No último dia 24 de agosto, enquanto trabalhadores e estudantes chilenos paralisaram por dois dias os serviços públicos daquele país, recolocando a América Latina no mapa das lutas de classes mundiais, cerca de 20 mil manifestantes brasileiros marcharam sobre Brasília, reivindicando mais investimentos na educação, na saúde e na reforma agrária. Organizado pela oposição de esquerda ao governo Dilma Roussef, este protesto nacional contou com a participação de entidades sindicais e populares, como, por exemplo, a CSP-Conlutas, o MST e o MTST. Os trabalhadores sem-terra chegaram a ocupar o prédio do Ministério da Fazenda a fim de pressionar o governo a liberar o orçamento do Incra para assentar famílias que se encontram acampadas em todo o país. Quem já visitou estes acampamentos sabe que, apesar do clima de intensa solidariedade existente entre os acampados, as condições de vida são muito precárias…
Governistas estranharam a decisão dos trabalhadores rurais sem-terra em participar de um protesto nacional convocado pela oposição de esquerda ao governo. Afinal, o MST não faz parte das bases sociais do lulismo? A dúvida procede e merece uma reflexão: como interpretar que o mais importante movimento social surgido no país há quase três décadas, uma referência reconhecida por milhares de lutadores sociais espalhados pelo mundo todo e que tanto fez pela reforma agrária brasileira, siga hipotecando apoio a um governo concentrador de terras, dependente do agronegócio como fonte de divisas e que legalizou a grilagem na Amazônia por meio da Medida Provisória 458?
Naturalmente, não existe uma resposta simples para esta questão. No entanto, a solução do enigma que envolve um movimento que luta pela reforma agrária, mas apoia um governo pró-latifúndio e pró-agronegócio, passa pelo reconhecimento de que o MST desenvolveu ao longo dos últimos oito anos uma existência bifronte: de um lado, temos oitenta mil famílas sem-terra vivendo em barracas de lona e já desesperançadas com as promessas vazias de distribuição de terras feitas por um governo refém do latifúndio. De outro, temos as famílas assentadas, ligadas às cooperativas rurais e que dependem dos recursos do governo federal para financiar a pequena agricultura familiar. Fora o crédito subsidiado, o MST, por exemplo, utiliza cerca de R$ 8 milhões de verbas federais anualmente apenas para treinamento e assistência técnica nos assentamentos. Recursos estes provenientes de convênios com o Ministério do Desenvolvimento Agrário, o Ministério da Saúde e o Ministério da Educação.
Ou seja, se identificamos entre os trabalhadores rurais sem-terra milhares de vozes críticas ao lulismo a se desgarrar das amarras do controle político do governo federal, também localizamos uma fonte de acomodação ao status quo cujo horizonte político já não nega totalmente o latifúndio ou o agronegócio. Entre o acampamento e o assentamento, o MST tem buscado superar suas contradições, reinventando-se como o mais importante movimento social brasileiro das últimas décadas.
A situação atual vivida pelos sem-terra encontra um afamado paralelo histórico. Recentemente reeditado pela Boitempo, em O 18 de brumário de Luís Bonaparte, Marx analisou, em meados do século XIX, as contradições entre a fração camponesa formada por proprietários de parcelas e a existência de camponeses revolucionários pressionados pela crise da pequena produção agrícola. Em três ocasiões, os camponeses parcelários sufragaram Luís Bonaparte (eleito presidente da França em 10 de dezembro de 1848, logo desferindo o golpe de Estado do 2 de dezembro de 1851 que colocou um fim na II República) na esperança de que este enfrentasse a república dos ricos. Uma esperança totalmente infundada, já que o sobrinho de Napoleão era, na verdade, um instrumento da consolidação da ordem burguesa na França.
Marx interpretou este comportamento dos camponeses franceses da seguinte maneira: os parcelários associavam a figura do sobrinho à lembrança da reforma agrária promovida pelo tio, votando em Luís Bonaparte por considerarem-no um representante de seus interesses de classe. Interesses que, sozinhos, eles não conseguiam traduzir em um projeto político autônomo. No entanto, a baixa produtividade da parcela tornava a atividade econômica camponesa pouco lucrativa, arremessando os novos proprietários de terras nos braços da mais desavergonhada exploração promovida pelos credores capitalistas. Daí o surgimento de setores revolucionários entre os camponeses que enfrentaram os prefeitos provinciais em conflitos duramente reprimidos pelas tropas bonapartistas.
Evidentemente, as condições sociais do campo na França do século XIX e no Brasil do século XXI são muito diferentes. Atualmente, a pequena propriedade cooperativada, se apoiada pelo crédito subsidiado, pode perfeitamente ser um negócio viável do ponto de vista comercial. Na verdade, produtos com a marca do MST já são exportados e o consumo de hortaliças e legumes orgânicos tende a crescer a cada dia, transformando-se, a exemplo do que acontece na Europa e nos Estados Unidos, em um mercado muito rentável em pouco tempo. No entanto, o dilema permanece… Basicamente, trata-se de uma escolha política: os trabalhadores rurais sem-terra devem privilegiar a luta pela reforma agrária ou por mais espaço no interior do atual modelo de desenvolvimento econômico? Um modelo que, diga-se de passagem, apoia-se predominantemente na exploração extensiva de recursos naturais e de força de trabalho barata cujos efeitos são a degradação ambiental e o aumento exponencial do número de acidentes de trabalho. Ou seja, não é mais possível fingir que os dois objetivos são compatíveis.
Em O 18 Brumário, Marx soube perscrutar as bases para a aliança entre os camponeses revolucionários e o proletariado urbano que, de fato, emergiu seis décadas depois durante a Revolução Russa de 1917. Não seria de todo inapropriado identificar no bem-sucedido protesto do último 24 de agosto a sombra daquele espectro que tem aterrorizado os capitalistas no mundo todo desde então. Mas, para que o espectro volte a inspirar medo, é imperativo que os camponeses rompam com o governo da república dos ricos.
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Ruy Braga, professor do Departamento de Sociologia da USP e ex-diretor do Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania (Cenedic) da USP, é autor, entre outros livros, de Por uma sociologia pública (São Paulo, Alameda, 2009), em coautoria com Michael Burawoy, e A nostalgia do fordismo: modernização e crise na teoria da sociedade salarial (São Paulo, Xamã, 2003). Na Boitempo, coorganizou as coletâneas de ensaios Infoproletários – Degradação real do trabalho virtual (com Ricardo Antunes, 2009) e Hegemonia às avessas (com Francisco de Oliveira e Cibele Rizek, 2010), sobre a hegemonia lulista. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às segundas-feiras.