Lincoln Secco: O bonapartismo periférico
O Bonapartismo Periférico
Lincoln Secco
Depois do recrudescimento da Guerra Fria, da independência dos países coloniais e das Revoluções Cubana e Argelina, os Estados Unidos (EUA) aumentaram seu grau de intervenção no subcontinente latino americano para respaldar ditaduras civis e militares. A sucessão de golpes e guerras nas colônias já evidenciava que a Guerra era fria apenas do ponto de vista do então chamado primeiro mundo.
Este subperíodo da história de “Nossa América” perdurou até que os efeitos da crise do petróleo fizessem os EUA mudar a sua política de intervenção direta na América Latina e permitisse a “redemocratização”. Os norte-americanos dispersaram seus interesses e ficaram acuados depois da derrota no Vietnã, da redemocratização do sul europeu, da presença soviética no Afeganistão e das revoluções no Irã e na Nicarágua.
Inaugurou-se aqui um período tumultuado de transições democráticas lideradas por forças políticas que constituíam uma oposição legal aos regimes anteriores. Na verdade tais oposições reconheceram a necessidade de pactuar com aqueles regimes.
Na Argentina, a derrota militar na Guerra das Malvinas permitiu que Raul Alfonsin tentasse colocar os militares no banco dos réus, mas isso só seria feito pelo casal Kirchner muito tempo depois. No Chile, a transição foi controlada por Augusto Pinochet e só mais tarde a tutela militar se viu ameaçada, ainda assim de maneira insuficiente.
Os governos que ascenderam nos anos oitenta foram derrotados pela hiperinflação e por sua tibieza, embora incorporassem forças democráticas como na Argentina da União Cívica Radical, no Brasil com o PMDB e no Peru com a APRA (Aliança Popular Revolucionária Americana) no primeiro governo de Alan Garcia entre 1985 e 1990.
A transição fracassada abriu espaço para governos que se caracterizaram pela valorização do câmbio (ou às vezes pela dolarização), privatizações, abertura comercial e contenção das greves. Alguns tentaram prolongar-se com mudanças constitucionais para aprovar suas reeleições (Carlos Menen, Fernando Henrique Cardoso e Alberto Fujimori tentaram isso em diferentes contextos). Tais governos foram politicamente derrotados. Fernando Collor e Carlos Andrés Perez sofreram impeachment em 1992 e 1993 respectivamente. Os demais foram vencidos em eleições ou não conseguiram eleger sucessores de seus partidos.
A eleição de Hugo Chavez em 1998 abriu uma nova etapa pós-neoliberal. Mas o afixo “pós” ainda revela uma impotência explicativa. Tratava-se na verdade de variante do velho liberalismo econômico embora a população fosse levada pelas oposições e pela crise econômica de 1998 a votar contra o assim chamado “neoliberalismo”.
Os governos que vieram depois foram considerados nominalmente progressistas. Mas eles carregam em si a dubiedade de uma origem que não é de esquerda. Num primeiro grupo cuja peculiaridade é a oratória de confronto com os Estados Unidos, Hugo Chávez e Hollanta Humala eram oficiais superiores do Exército, participaram de rebeliões contra o governo no período “neoliberal”, foram processados ou presos e, depois, chegaram ao poder pelo voto com posições ligeiramente de esquerda sob um manto nacionalista. Humala foi mesmo fiel escudeiro da política repressiva de Alberto Fujomori.
Mas mesmo um civil como Corrêa merece ser destacado. Ele não tem uma trajetória na esquerda e nem popular. Oriundo da classe média na cidade portuária de Guaiaquil, ele estudou nos EUA e na Europa. Sintomaticamente, uma parte dos presidentes citados é de uma mesma geração. Correa nasceu em 1963, Humala em 1962, Morales em 1959 e Chavez em 1954.
O presidente de El Salvador, Mauricio Funes (1959) não se enquadra na retórica mais radical dos demais, teve o apoio da Frente Farabundo Marti de Libertação Nacional e pertence ao grupo de presidentes latino americanos de oratória moderada, embora todos eles apresentem momentos de discurso rococó entremeado de influências socialistas, cristãs ou da tradição indígena de resistência. Funes se aproxima muito mais da influência de Lula.
Mujica (1934), Daniel Ortega (1945) e Lula (1945) têm três características comuns: são de uma geração mais velha; vieram de partidos ou movimentos de esquerda que tiveram alguma consistência ideológica; e adotaram logo uma política pragmática. De todos eles, só Lula foi um operário sindicalista e só o seu partido teve as características de uma organização legal de massas, embora possamos incluir ao lado do PT o Partido Socialista Chileno como agremiação histórica que sustentou o mandato moderado da presidente Bachelet.
Manoel Zelaya, um fazendeiro nascido em 1952, chegou tardiamente ao clube e geograficamente muito próximo aos Estados Unidos, para sua infelicidade. Ele governou Honduras inicialmente por pouco tempo até sofrer um golpe militar que parecia fora de propósito na política oficial norte-americana. Mas Zelaya também é um político misto entre os dois subgrupos acima definidos, posto que tenha retórica barroca (ele se definiu como liberal pró – socialista), uma prática moderada, não tinha partido estabelecido à esquerda, além de ser de uma idade intermediária. O mesmo dir-se-ia do casal Kirchner que não só conquistou o apoio da tradição peronista e atendeu as mães da Praça de Maio, como se posicionou num nacionalismo extremo (no caso contra os militares torturadores e contra a ocupação britânica nas Malvinas).
É possível dizer que acima (ou abaixo) das diferenças citadas, todos os líderes referidos são resultado de um mesmo processo de fracasso eleitoral do neoliberalismo na América Latina e são a forma encontrada pelos movimentos sociais para representar seus interesses no Estado sem prejuízo dos interesses do grande capital. A forma é a de um compromisso que analistas de oposição chamaram de populista, mas que na essência é a feição latino-americana do mesmo pacto socialdemocrata que vigorou na Europa Ocidental antes. Aqui com peculiaridades, obviamente. Não só a economia não suporta um mesmo Estado de Bem Estar, como a base social do processo é muito mais complexa.
No Velho Mundo havia uma classe operária industrial numericamente significativa (mesmo quando não majoritária) que serviu de base aos governos de esquerda sociais democratas. Na América Latina tivemos um rápido processo de urbanização numa fase de afirmação tardia da industrialização periférica e sempre regionalmente concentrada. Assim, as cidades se encheram não só de trabalhadores produtivos, mas daquilo que os medievalistas chamam de “os pobres”. Entre 1950 e 2000 mesmo os países que já eram mais urbanizados como a Argentina e o Uruguai passaram de uma taxa de urbanização de 62,5 a 90,5% e de 81 a 91,8%, respectivamente. Mas foram países como Bolívia (de 33,9 a 62,4), Equador (28,5 a 61,1) Paraguai (34,6 a 56,7), Peru (35,3 a 75,9) e Brasil (36,5 a 81,2) que experimentaram mudança mais brusca. O caso venezuelano é exemplar a este respeito (47,9 a 90,5). (Dados em: DEPUALC, 2009, CELADE – División de Población de la CEPAL, em percentagem).
Evidentemente, países que não experimentaram processos de esquerda no início do século XXI, como Colômbia e, em certa medida, Chile também passaram por urbanização semelhante. Antonio Gramsci fala de um fenômeno semelhante: “Na Itália o urbanismo não é um fenômeno especialmente industrial. A maior cidade italiana, Napoli, não é industrial. Todavia também nessas cidades existem núcleos populacionais tipicamente urbanos”.
Caio Prado Júnior notou no caso brasileiro que as forças que representam a base da nação são inorgânicas ao sistema, ou seja, vegetam nos interstícios de uma produção exportadora e indiferente ao mercado interno. Ora, o que os governos da América Latina no século XXI começaram a fazer, ainda que por vias questionadas, é a inclusão do inorgânico na economia formal. Mas por enquanto, através de um mercado de trabalho precário e, especialmente pelo mercado de consumo, via políticas sociais de grande impacto econômico em regiões carentes.
A uma base social complexa, urbana e sem relação fixa e permanente com o mercado de trabalho corresponderia um tipo de “populismo” ou “bonapartismo”? Mas o que define exatamente tal situação?
Na América Latina os novos governantes fazem as classes retroceder para formas corporativas de atuação. Os movimentos sociais são divididos pela incorporação de lideranças no aparelho de Estado e por políticas públicas que atendem parcialmente suas bases. Os governos exprimem uma base social nos pobres urbanos com outro tipo de consciência classe, muito menos afeito a uma tradição socialista.
Ora, toda liderança política carismática é aparentemente periférica porque retrataria uma sociedade sem as formas tradicionais do parlamento democrático e da democracia de partidos. O que pode definir tal situação é um proletariado muitas vezes sem fábrica, mas com atuação política nas cidades e, talvez, a figura do capo, do homem ou instituição (Forças Armadas, por exemplo) providencial.
Com uma massa de imigrantes ilegais em empregos precários e dispersos, mesmo a Europa não está longe de uma situação assim. E os latino-americanos podem falar aos europeus: De te fabula narratur. Ou seja: a fábula fala de ti, pois não é o Velho Mundo que projeta o futuro da periferia e sim o contrário. Quando vimos líderes europeus recentes se comportando como celebridades, nós podemos afirmar que formas que supomos arbitrais e acima das classes não são uma idiossincrasia da periferia. Elas são uma tendência inscrita no Estado Moderno. Sempre que a forma de domínio político entra em crise e o “partido” das classes dominantes se separa de seu partido parlamentar, a dominação pode ser personalizada num líder.
Criticar traços contingentes do “bonapartismo” é aceitar como único paradigma a República Parlamentar de tipo europeu, quando esta não passa de uma das formas do regime anônimo da burguesia.
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Lincoln Secco é professor de História Contemporânea na USP. Publicou pela Boitempo a biografia de Caio Prado Júnior (2008), pela Coleção Pauliceia. Colaborou para o Blog da Boitempo mensalmente, às sextas-feiras, durante o ano de 2011. Com esta coluna, o autor se despede temporariamente de seus leitores aqui no Blog.
Fonte: https://boitempoeditorial.wordpress.com/2012/06/15/o-bonapartismo-periferico/