As origens agrárias do capitalismo, artigo de Ellen Meiksins Wood

29/08/2010 00:51

O artigo "As origens agrárias do capitalismo, de Ellen Wood, foi publicado na Crítica Marxista, nº 10. Contou com uma introdução da professora Lígia Osório, que reproduzo aqui.

 

www.unicamp.br/cemarx/criticamarxista/EllenWood.pdf

 

Introdução ao texto de Ellen Meiksins Wood, “As origens agrárias do capitalismo”.

 

Lígia Osório Silva *

 

A polêmica a propósito das origens do capitalismo tem envolvido pesquisadores das mais variadas tendências da historiografia econômica, merecendo todavia um destaque especial os historiadores marxistas, pelo teor das suas contribuições na problemática da transição do feudalismo ao capitalismo. Este texto da historiadora Ellen Wood representa mais uma valiosa contribuição para a história econômica da Época Moderna.

 

O seu ponto de partida é a crítica da vertente historiográfica que considera o capitalismo uma evolução natural da atividade humana, e seu desenvolvimento inevitável, sempre que a sua marcha não encontre obstáculos externos. O capitalismo teria surgido no Ocidente europeu exatamente porque ali o desenvolvimento do comércio se beneficiou da inexistência de limitações às práticas econômicas urbanas. Esta visão nega ao sistema capitalista uma especificidade própria, confundindo-o com a generalização das atividades milenares do comércio, respaldando-se no fato inquestionável de que o novo sistema econômico incorporou todas as antigas práticas, desenvolvendo-as através do crescimento e da integração dos mercados. E, sem dúvida, se as cidades tiveram um papel destacado neste processo, entretanto, a excessiva ênfase dada a este papel no surgimento do capitalismo acabou levando muitas vezes à visão dos vários “capitalismos” presentes ao longo da história, ou ao equívoco da sua identificação simplista com o impulso inato da “busca do lucro.”

 

Ao contrário desta vertente, E.Wood, determinada a pôr em destaque a originalidade da nova forma de produção que se tornaria dominante na Inglaterra no final do século XVIII, convida-nos a voltar nossa atenção para a agricultura, ao invés de seguir a senda batida da identificação entre capitalismo e crescimento das cidades. Insistindo no caráter historicamente distinto do modo de produção capitalista, acompanha os seus primeiros passos na sociedade rural inglesa, dados na área das inovações técnicas, que alteraram as formas centenares de cultivo (consistindo basicamente na supressão do pousio e na introdução da rotação de culturas do sistema Norfolk). Mas, sobretudo, no âmbito das relações sociais de produção, através da alteração dos direitos de propriedade e seus efeitos, gravíssimos, em todos os níveis da vida social.

 

Os “enclosures” (cercamentos), quer dizer, a forma inglesa de operar a mudança no caráter da propriedade do solo através da abolição da propriedade comum de campos e pastagens e a arcaica divisão em “folhas”, e sua substituição pelo cultivo contínuo dos campos cercados e possuídos por apenas um proprietário, são um capítulo fundamental da história econômica inglesa. Desde o destaque dado por Marx n’O Capital, gerações de historiadores têm se debruçado sobre os diferentes aspectos do fenômeno que dominou o campo inglês do século XVI ao XIX. A moderna historiografia inglesa (inclusive a de orientação marxista1) tende a considerar os cercamentos como parte do processo mais geral de concentração da propriedade da terra, efetuado não somente por meios institucionais (como as leis dos cercamentos aprovadas no Parlamento), mas também através da competitividade do mercado. Reserva-lhe também um papel menos decisivo no tocante ao êxodo rural, uma vez que, nas regiões onde os "enclosures" foram mais freqüentes, as oportunidades de trabalho tenderam a aumentar (exceto quando as pastagens substituíram o cultivo). Em outras palavras, o processo de concentração da terra e de expropriação dos camponeses que deu origem ao contingente dos sem terra (visados nas “leis dos pobres”) ultrapassou os limites da transformação das terras comunais em propriedade privada. Mas inegavelmente os cercamentos permaneceram como o símbolo da nova era, na qual o aumento da produtividade no campo veio associado à deterioração das condições de vida de uma parcela substantiva da população rural, fato que até seus mais ardorosos defensores reconheceram. A perda do acesso direto aos meios de produção pela destruição das formas comunitárias de uso da terra, sujeitou aos imperativos do mercado toda a população rural, mesmo os pequenos produtores não expropriados.

 

É justamente neste aspecto que E.Wood fornece a sua visão original da dinâmica específica do capitalismo. Por um lado, o aparecimento no campo inglês, pela primeira vez numa dimensão historicamente notável, da relação entre o aumento da produtividade e da lucratividade associados à propriedade individual plena, isto é, exclusiva e excludente.

 

Esta dinâmica já estava instalada na agricultura inglesa antes da proletarização da força de trabalho, e foi na verdade responsável por ela. Por outro lado, as conseqüências que ela acarreta: uma vez que todas as relações passam a ser “disciplinadas” pelo mercado não há como escapar, nem apropriadores, nem expropriados, dos seus imperativos que impulsionam as sociedades no sentido inverso do bem-estar das suas populações.

 

O artigo desmistifica as pré-condições das quais emergiu a primeira sociedade capitalista, lembrando-nos o quanto é improvável que estas condições históricas se repitam e também, o mais grave, que são os aspectos mais sombrios da infância do capitalismo que podem esperar alcançar as sociedades que ainda hoje lutam para se adequarem aos imperativos do mercado. Por todas essas razões, é extremamente convincente a crítica arrasadora de Ellen Wood à tese do capitalismo “eterno”.