, enunciando como eles querem governar seus súditos”. O grande desafio dos legisladores liberais dos séculos seguintes foi ocultar a sua verdadeira objetividade classista, a fim de “pacificar” as relações contraditórias, neutralizando a sua violência potencial. O trunfo mais utilizado para “normalizar” a situação foi impregnar o cotidiano dos homens com uma ilusória abrangência universal dos direitos. Com isso, os reais problemas sociais vão deixando de ser apreendidos como produtos de uma gigantesca usurpação primitiva e passam a ser aceitos com inconsciente resignação. Mais do que aceitação, os indivíduos são levados a assumir a responsabilidade por seus “fracassos” e “sucessos” por meio de atributos puramente subjetivos e abstratos.
A “naturalização” dessa lógica societal seria assegurada pela constituição de múltiplas frentes: 1) a mais eficaz delas foi obtida da ardilosa ideologia liberal pós-revolucionária que habilmente transmitiu por todos os poros da vida produtiva e reprodutiva dos indivíduos, uma confortável (e falsa) percepção de que as oportunidades – ainda que restritas ao âmbito da política – seriam iguais para todos os cidadãos; 2) as leis trabalhistas e as instituições correlatas transferem para o Estado o controle das insatisfações e reivindicações mais imediatas da classe trabalhadora impondo, com isso, os limites legais da luta operária, mantida sempre na esfera das práticas defensivas ou da inquestionável realização do trabalho alienado; 3) em tempos de “paz”, a função policialesca do Estado – confirmando-se como uma das bases fundamentais do sistema sócio-metabólico do capital – mantém alerta todo o seu efetivo humano e tecnológico. Quando, porém, nem uma, nem outra logra êxito em conter as manifestações mais radicais e latentes da contradição social, prontamente o aparato repressivo oficial aciona seus mecanismos mais violentos.
Como regra, as prisões foram concebidas e, de fato, utilizadas para abrigar o pobre “desocupado, ocioso”, na verdade, o trabalhador – livre ou escravo –, desempregado, faminto, insurrecto, de qualquer modo, previamente condenado, sem apelação, e jogado na vala comum da gentalha maltrapilha e depravada, alheia aos ensinamentos dos céus e rebelde à lei dos homens, enfim, a populaça que habita o mundo das classes perigosas. Isso significa que, a partir daquela inversão da culpa pelo pecado original, a classe operária, sempre tratada como “caso de polícia”, vem há séculos expiando o delito no qual foi desde o princípio a parte vitimada.
A verdadeira história da acumulação primitiva foi colocada no limbo para ser esquecida, favorecendo com isso a troca do papel de meliante. Assim, com o passado “lavado” da memória, predominou sobre o sistema a noção de que cumpria uma heróica “missão civilizatória”. A soberba auto-imagem do capital – e sua dinâmica irrefreável capaz de abalar, transformar e submeter os cantos mais remotos do planeta -, teve ainda outros pontos de sustentação mais ou menos definidos: 1) a sua gigantesca capacidade de liberar forças até então inimagináveis de produção e de criação de riquezas graças aos progressos derivados do trabalho abstrato e da permanente revolução tecnológica; 2) as freqüentes investiduras do centro sobre a periferia, sempre justificadas como a supremacia da liberdade sobre a reação e o atraso; e 3) os princípios liberais de democracia e república, ideais que, como Deus, ninguém jamais viu, mas, acima de tudo, ideais obstinadamente perseguidos até mesmo por aqueles que pouco acreditam na sua efetiva – e falaciosa – representação na sociedade de classes.
Presente e passado: uma reconciliação pelo crime
Durante parte considerável do período de ascendência do sistema do capital, os apologetas procuraram destacar as positividades do seu movimento histórico, mantendo-as relativamente afastadas das atividades ilícitas mais flagrantes. No entanto, muito antes dessa longa fase de ascensão do capital atingir um estado de esgotamento irreversível – fato que ficará evidente nos anos de 1970 –, o quadro histórico das primeiras décadas do século passado já admitia a forte presença de um universo dominado pelo crime organizado, um submundo responsável pela banda podre, mas ainda considerada “paralela” à sociedade burguesa.
Aqui remeto o leitor novamente a Mandel e com base em suas investigações sobre o mundo do crime refletido no romance policial do século XX se observa que nesse mundo não havia mais lugar para a genialidade investigativa de um indivíduo que, sozinho, desvendava os casos mais hediondos. O declínio do detetive astuto leva consigo o plano privilegiado do crime autoral – tenha sido ele passional ou premeditado –, e isso coincide com a explosão das atividades criminosas que adotam a racionalidade do capital, mais adequada à ampliação das oportunidades que lhes foram abertas pela dinâmica imperialista. A reestruturação é progressiva e tem base nos rigores da divisão social do trabalho; nesta medida, os produtos do crime organizado se originam do trabalho abstrato, objetivado através de uma intrincada e cada vez mais complexa rede de relações sociais. A grande vantagem é a obtenção de uma produtividade muito mais eficiente e lucrativa, além de uma conveniente invisibilidade, pelo menos para a parte mais poderosa dos setores envolvidos em sua estrutura hierárquica.
Porém, à medida que avançam as décadas e os fatos – potencialmente brutais e irracionais – do século XX, o lado do capital mantido à distância das páginas policiais começa, por fim, a freqüentá-la, explicitando suas próprias e profundas ramificações com o submundo que efusivamente prometeu combater. Ao invés de erradicá-lo foi bem mais conveniente associar-se a ele. Coincidentemente ou não, o interesse por essa sociedade se intensifica na razão inversa à decadência do Estado de bem estar social como modelo provedor de uma expansão sem (maiores) problemas para o capital. Incapaz de controlar as contradições cada vez mais agudas do seu sistema de funcionamento sociometabólico, o capital atinge, enfim, os limites dos seus defeitos mais estruturais, fato que dá origem a uma crise de proporções jamais vistas antes e, o que é ainda mais grave, insolventes no interior dessa mesma (des)ordem social.
Prova disso, é que diante da imperativa necessidade de manter a reprodução ampliada do capital e da impotência das políticas que até então garantiram a sua marcha incansável, o cenário vem apontando, pelo menos desde a década de 1970, para mudanças que parecem ativar o seu explosivo potencial de destruição (e só destruição), uma clara ruptura com a noção schumpteriana de que o capitalismo é um sistema que funciona mediante a destruição produtiva. Os efeitos mais nefastos das medidas tomadas seriam sentidos principalmente pelos trabalhadores, progressivamente golpeados em seus mais elementares direitos, conquistados através de duros enfrentamentos sindicais e políticos. A degradação se completa com o desemprego estrutural e a precarização sem limites do trabalho, condições necessárias ao novo padrão de acumulação exigido.
Nesse quadro, o capital abandona até mesmo os mais agonizantes escrúpulos – incluindo os ideológicos. Conseqüentemente ampliam-se os espaços irreversivelmente ocupados pelas atividades tingidas pelo crime. A prova disso está no inegável poder econômico e político que hoje representa o tráfico de drogas e de armas – o lado mais obscuro e eficiente do império constituído pelo complexo industrial militar –, no interior da “coisa pública” e dos negócios privados ditos legais ou de fachada.
A cena, enfim, mostra uma situação extremamente problemática, na qual “(...) o crime organizado, em vez de ser periférico à sociedade burguesa, emana crescentemente das mesmas forças propulsoras sócio-econômicas que governam a acumulação de capital em sua totalidade: propriedade privada, competição e produção generalizada de bens (economia monetária generalizada). [...] Porém, um mundo de ricos é também um mundo de gângsteres, especialmente porque os principais gângsteres se tornaram cada vez mais ricos em termos relativos e são com certeza qualitativamente mais ricos do que o policial mais rico ou a massa esmagadora de políticos. (...) O problema econômico chave para o crime organizado era encontrar saídas legítimas para o capital ilegalmente acumulado. Sob o capitalismo tardio, isso é apenas um reflexo específico – talvez paradoxal e até grotesco – de um problema mais geral: o encontro de áreas de investimentos adequados para massas de capital excedente. Entretanto, os dois fenômenos não se encaixam simplesmente, mas na verdade tendem a fluir um dentro do outro, se interpenetrando. O dinheiro ilegal é “lavado” através de depósitos bancários localizados – geralmente, embora não unicamente – em áreas isentas de impostos. Porém o equivalente legal do dinheiro “quente” – i. é, capital excedente – tende da mesma forma a ser depositado nos mesmos bancos, nas mesmas áreas isentas de impostos. O dinheiro sujo e o limpo se confundem nas folhas de balancetes, como também na busca da mais-valia, através de qualquer meio possível” (4).
A hierarquia classista e trágica do crime
Aqui chego ao ponto que me fez refletir sobre a essencialidade do crime para a sociedade burguesa e a perspectiva de classe tão fielmente reproduzida em sua hierarquia. Sim, porque é no interior de toda essa discussão que se deve tratar a realidade da explosiva população carcerária que, apesar de confinada, vem apavorando com as notícias sobre as rebeliões que organiza e as ações que efetivamente lidera nas ruas. Essa perspectiva, portanto, é muito diferente do senso comum que analisa o problema a partir dele próprio, como se a sua existência fosse algo em si ou, quando muito, um problema de má gerência do Estado, reflexo da corrupção que emana da representação política (no Brasil e mundo), um problema de educação, enfim.
Á essa altura da discussão realizada, uma questão fundamental é saber: quem são os indivíduos amotinados e organizados em torno do PCC? São bandidos? Quanto a isso parece não haver muita dúvida. Todos eles, de algum modo, violaram, muitas vezes violentamente, regras essenciais e necessárias à sociabilidade humana, mesmo quando submetidas à lógica do capital. Aqueles indivíduos, amontoados em celas como animais no abatedouro, sujeitos às piores humilhações e violência física, um dia roubaram, traficaram, mataram, realizaram, em muitos dos casos, o trabalho sujo reservado à “escória” de uma estrutura social, seja ela legal ou ilegal.
Assim, tanto quanto Sherlock ou Hercule Poirot o fariam, eu pergunto: qual o motivo do crime cometido por eles? Pois bem, aqui reside toda a diferença entre os bandidos-que-vão-para-a-cadeia e os bandidos-que-não-vão-para-a-cadeia, entre os bandidos visíveis e os bandidos invisíveis, estes em geral assentados nos setores mais importantes, e até mesmo insuspeitos, da sociedade capitalista (5). Em princípio, portanto, parece que para aqueles que não-vão-para-a-cadeia, o crime é a oportunidade de acumular e fortalecer ainda mais a condição de burguês a fim de conquistar todos os benefícios materiais e imateriais que correspondem a esse status quo, cujo pré-requisito é a propriedade privada, independentemente dos critérios de moral e de princípios éticos, hipocritamente constituídos para a sociedade de classes. Para os que vão-para-a-cadeia, o trabalho desenvolvido no interior da atividade criminosa constitui um meio de reproduzir as condições de sua vida de bandidos que, conscientemente, vão-sempre-voltar-para-a-cadeia.
O bandido visível nasce em bairro de pobres, é subnutrido, aplaca a fome com cola, com crack, não estuda, apanha e é submetido a sevícias em casa, na rua, na Febem, mais tarde, nas delegacias de polícia. Aprende a empunhar a arma desde cedo, único meio de afirmação da sua existência e da sua reduzida auto-estima. A violência sempre foi a mediação mais familiar que o liga à vida e no seu mundo, tão óbvio quanto manejar uma arma, não há lugar para a fantasia, para o glamour, nem para o romance; toda perspectiva é imediata, sem rodeios, inclusive a necessidade premente de recorrer ao crime.
Mas isso está muito longe de ser uma espécie útil de darwinismo social, como nos faz supor a imprensa que trata de modo tão leviano a questão. Paira, então, a dúvida: antes de serem simplesmente os bandidos que realizam o trabalho sujo do mundo em que vivemos, de onde eles vêm? Evidente que sua árvore genealógica não pactua consangüinidade com as elites. Como regra, o passado é rude e proletário, condição progressivamente negada pelo capital legal em sua fase de decadência histórica. Assim, durante a crise estrutural o capital os expulsa pela porta da frente para readmiti-los pela porta dos fundos, sob as piores e mais precarizadas condições possíveis. Para eles, inexistem leis a regulamentar limite de idade, jornada de trabalho, insalubridade. A situação, enfim, remete aos piores dias vividos pela classe trabalhadora nos primórdios da revolução industrial. E sobre isso, vale ainda pensar nas campanhas que visam coibir o trabalho infantil, enquanto a própria sociedade condena os “aviõezinhos” do tráfico.
Esses homens e mulheres inexistem para a sociedade, a não ser quando saem dos morros, favelas, presídios para ameaçá-la. É nestas ocasiões que os “pacatos cidadãos de bem” despertam sua ira para ressuscitar a pena de morte, o discurso da autoridade, da repressão (6).
Para concluir, arrisco ainda algumas palavras. A organização do PCC, a partir dos presídios, confere autenticidade às suas reivindicações enquanto organização de presidiários. Sua expectativa não é revolucionária, não visa romper as hierarquias, seu inimigo está na polícia, seu algoz imediato. Não há plano de ruptura com a estrutura mais ampla do crime organizado do qual deriva sua própria condenação; antes, suas ações parecem querer atenção para as condições do cárcere numa tentativa de impor regras e, de algum modo, minimizar a barbárie do seu cotidiano.
Sua capacidade de mobilização, bem como o estabelecimento de regras sobre aquilo que eles mesmos reivindicam, se contrapõe a um Estado absolutamente incompetente e manietado pelo compromisso indissolúvel que estabeleceu com a lógica que oferece impunidade e privilégios aos bandidos graúdos. Ao que tudo indica, os integrantes do PCC fazem um excelente uso do seu peculiar tempo livre no confinamento, caso contrário suas ações não seriam tão bem articuladas dentro e fora dos presídios.
Por tudo isso, fica ainda mais flagrante a inutilidade das pesquisas científicas “especializadas” em violência, porque o imenso volume de dados que produz não costuma ter lastro histórico e porque seu objetivo é prover as instituições governamentais e não-governamentais de “informações” para políticas que nunca chegam a ser implementadas. Enquanto isso, o crime mais amplo e de resultados infinitamente mais trágicos para a humanidade permanece nas sombras projetadas pelo cinismo dos seus apologetas.
A superlotação dos presídios é a realidade a ser agravada no mundo regido pelo capital que, em escala crescente, precisa, para cada operação, de uma mão-de-obra não somente desqualificada, mas totalmente destroçada e descartável – no sentido mais radical que se possa dar ao termo. Mas, se quisermos de fato um futuro qualitativamente diferente desse em que vivemos, não podemos ignorar a existência desse mundo esquecido, que foge à regra do que sempre pensamos e que desafia a tenacidade da nossa convicção socialista.
Notas
1) Ver a respeito “A jornada de trabalho”. In. Karl Marx. O capital, capítulo VIII, seção III, tomo I. São Paulo, Nova Cultural, 1988, p. 181-2.
2) “O progresso do século XVIII consiste em a própria lei se tornar agora veículo do roubo das terras do povo, embora os grandes arrendatários empreguem paralelamente também seus pequenos e independentes métodos privados”. (Karl Marx. A assim chamada acumulação primitiva. In. O capital, capítulo XXIV, seção VII, tomo II. São Paulo, Nova Cultural, 1988, p. 259).
3) É absolutamente verdadeira a frase de Proudhon: toda propriedade é um roubo.
4) Mandel, ibidem, p. 180-1.
5) Só para citar alguns, eles podem estar nas grandes e fictícias corporações como Enron, podem estar praticando o punguismo nos conglomerados financeiros, os lobbies cada vez mais purulentos e desastrados que caracterizam as ações de representatividade em todas as esferas políticas, e até realizando pequenos golpes contra o infeliz que “optou” por pautar sua miserável vida pelas regras que definem tanto sua “devoção religiosa” como aquelas que regem os “direitos do cidadão”.
6) A mídia irresponsável que apavora a população é a mesma que adoraria lançar uma revista cuja capa estamparia Marcola e Hebe Camargo na Ilha de Caras.
Maria Orlanda Pinassi é professora do Departamento de Sociologia da Unesp de Araraquara, membro de comitê de redação da revista Margem Esquerda e autora do livro "Três devotos, uma fé, nenhum milagre" (Ed. Unesp).