Entrevista especial com Reinaldo Gonçalves
"As conseqüências são previsíveis. Espera-se o maior esgarçamento do tecido social (via, por exemplo, contração do grau de universalização dos direitos sociais e econômicos), piora nas condições de trabalho, maior exploração do trabalhador, concentração da riqueza e da renda e crescente tensão nas relações, processos e estruturas políticas", afirma Reinaldo Gonçalves, em entrevista concedida à IHU On-Line, por email.
Segundo ele, " a Grécia é um “vagão de 3ª classe” no cenário internacional. Se este país não estivesse na zona do euro, a crise grega não teria um milésimo da repercussão que tem tido. Insisto que não há uma crise na zona do euro". "O que ocorre na Grécia atualmente - continua - é um fenômeno bastante conhecido no Brasil e no restante da América Latina. Ou seja, houve aumento extraordinário do passivo externo que levou a percepção de risco a níveis críticos. Nenhuma novidade para nós, inclusive no passado recente!"
E Reinaldo Gonçalves alerta: "Parte da crise da Grécia é explicada pelos gastos extraordinários provocados pelas Olimpíadas em Atenas em 2004. Em sociedades com frágil institucionalidade, mega-projetos são o fértil campo de cultivo de práticas de corrupção e da incompetência". Tendo em vista a realização da Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016, "há alta probabilidade que o Brasil cometa os mesmos erros dos gregos (endividamento interno e, principalmente, externo) que quebrarão as finanças públicas e o sistema financeiro brasileiro no pós 2014-16! Fica o alerta porque a conseqüência é o país entrar em mais uma longa trajetória de instabilidade e crise", afirma.
O economista conclui a entrevista com uma descrição do que é ser esquerda no momento atual.
Reinaldo Gonçalves é professor titular de Economia Internacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Entrre outros, ele é autor (em co-autoria com Luiz Filgueiras) do livro “A Economia Política do Governo Lula”. Rio de Janeiro: Editora Contraponto, 2007.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Em sua opinião, qual o resultado da recente crise do Euro? O que esse episódio revela sobre possíveis mudanças no cenário econômico mundial?
Reinaldo Gonçalves - Não há uma “crise do euro” e, sim, uma crise localizada na zona do euro. A União Européia, bem como o subsistema monetário europeu (zona do euro) é marcado por forte assimetria. A atual crise é, fundamentalmente, financeira e está localizada, principalmente, na Grécia e com risco de atingir de forma mais aguda outros países como Portugal, Irlanda e Espanha. A desvalorização do euro não é, por si só, um problema para os países europeus. Na realidade, esta desvalorização permite aumentar as exportações, ao mesmo tempo em que reduz as importações. Ou seja, a desvalorização do euro é muito útil para promover a retomada do crescimento. O problema das graves crises localizadas em países de pouca importância (como Grécia e Portugal) é que o mercado fica operando num contexto de maior incerteza frente aos cenários futuros de intervenção para enfrentar estas crises. Como estes países estão na zona do euro, os atores protagônicos são a Alemanha e a França. Por um lado, os dirigentes alemães estão focados na proteção dos seus bancos, principalmente, aqueles que fizeram operações de grande risco na periferia da Europa e que, agora, enfrentam problemas. Daí a reação do governo alemão no sentido de maior regulamentação dos seus bancos. Por outro lado, para o governo da Grécia a regionalização da crise é útil visto que seus objetivos são evitar a quebra do seu sistema financeiro (grandes bancos), obter taxas de juros internacionais menores para financiar o serviço do passivo externo e usar os esquemas plurilateral (União Européia) e multilateral (FMI). Estes esquemas permitem a obtenção de recursos externos como também legitimar medidas duras de ajuste que implicam queda do nível de bem-estar da maioria da população.
IHU On-Line - Que tipo de capitalismo surge a partir deste episódio?
Reinaldo Gonçalves - No horizonte previsível o capitalismo não sofrerá transformações importantes. A questão da regulação/intervenção versus livre mercado está na própria origem do sistema. Esta é, de fato, uma questão pendular. Ou seja, em fases ascendentes do ciclo econômico o capital pressiona e obtém maior liberdade de atuação e nas fases descendentes o Estado, atendendo às pressões dos trabalhadores, à própria necessidade de governabilidade e aos interesses do grande capital, passa a ser pró-ativo na intervenção, protecionismo e regulação. No processo de proteção frente ao “moinho satânico” do mercado, o Estado protege o grande capital nacional. Portanto, no horizonte de curto e médio prazo haverá pressão e implementação de medidas de intervenção, proteção e regulação; porém, quando o espectro de crise desaparecer do cenário, retorna a pressão para a liberalização, desregulamentação e privatização. Em outras palavras, o capital tem como um dos seus “pecados originais” a síndrome da privatização dos benefícios (próprios da fase ascendente do ciclo econômico) e da socialização dos prejuízos próprios das crises econômicas.
IHU On-Line - Quais são as conseqüências de um possível desmantelamento do estado de bem-estar social?
Reinaldo Gonçalves - As conseqüências são previsíveis. Espera-se o maior esgarçamento do tecido social (via, por exemplo, contração do grau de universalização dos direitos sociais e econômicos), piora nas condições de trabalho, maior exploração do trabalhador, concentração da riqueza e da renda e crescente tensão nas relações, processos e estruturas políticas. A institucionalidade também sofre abalos em decorrência do acirramento da disputa pelos recursos controlados pelo Estado. Ou seja, aumenta a rivalidade entre grupos e classes sociais. Isto não é, necessariamente, um problema. Ele pode ter resultados positivos. O caso recentíssimo é a tentativa do governo dos EUA de implementar uma reforma socialmente mais justa do sistema de saúde. Outro exemplo, a sociedade grega “pede a cabeça” dos dirigentes políticos que, de uma forma ou de outra, foram responsáveis pela crise recente. Na atualidade, a institucionalidade da União Européia está sofrendo as consequências da crise. Esta pode ser a oportunidade para se questionar se, efetivamente, a estratégia de ampliação do esquema implica benefícios líquidos para os atores protagônicos.
IHU On-Line - Em que medida a crise na zona do Euro pode ser exemplo para as demais economias do planeta?
Reinaldo Gonçalves - A Grécia é um “vagão de 3ª classe” no cenário internacional. Se este país não estivesse na zona do euro, a crise grega não teria um milésimo da repercussão que tem tido. Insisto que não há uma crise na zona do euro. Na Alemanha, por exemplo, há um nítido processo de recuperação. Em 2009 a renda alemã caiu 5%, mas para 2010 e 2011 as previsões são de crescimento de 1,2% e 1,7%, respectivamente. A retomada do comércio internacional é um dos fatores determinantes. A desvalorização do euro dá um reforço à enorme competitividade internacional da Alemanha. No que se refere às lições que podemos aprender com os gregos, vale destacar que não há nada de novo. De fato, o que ocorre na Grécia atualmente é um fenômeno bastante conhecido no Brasil e no restante da América Latina. Ou seja, houve aumento extraordinário do passivo externo que levou a percepção de risco a níveis críticos. Nenhuma novidade para nós, inclusive no passado recente!
IHU On-Line - Como o Brasil pode aprender com o episódio e em que medida a política econômica do governo Lula se relaciona com esta questão?
Reinaldo Gonçalves - Quanto ao presente e ao futuro do Brasil, a questão-chave é, mais uma vez, o passivo externo. A estratégia e a política econômica do governo Lula tem implicado crescimento do passivo externo do país. Déficit de transações correntes de US$ 60 bilhões em 2010 significa aumento não desprezível do passivo externo. Esta é uma cessão de direitos que envolvem fluxos de pagamento de juros, lucros e dividendos. Durante o governo Lula houve crescimento elevado do passivo externo e destes fluxos e, portanto, maiores necessidades de financiamento externo. Este é um problema estrutural e, certamente, fará parte da “herança maldita” do governo Lula. Cabe, ainda, chamar atenção para riscos futuros associados aos megaprojetos de gastos públicos associados a eventos como Copa do Mundo de futebol em 2014 e Olimpíadas em 2016. Parte da crise da Grécia é explicada pelos gastos extraordinários provocados pelas Olimpíadas em Atenas em 2004. Em sociedades com frágil institucionalidade, mega-projetos são o fértil campo de cultivo de práticas de corrupção e da incompetência. Há alta probabilidade que o Brasil cometa os mesmos erros dos gregos (endividamento interno e, principalmente, externo) que quebrarão as finanças públicas e o sistema financeiro brasileiro no pós 2014-16! Fica o alerta porque a conseqüência é o país entrar em mais uma longa trajetória de instabilidade e crise.
IHU On-Line - Qual o futuro da proposta de livre mercado, sem regulação do Estado?
Reinaldo Gonçalves - A liberalização está entrincheirada. Ela não morreu e, como Fênix, ela ressurge das cinzas. A questão central é que livre mercado e intervenção/regulação são os “dois lados da moeda” do capitalismo. É um pêndulo eterno, pelo menos enquanto durar o capitalismo! As experiências, por exemplo, da Alemanha e dos países nórdicos mostram que mais concorrência pode estar associada a mais regulação/intervenção. Nas “transformações genéticas” como o sistema chinês, onde o capitalismo mais dinâmico do planeta é comandado pelo Estado comunista, a extraordinária rivalidade no mercado internacional (no qual a China é “maratonista”) tem como contrapartida, no plano interna da China, um igualmente extraordinário aparato regulatório e interventor. Ou seja, o capitalismo “campeão mundial” é o capitalismo que tem como pilar central o Estado-nacional altamente interventor e regulador pilotado ditatorialmente por um partido comunista que aloca oportunidades de negócios para associados dos grupos dirigentes.
IHU On-Line - O que caracteriza a mudança que temos acompanhado na Europa e no mundo todo, de certa maneira, na forma de viver e trabalhar?
Na realidade, não há nada de muito novo. É a velha história: Plus ça change, plus c´est la même m... Certamente, as tensões próprias às crises implicam piora na qualidade de vida e nas condições de trabalho. Por outro lado, há o lado positivo que é o mecanismo desafio-resposta. Ou seja, frente aos problemas, as sociedades tendem a reagir, de uma forma ou de outra. Estas reações podem ser na direção de um caminho favorável ou não. Cabem aqui duas comparações. A primeira é a Alemanha do pós I Grande Guerra, que escolheu o caminho do nazismo, da guerra, da derrota e do sofrimento. Por outro lado, no pós II Grande Guerra a Alemanha faz escolhas corretas que geraram uma das mais ricas e estáveis sociedades do mundo. A segunda comparação refere-se ao Brasil que, frente à crise do final dos anos 1920, foi capaz de dar um salto quântico e entrou na trajetória desenvolvimentista que durou até 1979. Por outro lado, o Brasil dos últimos 20 anos optou por um Modelo Liberal Periférico de segunda ou terceira classe que implica crescente vulnerabilidade externa estrutural nas esferas comercial (reprimarização), produtiva (internacionalização sem competitividade), tecnológica (ineficiência sistêmica) e financeira (liberalização e desregulamentação).
IHU On-Line - Qual sua opinião sobre programas de renda mínima no cenário econômico e financeiro mundial?
Reinaldo Gonçalves - Programas de renda mínima, transferência previdenciárias, ajustes de salário mínimo e câmbio apreciado são paliativos que mascaram a enorme concentração de riqueza e só marginalmente afetam a distribuição intra-renda do trabalhador e dos grupos de menor renda. Eles são elementos auxiliares em um processo efetivamente transformador da sociedade, mas são entraves caso eles desviem, sufoquem ou inibam os esforços de efetivas mudanças estruturais. Este fenômeno é exatamente o que está acontecendo em países como Brasil, Colômbia, Paraguai e México que seguem variações do modelo liberal periférico. Quem quiser saber mais sobre este modelo no Brasil, recomendo o livro (em co-autoria com Luiz Filgueiras) “A Economia Política do Governo Lula” (Rio de Janeiro: Editora Contraponto).
IHU On-Line - Simplesmente condenar o capitalismo não é a saída. Que caminhos o senhor vislumbra?
Reinaldo Gonçalves - Antes de mais nada precisamos escapar das fortes limitações das visões das “raparigas em flor do keynesianismo” e dos “heróis em sangue do marxismo”. Penso que as escolhas e os caminhos são, sem dúvida, pela esquerda. Insisto que este caminho significa reconhecer que o capitalismo é um sistema irracional que inibe a capacidade do ser humano dar sentido à vida, ou seja, viver com dignidade, felicidade e liberdade. Ser de esquerda é o combate permanente por um projeto de orientação socialista. É ignorância imaginar que ser de esquerda se restringe a defender bandeiras como progresso econômico, reforma social, democracia, integração regional e interesses nacionais. O centro e a direita também defendem estas bandeiras, de uma forma ou de outra. É má-fé imaginar que a distinção entre esquerda e direita se restringe ao ideário econômico via a armadilha binária “estado versus mercado”. Defender um Estado que é capturado por grupos dirigentes corruptos não é ser de esquerda. Ser de esquerda implica combater implacavelmente estes grupos dirigentes e os setores dominantes retrógrados. Ser de esquerda implica compromisso com distribuição de riqueza (maior igualdade possível na distribuição de riqueza, renda e conhecimento), controle social do estado (combater a apropriação do estado por grupos dirigentes e grupos econômicos) e uso social do excedente econômico (tributação, planejamento e propriedade pública dos principais meios de produção). Ser de esquerda implica rejeitar tanto a política externa do “vira-lata” como a do “camaleão falante” baseada em um antiimperialismo retórico, ocasional e superficial. Ser de esquerda é contrariar o agronegócio e procurar o fortalecimento do padrão de comércio e a rejeição da reprimarização do comércio via commodities; ser de esquerda é contrariar o capital internacional e ter uma política seletiva e criteriosa em relação aos investimentos de empresas estrangeiras e não estimular e financiar com recursos públicos todo e qualquer tido de investimento externo direto; ser de esquerda é reduzir as transferências de recursos para os rentistas da dívida pública e procurar investir pesadamente na maior capacitação tecnológica com saltos quantitativos e qualitativos na educação e no sistema nacional de inovações; ser de esquerda é contrariar os bancos nacionais e os estrangeiros e controlar os fluxos financeiros internacionais e não dar tratamento especial a estes fluxos. Ser de esquerda é não fazer aliança com países avançados, como os EUA, para fechar rodadas de negociação da OMC somente para favorecer o agronegócio. Ser de esquerda é não aceitar o pagamento de pedágio para participar de fóruns internacionais de eficácia duvidosa, como o G-20 financeiro. Ser de esquerda é rejeitar reforçar o capital de instituições financeiras multilaterais como FMI e o Banco Mundial cujas políticas tendem a submeter países frágeis a práticas que atendem, principalmente, aos interesses do capital internacional. Ser de esquerda é entender que os principais adversários das transformações estruturais e de modelo estão dentro do próprio país. Ser de esquerda é reconhecer que há um enorme hiato entre o poder potencial e o poder efetivo do Brasil na arena internacional. Ser de esquerda é saber que, com as escolhas certas e as transformações estruturais, o país só terá peso efetivamente relevante no cenário internacional quando reduzir sua enorme vulnerabilidade externa estrutural e suas extraordinárias fragilidades internas, inclusive, as sociais e institucionais.
Palavras-chave:
Crise Grega | Crise Econômica | Governo Lula | Neoliberalismo | Crise do Estado de Bem-Estar-Social