Caio Navarro Toledo: Vitória simbólica sobre a ditadura pós-1964
1964: NOTA SOBRE UMA VITÓRIA SIMBÓLICA
Caio N. de Toledo
O recente episódio suscitado por uma placa, afixada no centro do campus da USP, revelou que não deixa de ser vitorioso o significado político-ideológico que as esquerdas brasileiras consagraram sobre os acontecimentos em torno de 1964. Essa interpretação – para desagrado de civis e militares golpistas – tornou-se hegemônica na atual cultura política democrática brasileira.
No dia 3/10, o blog do jornalista Luiz Carlos Azenha (Viomundo) estranhou o fato de uma placa na USP conter a seguinte inscrição: “Monumento em homenagem aos mortos e cassados na Revolução de 1964”. A indagação da jornalista Conceição Lemes, autora da matéria, foi simples e direta: A USP homenageia as vítimas da “Revolução de 1964?”
Imediatamente, outros blogs e parte da grande mídia (portais na internet e jornais impressos) também destacaram o fato da Reitoria da Universidade de São Paulo, por meio da placa, ratificar a versão que os militares e setores civis da direita brasileira procuram difundir sobre a intervenção militar ocorrida há 47 anos; qual seja, a versão segundo a qual em 1º. de abril de 1964 teria havido uma Revolução, não um Golpe Militar! [Ninguém desconhece que, para alguns ideólogos civis e militares (de Delfim Netto a Golbery do Couto e Silva), 1964 representou uma “Revolução redentora” que, de forma pacífica, salvou o Brasil da subversão antidemocrática e do comunismo ateu, bem como lançou as bases para a emergência de uma sólida economia industrial no país. Em contrapartida, para a extensa maioria dos intérpretes – partidos e autores – da esquerda no Brasil, abril de 1964 significou um golpe civil-militar contra a democracia política e algumas propostas de reformas econômicas e sociais do capitalismo brasileiro.]
Divulgada a informação sobre a placa, a repulsa dos setores democráticos e progressistas não tardou. Por meio da internet, a comunidade universitária e os blogs progressistas denunciaram o estelionato semântico difundido pela placa que, reconheça-se – pelo seu conteúdo objetivo –, não deixava de revelar um fato altamente positivo: a construção de um monumento em homenagem às vítimas da repressão militar nos 25 anos de ditadura.
Menos de 24 horas após a denúncia feita no Viomundo, alguns jornais informam que a placa havia sido retirada do campus da USP. Numa nota ao próprio blog a Reitoria da USP esclarecia: “Houve um erro na inscrição da placa. O nome correto é: “Monumento em Homenagem aos Mortos e Cassados no Regime Militar”. Trata-se de um projeto do Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da USP. A correção da placa será feita o mais breve possível”.
Embora a Reitoria da USP informe que não empregará a expressão “ditadura militar” na nova placa a ser afixada no campus, deve-se reconhecer que uma vitória no plano simbólico não deixou de ocorrer. Esta pequena vitória foi possível graças às iniciativas daqueles que – face o fascismo cotidiano existente nas democracias capitalistas – exercem o direito de protestar e não ceder ao arbítrio e à violência no plano simbólico.
Foi o que fizeram, por exemplo, três estudantes da USP. Como informa o Viomundo, um estudante, desafiando a segurança, riscou a expressão “Revolução de 1964” e escreveu na placa: “golpe”. Horas depois, uma estudante acrescentou a palavra certa: “ditadura”. No dia seguinte, a mesma jovem voltou ao local e escreveu: “massacre”. Uma blogueira entrevistada disse: “É um verdadeiro insulto a todos os estudantes e professores que foram perseguidos e mortos durante os anos de chumbo”. Se não fossem os estudantes, a placa insultuosa – aprovada pelos burocratas da Universidade –, certamente, ali permaneceria sob o olhar indiferente, complacente e despolitizado de muitos circunstantes.
No entanto, alguns estudantes não se calaram; manifestaram justa indignação. São eles que, nos dias de hoje – no combate pela memória e verdade histórica sobre os crimes da ditadura pós-1964 –, contribuem para re-significar a divisa forjada na luta contra o fascismo: no pasarán!
Caio Navarro de Toledo é professor aposentado do Departamento de Ciência Política, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, da Unicamp.