Crise financeira ou... de superprodução?, por Paulo Nakatani & Rémy Herrera

27/02/2011 10:57

Crise financeira ou... de superprodução?

por Paulo Nakatani [*]
Rémy Herrera [**]

Consideramos que um dos equívocos nas interpretações correntes da crise capitalista atual é que ela seria uma crise financeira que contaminaria o setor real da economia. Ao contrário, defendemos que ela é uma crise do capital cujo surgimento e manifestação ocorreu na esfera financeira, devido à gigantesca financeirização da sociedade capitalista nas últimas décadas. Nós apresentamos alguns elementos para sua análise em um artigo recente [1] . Ao longo da história do capitalismo, os conhecimentos acumulados pelas ciências sociais em geral, e pelos economistas em particular, foram forjando formas, mecanismos, instituições e instrumentos de intervenção estatal que permitiram uma gestão estatal da crise, principalmente após a grande depressão dos anos 1930, estendendo-a no tempo, distribuindo-a no espaço entre diferentes países e amenizando os seus efeitos mais destrutivos no centro do sistema mundial, de onde partiu a crise atual. Mas, quais são efetivamente os fundamentos, as medidas e o alcance das políticas anti-crise adotadas atualmente? Quais as perspectivas que se colocam para a sociedade contemporânea?


Uma crise de superprodução


Sabe-se, a partir de Marx, que as crises fazem parte integrante da dinâmica contraditória da reprodução ampliada do capital, concebido como uma relação social de produção. Durante os períodos de crise, os capitais mais frágeis ou tecnologicamente ultrapassados são desvalorizados, uma parte é desvalorizada e desaparece e outra parte é concentrada e centralizada nas frações mais poderosas e desenvolvidas do capital. Dessa forma, a "solução" das crises capitalistas renova as condições da acumulação em um novo patamar de desenvolvimento das forças produtivas e, ao mesmo tempo, em novas bases de produção e expropriação da mais-valia dos trabalhadores, assim como abre novas contradições que irão exigir novas crises para sua solução. Ao contrário do que defende a ideologia teórica dominante, chamada de neoclássica, o sistema capitalista em mutação permanente não tende e jamais poderá atingir, evidentemente, um equilíbrio estável. Assim, a instabilidade que é inerente ao sistema não pode ser explicada por fatores externos, como os erros ou falcatruas dos agentes econômicos ou pelos equívocos da política macroeconômica, como pretende a teoria dominante; assim como as explicações a partir da forma ou insuficiência de regulação, não chegam ao cerne da questão.

As razões mais profundas que permitem explicar a crise que se desdobra por todo o planeta encontra-se na própria dinâmica da acumulação que produz periodicamente uma superprodução de capital, decorrente da anarquia da produção capitalista, que conduz à uma pressão para a queda na taxa de lucro quando se esgotam as contra-tendências à queda dessa taxa. A superprodução de capital pode se manifestar através do excesso de produção vendável, não porque não hajam pessoas necessitadas ou desejosas de consumirem, mas porque a concentração da riqueza vai excluindo uma parcela cada vez mais importante da população da possibilidade de comprar mercadorias. O desenvolvimento do sistema de crédito permite que, ao invés da superprodução de mercadorias, o capital se acumule sob a forma de capital dinheiro, o qual pode se apresentar seja como capital portador de juros seja de maneira ainda mais "irreal", sem deixar de ser real, de capital fictício [2] . Nós consideramos que este é um conceito chave para a análise da crise atual e das mutações precedentes sofridas pelo sistema de crédito. Seu princípio geral é a capitalização de uma renda futura a uma dada taxa de juros. Entre os principais teóricos da economia, somente Marx trata do capital fictício.

Mas, a categoria capital fictício está pouco elaborada no livro III d´O Capital de Marx [3] , que foi organizado e editado por Friedrich Engels. Não há, no livro III, uma única definição de capital fictício, o que existem são pistas e desenvolvimentos das diversas possibilidades da evolução, ou das formas que podem ser assumidas, do capital portador de juros. Marx desenvolve o seu estudo relacionando as formas do capital portador de juros com o desenvolvimento do crédito na sociedade capitalista na Seção 5 do Livro III d´O Capital, especialmente a partir do capítulo XXV (intitulado "Kredit und fiktives Kapital" [crédito e capital fictício]) –, depois, sobretudo no capítulo XXIX ( "Bestandteile des Bankkapitals" [componentes do capital bancário]), e ainda nos capítulos XXX ( "Geldkapital und wirkliches Kapital – I" [capital monetário e capital real]) até o XXXIII (" Das Umlaufsmittel unter dem Kreditsystem" [os meios de circulação sob o sistema de crédito]) [4] .

As principais formas de capital fictício estudadas por Marx são: o capital bancário, a dívida pública e o capital acionário, todos os três expressando as formas desenvolvidas na época em que ele escreveu [5] . Se a estas formas agregarmos o atual mercado de derivativos teremos, então, quase todo o capital fictício que impulsiona a acumulação de capital e forma o conjunto de capitais que comandam o processo de acumulação em geral e as formas particulares de gestão das unidades individuais de capital, nesta fase do capitalismo financeirizado.

Assim, o espaço por excelência de criação e expansão desse capital fictício é o sistema de crédito, constituído pelos bancos, bolsas de valores, bolsas de mercadorias e futuros, fundos de pensão (que gerenciam a previdência por capitalização), fundos de investimentos especulativos ( hedge funds ) e outras instituições similares que articulam as empresas capitalistas ao Estado capitalista. Certas instituições efetuam a securitização de dívidas e as convertem em ativos financeiros denominados de derivativos. Estes últimos são contratos que fixam os fluxos financeiros futuros em função das variações de preço de um produto subjacente, que podem corresponder a uma taxa de juros, taxa de câmbio, cotações da bolsa, commodities e até determinados eventos futuros.

Essas ferramentas de cobertura servem frequentemente como suporte para estratégias especulativas, permitindo a alavancagem de uma aposta limitada, principalmente quando são combinadas entre elas e dão lugar às vendas a descoberto ( short sell , sem contrapartida). As operações especulativas mais arriscadas podem conduzir, teoricamente, a perdas infinitas (sobre opções de venda ou " put ", por exemplo). Os montantes em jogo nessas transações, induzindo a criação de capital fictício, atualmente, ultrapassam de longe aquele montante destinado à reprodução do capital diretamente produtivo. Por exemplo, em 2007, o total acumulado em 12 meses das exportações, de todos os países do mundo, representava pouco mais de três dias do volume de negócios dos derivativos " over-the-counter " (OTC, ou seja, contratos negociados fora da bolsa diretamente entre as partes envolvidas). As exportações foram de 13.700 mil milhões de dólares, durante, o ano e as operações com derivativos OTC, 4.200 mil milhões por dia. Apesar de sua natureza (em maior parte) parasitária, esse capital é beneficiário de uma redistribuição da mais valia e vem realimentar a criação do capital fictício adicional como meio para sua própria remuneração [6].

A exacerbação da crise

O conjunto de contradições que desencadeou a crise atual começou a se acumular a partir do esgotamento das forças que geraram o longo período de expansão, após a Segunda Guerra mundial, com o fim do acordo de Bretton Woods e o desenvolvimento dos novos mercados financeiros, em particular a formação e posterior desenvolvimento do mercado interbancário de Londres. Paralelamente, na esfera produtiva, a forma de organização da produção e de extração da mais-valia, baseada no fordismo e no taylorismo, também havia chegado aos seus limites e começaram a surgir novas formas de organização da produção e novos métodos como o toyotismo ou kanban. Durante a guerra fria, o desenvolvimento das forças produtivas foi impulsionado, em parte, pelo aumento das despesas estatais, induzidos principalmente pela rivalidade e pela competição entre os complexos industrial-militar dos EUA e da URSS, que se converteu em uma acelerada corrida armamentista. Esse desenvolvimento foi fundamental para a consolidação dos sistemas computadorizados na substituição do trabalho por máquinas, das novas invenções e da produção baseada nos sistemas de máquinas ferramentas comandadas por computadores, pela criação da internet e dos microcomputadores, revolucionando as bases da produção e dando um novo fôlego ao capital.

Após um longo período de superacumulação de capital, que se concentrou cada vez mais na esfera financeira sob a forma de capital-dinheiro, esse excesso de oferta acentuou a pressão sobre a tendência à queda na taxa de lucro. Nos Estados Unidos, a principal medida para superar a crise foi a aceleração no aumento da taxa básica de juros (a prime rate ), a partir do início de 1979. Em abril de 1980 ela chegou a 20% ao ano e atingiu 21,5%, em dezembro do mesmo ano. Essa política conduziu à crise da dívida que explodiu nos anos 1980, mas não foi suficiente para desvalorizar a totalidade do capital fictício excedente acumulado no sistema de crédito internacional, decorrente da criação secundária de moeda e capital conhecida como eurodólares e petrodólares. Na seqüência, ocorreram as explosões sucessivas das "bolhas financeiras", em 1987, nos Estados Unidos, em 1994, no México, em 1997, nos países "emergentes" da Ásia, em 1998, na Rússia e no Brasil, em 2000, novamente nos Estados Unidos com a explosão da "bolha" da "nova economia" e em 2001, na Argentina, que ainda foram insuficientes para a desvalorização necessária do capital fictício. As desvalorizações decorrentes dos múltiplos escândalos decorrente das fraudes contábeis das grandes corporações internacionais (a Enron, por exemplo), também não foram suficientes.

A crise atual surgiu no contexto de mudanças da política monetária estadunidense devido à agravação dos gigantescos déficits internos e externos, o primeiro devido à necessidade de financiamento associada às guerras no Afeganistão e no Iraque; o segundo devido, em grande parte, à deslocalização das empresas para o México e para a China. Como resposta à redução no crescimento econômico nos anos 2000/2001, o Federal Reserve (FED) foi reduzindo a taxa básica de juros ( prime rate ) de 6,5%, em dezembro de 2000, até 1,75%, em dezembro de 2001, e em seguida até 1%, em junho de 2003, e a manteve neste nível até maio de 2004. Em termos reais, descontando a inflação, essa taxa tornou-se negativa. É durante esse período, de taxas negativas, que os mecanismos da crise dos sub-primes [7] foram sendo desenvolvidos e ampliados no setor imobiliário, no qual os riscos assumidos foram crescentes. Em seguida, em parte devido aos déficits decorrentes do esforço com as guerras imperialistas, o FED retoma um movimento de elevação da prime rate, a partir de julho de 2004, que foi fortemente elevada para 5,25%, em junho de 2006. Assim, a partir do final de 2006, os devedores mais frágeis começaram a interromper, em massa, o pagamento das parcelas de seus empréstimos hipotecários. O crescimento no número de inadimplentes foi acelerado pela retração econômica – agravada pela elevação das taxas de juros – e pela pressão contínua à redução dos salários reais. A prime rate foi mantida acima dos 5% até junho de 2007, apesar dos sinais cada vez mais evidentes da exacerbação da crise.

Em agosto de 2007, após uma série de quedas nos índices das principais bolsas de valores das principais economias, os Bancos Centrais dos países mais desenvolvidos intervieram maciçamente no mercado injetando centenas de mil milhões de dólares em linhas especiais de crédito para o sistema bancário [8] . Mesmo com todo esse volume de novos recursos, os mercados financeiros continuaram extremamente voláteis no segundo semestre do ano, afundando a cada anúncio das perdas registradas pelos maiores estabelecimentos bancários estadunidenses, do Citigroup ao Morgan Stanley. Em um artigo intitulado "Roleta russa financeira", publicado em 15 de setembro de 2008 no New York Times, o premio Nobel de economia, Paul Krugman escreveu "E, quando as incógnitas desconhecidas se tornaram incógnitas conhecidas, o sistema experimentou corridas bancárias pós-modernas. Estas não se parecem com sua versão antiga: com poucas exceções, não estamos falando de multidões de poupadores desesperados batendo furiosos nas portas fechadas dos bancos. Estamos falando de chamadas telefônicas frenéticas e cliques de mouses, enquanto os operadores do mercado financeiro tentam conseguir linhas de crédito e procuram se prevenir contra os riscos de sua contraparte. Mas os efeitos econômicos – congelamento dos créditos, queda abrupta do valor dos ativos – são os mesmos das grandes corridas bancárias dos anos 1930". [9]

21 de janeiro de 2008 foi outro dia de pânico para a finança mundial, o FED reduziu agressivamente sua taxa básica de juros de 4,25% para 3,5% e para 3,0%, em apenas dez dias, e continuou reduzindo até chegar a quase zero (0,25%), em dezembro de 2008. Após a implementação das medidas anti-crise pela administração do governo de G.W. Bush, no primeiro semestre de 2008, as tendências ao colapso do sistema financeiro, decorrente da crise dos subprime, foram amenizadas e evitaram a aceleração na queda da demanda das famílias por bens de consumo. Mas, não resolveu as contradições decorrentes da crise desencadeada no primeiro semestre de 2007, que continuou fustigando os mercados financeiros internacionais com a elevada instabilidade e alta volatilidade de seus indicadores. Em julho de 2008, foi a vez de outro dos maiores emprestadores do mercado imobiliário norte-americano, o IndyMac (banco cujos ativos estavam na ordem de 32 mil milhões de dólares), sofrer a intervenção do Federal Deposit Insurance Corporation (FDIC), agência encarregada de garantir os depósitos bancários. Esta foi a mais grave falência de um banco em mais de um quarto de século. Ela foi seguida por um programa urgente de socorro para salvar as maiores instituições financeiras do mercado imobiliário, Fannie Mae e Freddie Mac , este programa foi destinado ao socorro de um a dois milhões de devedores cujas dívidas podiam ultrapassar o montante total de 300 mil milhões de dólares [10] . Em setembro de 2008, os bancos de investimento, Lehman Brothers e Merryl Lynch praticamente foram à falência tendo sido comprados pelos Citigroup e pelo Bank of América, respectivamente. Ao mesmo tempo, a seguradora AIG (American International Group), a maior do mundo na época, teve que buscar recursos junto ao FED de Nova Iorque, tendo sido, posteriormente, estatizado ao custo de 85 mil milhões de dólares. O socorro total ao AIG ultrapassou os 140 mil milhões de dólares.

As políticas anti-crise.

A destruição de capital fictício foi brutal. Durante o ano de 2008, a capitalização total das bolsas mundiais caiu de 48,3 para 26,1 milhão de milhões de dólares [11] . Entre primeiro de janeiro e 31 de dezembro de 2008, os principais índices da Bolsa de Nova Iorque, o Dow Jones Indus, o S&P 500 e o Nasdaq, caíram -33,8%, -39,8% e -40,5%, respectivamente. O índice Nikkei de Tóquio sofreu uma queda semelhante de -42,1%, assim como o ASX 200 de Sydnei (-44,1%). Na zona do Euro, a degringolada foi mais dura em algumas bolsas: -40,8% em Frankfurt (DAX 30), -42,7% em Paris (CAC 40), -48,4% em Milão (MIB 30), -52,3% em Amsterdam (AEX 25), -53,8% em Bruxelas (BEL 20), por seu lado o Euro Stoxx 50 perdeu -44,3%. Em outras áreas da Europa a tendência foi a mesma: -31,3% em Londres (FTSE 100), -34,8% para o Zurique SMI (Suiça) até -52,8% para o Oslo AS (Noruega). Na periferia européia, foi até mesmo pior: -52% em Telaviv (TA 100), -52,5% em Istambul (ISE Nat. 100). A pior queda foi em Moscou (RST), uma queda de 72,7%. Na Ásia "emergente", as quedas foram de -45,4% para o índice TSE em Taipei, -48,6% para o STI em Cingapura, -51,9% para o SENSEX em Bombaim. Na China as quedas foram mais graves: -61,9% para Shenzhen beta e -65,4% para o SSE de Xangai. Nas outras bolsas do Sul, salvo algumas exceções como a Bovespa-BMF (-42,2%), as quedas foram bem menores, -24,5% no México (MXSE IPC), -24,0% em Santiago do Chile (IGPA) ou -28,0% em Joanesburgo (FTSE JSE). De janeiro a março de 2009, a evolução dos índices bursáteis ainda estavam fortemente negativos na maior parte dos mercados acionários, -15,9% para o CAC 40, -16,3% para o DJindus, -19,7% para o Euro Stoxx 50...

Os principais bancos centrais esforçaram-se na coordenação das suas intervenções, oferecendo linhas de crédito privilegiadas aos bancos e reduzindo continuamente suas taxas básicas de juros. O secretário do Tesouro dos EUA, Henry Paulson, e o presidente do FED, Ben Bernanke, organizaram um gigantesco pacote para o socorro do sistema financeiro e mobilizaram um montante superior a 700 mil milhões de dólares para a compra dos títulos podres dos ativos bancários. De início, o projeto foi rejeitado na Câmara, mas foi aprovado no Senado após várias alterações, as principais foram, a forma de ajuda aos bancos, que passou a ser através da compra de ações, e a extensão da ajuda para outras empresas, o projeto passou de duas páginas para mais de 400 páginas, e sofreu um aumento para US$ 850 mil milhões. Desse total, foram aplicados cerca de US$ 500 mil milhões até o final do mandato de George W. Bush, inclusive com os empréstimos para salvar da falência a General Motors e a Chrysler, duas das maiores empresas automobilísticas do mundo.

Após a eleição e a posse de Barack Obama, um outro plano foi submetido ao Congresso dos EUA. Ele foi elaborado por um grupo de economistas que assessoram ou assessoravam o novo Presidente, grupo este que é constituído por alguns dos principais responsáveis pela expansão do capital fictício especulativo, pela desregulamentação dos mercados dos mercados financeiros e pela mundialização das políticas neoliberais. Entre eles estão Larry Summers, ex-Secretário do Tesouro na administração Clinton e ex-economista-chefe do Banco Mundial, atualmente é Conselheiro econômico da Casa Branca; Timothy Geitner, ex-presidente do FED de Nova Yorque e ex-diretor de política de desenvolvimento do FMI, atualmente é secretário do Tesouro; e, sobretudo, o próprio Paul Volcker, que presidiu o FED entre 1979 e 1987 e encaminhou as principais mudanças de estratégia estadunidense na adoção do monetarismo, atualmente é diretor do President´s Economic Recovery Advisory Board (Conselho Consultivo para a Recuperação Econômica).

O esperado plano de salvamento foi sancionado pelo presidente Obama em 18 de fevereiro de 2009. Ele acrescentava ao plano anterior, aprovado ainda durante o mandato de George W. Bush, cerca de 780 mil milhões de dólares, que elevou o total acumulado para mais de 1,6 milhão de milhão de dólares. Apesar da dimensão desse pacote, o presidente Obama não descartou, em caso de necessidade, a possibilidade de estender ainda mais a amplitude desse pacote ou de um novo plano para a próxima década. Sobre o total aprovado, "38% irão para ajuda a governos estaduais e locais e programas de assistência à população de baixa renda ou desempregada; 38% responderão por cortes nos impostos pagos principalmente pela classe média; e 24% serão gastos em obras públicas" (FSP, 14/02/2009), com o objetivo de criar quatro milhões de empregos. Isso não impediu as quedas nos principais mercados financeiros que continuaram sua degringolada em Nova Iorque, Londres, Frankfurt ou Paris, demonstrando não somente a insatisfação dos grandes proprietários do capital fictício frente ao plano, mas também uma aparente insuficiência de recursos injetados para salvar o sistema bancário.

A hipótese mais provável, na época, era de uma insolvência, confirmada pela sucessão de anúncios das perdas registradas pelos grandes oligopólios financeiros estadunidenses depois do último trimestre de 2008 (por exemplo, 58,7 mil milhões de dólares de prejuízos da Fannie Mae em 2009) [12] . No primeiro trimestre de 2009, o Federal Deposit Insurance Corporation (FDIC), classificava 305 estabelecimentos bancários norte-americanos, com ativos de 220 mil milhões de dólares, como problemáticos [13] . É, durante essa turbulência que o presidente Obama afirmava perceber "o início do fim da crise" [the beginning of the end of the crisis] [14] . Naquele momento, o projeto de orçamento apresentado pelo governo ao Congresso, para o ano fiscal de 2010, enfatizava o aumento dos gastos sociais, uma redução dos gastos militares e o aumento nos impostos sobre as famílias mais ricas. O orçamento que alguns qualificaram como "socialista" ou "Robin Hood", que cobra dos ricos e distribui para os pobres, não esqueceu dos ricos banqueiros, investidores e especuladores do mercado financeiro. Mesmo assim, esse projeto não acalmou o mercado e sofreu profundas críticas. O déficit fiscal previsto para o ano de 2009 era de 12,3% do PIB norte-americano, ou US$ 1,75 trilhão e previsão de US$ 1,17 trilhão, em 2010 [15].

Além das mais diversas tentativas de reativação da oferta de crédito pelos bancos centrais, desde 2007, as medidas de política econômica dos diversos planos dos governos do G7 (disfarçados em G20, na falta do G192) produziram poucos impactos em termos de recuperação da economia mundial. Entretanto, os gigantescos programas de salvamento dos grandes bancos (grandes demais para falirem) propiciaram uma enorme transferência de capital fictício que deveria ser desvalorizado para os Tesouros nacionais agravando fortemente as dívidas públicas dos Estados. A transmissão dos efeitos da crise que explodiu na esfera financeira para a esfera real acelerou os impactos sobre os níveis de produção, do emprego e do comércio internacional. A maior parte das grandes instituições internacionais, do FMI à OCDE, revisou continuamente para baixo suas previsões para o crescimento econômico para 2009-2010. A Organização Internacional do Trabalho (OIT) estima que a desaceleração econômica atual nos principais países do sistema capitalista mundial deverá ocasionar um aumento do número de desempregados na ordem de 20 milhões em 2009, enquanto que o total dos desempregados em todo o mundo deverá ultrapassar os 210 milhões neste mesmo ano. Os dados do US Bureau of Labour Statistics de outubro de 2009, revelam uma retomada da aceleração do desemprego nos Estados Unidos, quando a taxa de desemprego aberto ultrapassou 10% [16] , com quase 16 milhões de desempregados.

Das interpretações às soluções.

A grande depressão dos anos 1930 colocou em evidência os limites da teoria neoclássica dominante na época. Sua explicação sobre o funcionamento do capitalismo se fundamenta na lei de Say, duramente criticada por Keynes [17] na Teoria Geral, e sobre o equilíbrio dos mercados através de um ajuste automático dos preços, impedindo teoricamente o surgimento espontâneo de uma crise. Como esta última crise – que muitos insistem em classificá-la de financeira – uma realidade que é difícil de negar. A maior parte dos autores neoclássicos (e dos comentaristas econômicos que a vulgarizaram na grande imprensa) interpreta a crise a partir de fatores externos aos mercados, em particular a intervenção do Estado ou a influência dos sindicatos dos trabalhadores, ou pelos excessos no comportamento dos agentes econômicos, que vai da cobiça desmesurada às fraudes, passando pela governança corporativa, que perturbam o livre jogo das forças do mercado. A lógica da concentração da propriedade e da riqueza privada assim como a da maximização, não são problemáticas, somente os casos de incompetência ou de corrupção são questionados.

As políticas neoliberais estão, portanto, em declínio, mas ainda exibem muita força e vigor. A gravidade da crise recolocou em cena as teses de John Maynard Keynes, crítico agudo da visão neoclássica de um ajustamento autoregulado do capitalismo. Há alguns anos, uma parte dos teóricos neoclássicos começou a abandonar certas posições mais duras da teoria, não para converterem-se ao keynesianismo, mas para relançarem a ambição da absorção dele pelo paradigma walrasiano, através da chamada segunda síntese neoclássica, realizada desde os anos 1940 por Sir John R. Hicks e Paul A. Samuelson. Encontramos, atualmente, entre os seus herdeiros mais eminentes, que permanecem fiéis à teoria neoclássica padrão, mesmo ao preço de algumas adaptações (sobre os ajustamentos de preços, as antecipações ou à concorrência imperfeita) Joseph Stiglitz, Paul Krugman e Olivier Blanchard. O primeiro, prêmio Nobel de economia em 2008, foi vice-presidente do Banco Mundial e não precisa de maiores apresentações. Krugman, prêmio Nobel em 2008, encerra seu livro, "A crise de 2008 e o retorno da depressão econômica", escrevendo que "Keynes – que compreendeu a Grande Depressão [dos anos 1930] está atualmente, mais do que nunca, na ordem do dia". [18] O terceiro, durante muito tempo professor no MIT, assessora ao mesmo tempo o diretor gerente socialista do FMI, Dominique Strauss-Kahn, como economista-chefe dessa instituição, e o prêmio Nobel da Paz de 2009, Barack Obama, como conselheiro dos Federal Reserve Banks de Nova Iorque e de Boston.

Todavia, é forçoso reconhecer que, apesar deles frequentemente divergirem quanto às proposições relativas ao grau de intervenção do Estado, as interpretações desses "novos keynesianos" e dos neoclássicos "tradicionais" fazem parte da mesma matriz político-ideológica da teoria econômica. Para os mais avançados dentre eles, apesar das nuances, variantes e sutilezas que os diferenciam, as propostas que eles apresentam são apenas a introdução de pequenas modificações no funcionamento do capitalismo, para que esse sobreviva o maior tempo possível (esse foi também o objetivo de Keynes). Quase todos aceitaram, temporariamente, uma intervenção direta e maciça do Estado através da compra de ações dos bancos, de companhias de seguros e de caixas de poupança à beira da falência, isso sem mesmo reivindicar direito de voto e muito menos de controle das empresas estatizadas. Pode-se perceber algumas medidas keynesianas nos pacotes anti-crise aprovados pelos governos dos Estados Unidos, desde o primeiro plano proposto pela equipe de George W. Bush no primeiro semestre de 2008 (como a devolução de uma parte do imposto de renda que havia sido pago, como tentativa de estimular a demanda de consumo) até, sobretudo, no programa do presidente Barack Obama (obras de renovação de infra-estruturas). Entretanto, a predominância é, claramente, de medidas de políticas neoliberais visando salvar o máximo de riqueza financeira, quer dizer, do capital fictício acumulado pelos oligopólios da alta finança [19].

A conversão dos planos emergenciais de salvamento do capitalismo em um intervencionismo do Estado através dos Bancos Centrais, acionados de forma muito pouco democráticas pelos dirigentes dos governos neoliberais do Norte, não deve trazer ilusões. A combinação de fortes reduções nas taxas de juros com a abertura de gigantescas linhas de crédito e de compra de ativos bancários permanecem dentro das concepções ortodoxas e seus idealizadores estão muito longe de escaparem dos dogmas da teoria dominante. O "Relatório da Comissão Stiglitz" [20] fornece uma boa ilustração. Redigido entre 2008 e 2009 a pedido do presidente da Assembléia Geral das Nações Unidas, Miguel d´Escoto, o documento final não questiona verdadeiramente os fundamentos da ideologia neoliberal, apesar dela estar debilitada pela crise. Segundo este relatório, as antigas certezas do neoliberalismo devem ser revistas, mas certamente não devem ser abandonadas. Os regimes cambiais devem permanecer flutuantes, as virtudes do livre comércio são reafirmadas frente ao perigo do protecionismo, as falhas da governança corporativa devem ser corrigidas, a gestão dos riscos financeiros continua a ser confiada aos próprios oligopólios privados e a regulação do sistema mundial continua submetido ao imperialismo estadunidense. Assim, estamos cada vez mais longe das manifestações de rejeição expressas cada vez mais pelos países do Sul, da China à Venezuela, contra a liberalização financeira mundial claro que dentro de certos limites, dificuldades e contradições, é verdade.

Por outro lado, uma parte dos economistas liberais, minoritária mas significativa, continua a se radicalizar e se aproximam das teses ultra-liberais austríacas inspiradas em Ludwig Von Mises e Friedrich August Von Hayek. Tendo como fundamento a reafirmação sobre o caráter do equilíbrio automático dos mercados essas análises da crise, das quais encontramos uma bela amostra na página internet do Instituto Von Mises [21] , são embaraçosas para nossos neoliberais "novos keynesianos" na medida em que elas defendem, desde o início, que a crise é o resultado do excesso de intervenção do Estado e que o Estado não deveria, de forma alguma, salvar os bancos e empresas problemáticas [22] . O que deveria ser feito, segundo eles, seria acabar com todas as regulamentações estatais que limitam a livre ação dos agentes econômicos nos mercados. As políticas públicas de habitação, financiadas por Fannie Mae e Freddie Mac , pretendiam, de maneira populista, que todos os cidadãos tivessem acesso ao mercado imobiliário. O mercado demonstrou que é impossível, nem todos podem ter sua casa própria. Os ultra-liberais desenvolvem seus argumentos contra os planos anti-crise e, em particular, contra a regulamentação externa das taxas de juros pelo Banco Central. Os mais radicais dentre eles chegam a defender a supressão pura e simples das instituições estatais, instituições públicas, do banco central e da moeda estatal [23] . Eles estão conscientes de que tais medidas conduziriam o sistema capitalista ao caos, mas sua confiança nos mecanismos de mercado os conduzem à defesa de que esse caos será benéfico para o capitalismo e que o capital se reconstituirá muito mais rapidamente e mais vigorosamente do que se for apoiado pelas intervenções estatais artificiais, que tomam a forma de diferentes auxílios públicos às empresas condenadas à falência.

Nenhuma dessas correntes de pensamento sugere uma reflexão sobre as condições de um processo que permita a superação do capital enquanto relação social de exploração e opressão – inclusive as propostas da esquerda que demandam a reforma do FMI, do Banco Mundial ou a criação de uma nova "moeda mundial". Entretanto, existem vários defensores de que a crise atual conduzirá, provavelmente, ao colapso do capitalismo.

No início dos anos 1990, Robert Kurz [24] , em diversas obras, já defendia que o modo de produção capitalista estava em vias de extinção e que o século XXI abriria um período de transição para uma nova forma de sociedade. Immanuel Wallerstein, que estuda as tendências longas do capitalismo a partir das teorias do sistema mundo, declarou em uma entrevista ao Le Monde em outubro de 2008: "Eu penso que há 30 anos entramos na fase terminal do sistema capitalista. A situação torna-se caótica, incontrolável pelas forças que a dominavam até agora, e vemos a emergência de uma luta, não entre os detentores e os adversários do sistema, mas entre todos os agentes para determinar o que vai substituí-lo. Eu reservo a palavra 'crise' à esse tipo de período. Bem, estamos em crise. O capitalismo atinge o seu fim." [25] Ele acrescentou, em outra entrevista, ao jornal Público de Madri: "Nós podemos estar seguros que em 30 anos não viveremos mais sob o sistema-mundo capitalista." [26] Essas interpretações alinham-se com certas análises da conjuntura mundial do capitalismo, principalmente a equipe do Global Europe Anticipation Bulletin (GEAB – LEAP), cujas previsões sobre a crise continuam cada vez mais pessimistas. "Desde fevereiro de 2006, o LEAP/E2020 tinha avaliado que a crise sistêmica global se desenrolaria segundo quatro grandes fases estruturantes, a saber as fases de eclosão, de aceleração, de impacto e de decantação. Esse processo descreveu bem os acontecimentos até hoje [15/02/2009]. Mas, [...] a incapacidade dos dirigentes mundiais em medir a crise, caracterizada principalmente pela sua obstinação há mais de um ano em tratar das conseqüências da crise ao invés de atacar radicalmente suas causas, fará com que a crise sistêmica global entre em uma 5ª fase a partir do 4º trimestre de 2009: a fase chamada de deslocamento geopolítico mundial." [27] Em seu boletim mais recente, GEAB 39 de 15/11/2009, avaliam que: "Para o ano de 2010, tendo como pano de fundo uma depressão econômica e social, e de um maior protecionismo, essa evolução vai condenar um grande número de Estados à escolher entre três opções brutais, a saber: a inflação, a forte alta da pressão fiscal ou a cessação de pagamentos. Um crescente número de países (USA, Reino Unido, Eurolândia, Japão, China...), tendo gasto todos seus cartuchos orçamentários e monetários na crise financeira de 2008/2009, com efeito não podem mais ter outra alternativa." [28]

O aprofundamento das contradições

As medidas adotadas pelos Bancos Centrais para enfrentar a eclosão da crise, em 2007, aguçou as contradições econômicas conseguindo, somente, evitar um colapso global do sistema financeiro. As estatizações dos bancos e as linhas de crédito abertas produziram como efeito a aceleração do endividamento dos principais Estados capitalistas, por um lado, e, por outro, evitaram uma maior desvalorização do capital fictício transferindo parte dele ao Estado e aos Bancos Centrais.

Nos Estados Unidos, a dívida pública passou de 9,0 milhão de milhões de dólares, no final de agosto de 2007, para 12,1 milhões de milhões de dólares [29] ou mais de 90% do PIB, no final de novembro de 2009, um aumento de quase 35% nesse período. As estimativas das dívidas estatais para vários países elaboradas pelo FMI, para 2009, são mais conservadoras. Mesmo considerando estas estimativas, nenhum desses países atende mais aos critérios de convergência do Tratado de Maastricht, que estabeleceu como meta o limite de endividamento em 60% do PIB. Segundo o FMI, a dívida bruta do governo norte-americano é de 84,8% do PIB, a do governo japonês é de 218,6%, a do governo italiano é de 115,8%, a do governo alemão é de 78,7%, a do governo francês é de 76,7%, a do governo canadense é de 78,2% e a do Reino Unido é de 68,7%. O crescimento, entre 2007 e 2009, foi de 22,9 pontos percentuais para os Estados Unidos, 31,0 pontos para o Japão, 12,3 pontos para a Itália, 15,3 pontos para a Alemanha, 12,9 pontos para a França, 14,0 pontos para o Canadá e 24,6 pontos para o Reino Unido [30] . Esse crescimento acelerado da dívida pública expressa, em parte, a transferência de parte do capital fictício dos grandes bancos e instituições financeiras para o Estado. Por outro lado, alimenta e amplia as avaliações e conjecturas sobre a possibilidade de uma nova explosão nos mercados financeiros decorrente de uma possível insolvência desses Estados.

Entre setembro de 2008, quando o Lehman Brothers faliu, e setembro de 2009, a emissão de moeda, base monetária ou passivo monetário do FED, passou de 908,0 mil milhões de dólares para 1.800,1 mil milhões de dólares (no final de outubro de 2009, chegou a 1.936,5 mil milhões), um aumento de mais de 100%, em pouco mais de um ano. No mesmo período, entre 2006 e 2007, o crescimento da base monetária tinha sido de 2,1% e 9,9%, respectivamente. Essa gigantesca criação primária de moeda, entre 2008 e 2009, apresentou um impacto pouco significativo nos meios de pagamentos (M 1 ), que cresceu apenas 14,3%, e menos ainda no M 2 , com aumento de 6,7% [31] . Assim, essa injeção de moeda, associada à queda na prime rate, , não atingiu o objetivo esperado de elevação do crédito bancário. Os empréstimos bancários totais do sistema bancário estadunidense, que tinha crescido 7,4%, no período anterior, cresceram 2,8%, entre setembro de 2007 e 2008, e diminuíram 8,2%, entre 2008 e 2009 [32] ; entretanto, o total dos empréstimos renegociados aumentou quase 140%, após a falência do Lehman Brothers, segundo os dados do Federal Deposit Insurance Corporation. Entretanto, os ativos dos bancos norte-americanos cresceram com essa política do FED, de 12,7 milhões de milhões de dólares, em setembro de 2006, para 13,3 milhões de milhões, em setembro de 2009. O aumento nos ativos bancários significa, igualmente, um crescimento do capital fictício, fundado na expansão da oferta monetária do FED.

O crescimento do capital fictício se reflete no volume total de derivativos nos balanços dos bancos norte-americanos, estimados em valor nocional, que estão crescendo continuamente, tendo crescido mesmo durante o período mais duro da crise. Assim, o total de derivativos passou de 127,1 milhões de milhões de dólares, em setembro de 2006, para 174,6 milhões de milhões de dólares, em 2007, 177,1 milhões de milhões de dólares, em 2008, e 206,4 milhões de milhões de dólares, em setembro de 2009 [33] . A maior parte desses derivativos (99,8%, em junho de 2009) estão em poder de apenas 25 bancos comerciais, dentre os quais os cinco maiores são J.P. Morgan Chase, Goldman Sachs, Bank of América, Citibank e Wells Fargo Bank, com mais de 195,0 milhão de milhões de dólares ou 96,5% do total [34] . Deve-se destacar que os mais de 8 mil bancos dos Estados Unidos tinham ativos totais de 13,2 milhões de milhões de dólares, em 30 de setembro de 2009, segundo o FDIC, os 25 maiores bancos tinham 7,7 milhões de milhões de dólares, em junho de 2009, e os cinco maiores, apenas 5,5 milhões de milhões de dólares em ativos totais, segundo os dados do OCC.

Na medida em que a injeção de novos recursos não foi convertida em novos empréstimos, uma parte deles foi redirecionada ao mercado financeiro internacional, propiciando a acelerada recuperação dos índices das principais bolsas de valores, em 2009, e pressionando continuamente à desvalorização do dólar. Assim como o crescimento da dívida pública espalhou o fantasma da insolvência dos Estados, o gigantesco crescimento na oferta de dólares está alimentando as previsões sobre o seu colapso como moeda mundial e o fim da hegemonia mundial dos Estados Unidos [35].

À guisa de conclusão

O ano de 2009 está terminando com todas as economias do mundo retomando um tímido crescimento. No último World Economic Outlook, o FMI estima que a queda da economia mundial seja de apenas 1,1%, no ano. Muito menos do que as previsões mais pessimistas. As economias avançadas terão um retrocesso médio de 3,4%, destacando-se o Japão com -5,4% e os países da zona do Euro com -4,2%, os Estados Unidos sofrerão menos, apenas -2,7%. Por outro lado, as economias "emergentes e em desenvolvimento" crescerão 1,7%. As previsões para 2010 são otimistas, 3,1% de crescimento para a economia mundial, 1,3% para as economias avançadas e 5,1 para as emergentes e em desenvolvimento [36] . Afinal, a crise parece ter sido superada e o sistema capitalista mundial aparenta entrar novamente em um ritmo normal de crescimento, mesmo que ainda timidamente. Assim, as interpretações catastrofistas parecem ter sido refutadas e as dos defensores da intervenção estatal parecem plenamente confirmadas.

Nós discordamos do ponto de vista de que esta crise, por mais profunda que ela seja, conduza o sistema capitalista a um colapso imediato. Discordamos, igualmente, que a gigantesca criação de dólares levará ao fim o padrão dólar e do imperialismo estadunidense no sistema mundial. Como afirmamos no início, a intervenção estatal permite amenizar os impactos da crise estendendo-a no tempo e distribuindo-a no espaço, dessa forma, a aparente superação da crise não trará de volta, imediatamente, um período longo de expansão e de estabilidade da economia capitalista mundial. Além disso, a crise econômica é necessária, mas não é suficiente para mudar a correlação de forças entre as classes sociais em luta e muito menos para a decadência da hegemonia burguesa construída solidamente, em cada um dos países, através de uma ampla sociedade civil, no sentido gramsciano [37].

A crise atual abre um novo período para expandir a exploração da força de trabalho para a recuperação, ao menos parcial, da taxa de lucro. E isso tem como fundamento objetivo as enormes massas de trabalhadores desempregados devido à crise e o gigantesco contingente de famintos no mundo, dispostos a se submeterem às condições mais duras do trabalho assalariado para obterem o mínimo para atender suas necessidades básicas.

Quanto à superação do imperialismo estadunidense e a sua substituição por outra potência no curto prazo, como defende Wallerstein, é muito pouco provável [38] . Isso porque o centro do imperialismo é também o centro das unidades de capital mais poderosas do planeta que estão disseminadas e implantadas nas principais regiões do mundo, asseguradas pelas forças armadas mais poderosas do planeta. Da mesma forma, as pressões para a desvalorização do dólar decorrente da gigantesca emissão não são suficientes para a sua falência como dinheiro mundial. Primeiro, porque não há uma moeda concorrente com suficiente peso na economia mundial para substituir o dólar; segundo, porque os interesses e contradições entre os diferentes estados nacionais dificilmente serão superados para a criação de uma nova moeda mundial; terceiro, porque o FMI, em particular, está sendo regenerado como um dos guardiões do dólar, através das maciças injeções de recursos efetuadas recentemente; enfim, porque assim como as unidades de capital, o dólar também é respaldado pela força bélica da potência mundial.

A desvalorização acelerada do dólar, ademais, beneficia os EUA por dois motivos: primeiro porque desvaloriza as reservas internacionais dos países que acumularam uma gigantesca massa de dólares em suas reservas; segundo, porque torna mais competitiva as exportações, contribuindo na redução do déficit externo estadunidense. A desvalorização do dólar tornou-se um dos mecanismos através do qual uma parte dos custos da recuperação do sistema de crédito no centro do capitalismo está sendo transferida para os países periféricos. Por outro lado, os países que acumularam alguns milhões de milhões de dólares em reservas, em particular a China e o Japão, encontram-se em uma armadilha da qual é difícil escapar e acabam sendo obrigados a apoiarem e evitarem o colapso do dólar.

Essa nova manifestação da crise do capital colocou em evidência as contradições do próprio modo de produção capitalista e que o seu desenvolvimento não só não atende como é contrário às necessidades básicas e gerais da maioria da população mundial. A solução de suas contradições pode recolocar em marcha o ritmo da acumulação de capital, até a explosão de nova crise. A gravidade da crise atual e as contradições recolocadas em outro nível recomendam que é necessário repensar o desenvolvimento e colocar em pauta a urgência da necessidade de superação do modo de produção capitalista e a construção de uma nova sociedade.

NOTAS

1. HERRERA, Rémy; NAKATANI , P. . La crise financière: racines, raisons, perspectives. La Pensée (Paris), v. 353, p. 109-113, 2008.

2. Esta forma de capital torna-se cada vez mais especulativa e parasitária. Ver: CARCANHOLO, R. e NAKATANI, P. O capital especulativo parasitário: Uma precisão teórica sobre o capital financeiro, característico da globalização. Ensaios FEE, vol. 20, no. 1, p. 284-304, 1999.

3. MARX, Karl. O Capital. Crítica da Economia Política. Livro III, vol. IV e V. Os Economistas. São Paulo: Nova Cultural, 1986.

4. Para a edição em alemão: Marx, Karl. Das Kapital – Kritik der politischen Ökonomie, Buch III: Der Gesamtprozeß der kapitalistischen Produktion . Band 25, Berlin: Institut für Marxismus-Leninismus, Dietz Verlag, 1964; e em português MARX, Karl. O Capital. Crítica da Economia Política. Livro III, vol. IV e V. Os Economistas. São Paulo: Nova Cultural, 1986.

5. Há outras formas de capital fictício que podem surgir em um determinado grau de desenvolvimento das forças produtivas e que desaparecem quando o próprio desenvolvimento dessas forças suprime as bases do surgimento daquela forma especifica de capital fictício. Marx mostra como o capital empregado na compra e venda de uma mercadoria exportada da Inglaterra para a China converte-se em capital fictício duplicado nas duas pontas do negócio, nos dois países, através do sistema de crédito. A existência desse capital fictício era possível devido ao longo tempo necessário para o transporte da mercadoria. A rapidez com que o sistema de transporte passou a entregar as mercadorias, nos dias de hoje, acabou com essa forma de criação do capital fictício. (MARX, 1986, op. cit. p. 301).

6. CARCANHOLO, R. e NAKATANI, P. O capital especulativo parasitário: Uma precisão teórica sobre o capital financeiro, característico da globalização. Ensaios FEE, vol. 20, no. 1, 1999, p. 284-304 e CARCANHOLO, R e SABADINI, M. S. Capital fictício y ganâncias fictícias. Herramienta, no. 37, 2008, p. 59-80.

7. As chamadas hipotecas sub-prime são empréstimos que foram concedidos para famílias, sem uma fonte de renda regular e sem um bom cadastro bancário, para a aquisição de imóveis. Em contraste com a prime rate, a taxa de juros cobrada nestes empréstimos era de mais de 8% ao ano, aumentando até 14%, depois dos dois primeiros anos. Esse enorme diferencial entre a taxa básica de juros e a taxa paga pelos devedores hipotecários estimulou fortemente a oferta de crédito devido ao excesso de capital dinheiro acumulado. Devido ao risco de inadimplência foram desenvolvidos várias formas de derivativos (MBS, CMO, ABS, CBO) que supostamente anularia o risco pela sua diluição entre os vários participantes do mercado.

8. O Banco Central Europeu (BCE) ofereceu US$ 130,0 mil milhões, o Federal Reserve (FED) fez o mesmo em um montante de US$ 24,0 mil milhões, seguido pelo Banco Central do Japão, num total de US$ 8,4 mil milhões. Esse conjunto de operações coordenadas e quase simultâneas ultrapassou 350,0 mil milhões de dólares após cinco dias de intervenção.

9. KRUGMAN, Paul. Financial Russian Roulette. New York Times , 14 de setembro de 2008. www. nytimes.com/... . Também ocorreram corridas bancárias à moda antiga, como ao banco Northern Rock, na Inglaterra, estatizado em fevereiro de 2008. Nem o Brasil escapou dessas corridas bancárias, conforme entrevista de Mário Torós, diretor de política monetária do Banco Central, ao Valor Econômico, em 13/11/2 009.

10. https://cnnmoney.printthis.clickability.com/pt/cpt?action=cpt&titl.

11. Segundo os dados estatísticos de 2008 elaborados por Thomson Financial Datastream, disponíveis em janeiro de 2009.

12. Segundo o jornalista britânico Martin Wolf, principal comentarista econômico do Financial Times: "uma proporção considerável de bancos está insolvente, seus ativos valem menos do que seus passivos. O FMI estima que as perdas potenciais de créditos pode chegar a 2,2 milhão de milhões de dólares nos Estados Unidos. Outros cálculos sugerem que elas ultrapassariam 3,6 milhão de milhões de dólares". Why Obama´s new tarpp will fail to rescue banks. https://news.ft.com/comment/columnist/martinwolf . Acesso em 10/02/2009.

13. Esse número subiu para 552, com ativos de 346 mil milhões de dólares, no terceiro trimestre de 2009, num total de 8.099 instituições. FDIC. Quartely Banking Profile.

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