As lutas de classes no Uruguai [no Diário Liberdade]

08/10/2011 11:35

Rebelión - [Luis Ibarra, Tradução de Diário Liberdade] O governo de esquerda do Uruguai se destaca pela relação com o trabalho. A Frente Ampla mantém o objetivo de controlar a inflação, mas distintamente aos governos anteriores, trata de controlar os conflitos do trabalho.


As análises políticas, em geral, consideram os conflitos como objetos sobre os quais recai a ação do Estado. Este artigo inverte o ponto de vista e analisa as políticas de governo como respostas às lutas. Seguindo este fio se colocarão de manifesto não somente as tensões que essas políticas encerram, mas também os movimentos que as superam.

Das resistências ao governo

A composição do trabalho no Uruguai passou por grandes transformações técnicas e políticas durante as últimas décadas.

Os métodos de organização baseados na colaboração dos trabalhadores, a subcontratação de funções e a precariedade do emprego, desagregaram a figura de uma classe trabalhadora massiva. A relação laboral não se limita a algo que ocorre entre trabalhadores e patrão dentro da fábrica. O controle sobre o trabalho se estende como um controle de redes produtivas na sociedade e multiplica também os personagens e lugares de conflito.

Os sindicatos, reduzidos a organização do emprego formal, resistiram às reformas neoliberais associados ao partido de esquerda, a Frente Ampla. Esses laços entre organizações sociais e políticas não estiveram livres de tensões. Não obstante, foram decisivos tanto para a eficácia política das resistências sociais, como para canalizar eleitoralmente os descontentes a favor da esquerda e ascender ao governo.

O governo da Frente Ampla respondeu a essa composição de classe com a instituição dos Conselhos de Salários. A negociação coletiva era uma demanda sustentada pelo movimento sindical e um elemento-chave de sua associação com a esquerda, contrária à desregulamentação laboral promovida pelos partidos políticos tradicionais. Os Conselhos de Salários aparecem como um reconhecimento do poder dos trabalhadores e, ao mesmo tempo, como a tentativa de confiná-los em um lugar subalterno.

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Vázquez: a administração dos salários

Entre os anos 2005 e 2010, o governo de Tabaré Vázquez procurou controlar os conflitos do trabalho e administrar os salários em função da inflação.

A Frente Ampla organizou os Conselhos de Salários em todas as atividades econômicas; protegeu os sindicatos, com a finalidade de desequilibrar sua posição com os empresários; e pôs a negociação coletiva sob a tutela do governo. O Poder Executivo fixou aumentos de salários simultâneos e uniformes, limitou a negociação coletiva a uma implementação particular por ramos de atividade e reconheceu somente os convênios que cumpriram com as pautas governamentais.

Deste modo, a política econômica pretendeu regular os salários como uma variável dependente da inflação. No entanto, deparou-se com um desenvolvimento de necessidades e desejos que transcendem as mediações políticas.

Os conflitos aumentaram até recuperar os níveis prévios à instalação dos Conselhos de Salários. Segundo o Instituto de Relações Laborais, a mobilização passou de 392.914 jornadas laborais no ano de 2005, para um total de 1.315.983 jornadas de trabalho perdidas em 2008.

Cresceu também a organização sindical. Dos 140.000 trabalhadores sindicalizados, estimados no início de 2005, chegou-se a cerca de 300.000 no final de 2008, segundo a central sindical PIT-CNT. 2

Os trabalhadores questionaram as pautas salariais do governo. Promoveram aumentos diferenciados para as categorias de baixos ingressos e, enquanto os ajustes fixados pelo governo de Vázquez iam de um mínimo de 9 até um máximo de 20 por cento, levaram a um crescimento do salário real de 27% no quinquênio.

As lutas converteram o salário em uma variável rebelde que supera os limites da política econômica.

Mujica: a flexibilização salarial

No ano de 2010, assumiu um novo governo presidido por José Mujica. Ainda que pertença também a Frente Ampla como o anterior, reagiu aos conflitos do trabalho com a flexibilização salarial.

071011_mujicaO governo de Mujica manteve o controle da inflação como prioridade, mas abandonou a administração dos salários. O Poder Executivo deixou de fixar os percentuais de ajuste e os substituiu por aumentos de produtividade. A flexibilização permite maiores aumentos para os sindicatos mais fortes e as empresas com melhor capacidade de pagamento, sem impulsionar um aumento geral de salários, nem elevar os preços.

Não afeta a distribuição entre trabalho e capital, porque os salários somente aumentam se crescem os lucros. Por outro lado, há importantes efeitos políticos. A subordinação à produtividade associa a renda do trabalhador ao êxito das empresas, antes que ao conjunto da classe, e requer a colaboração dos sindicatos para definir e vigiar os convênios.

O governo da Frente Ampla respondeu ao desenvolvimento da composição de classe com políticas que acentuam as diferenças entre os trabalhadores, dispersam a ação dos sindicatos e reintegram as lutas dentro da política econômica. Não obstante, a troca da regulação salarial terminou por resolver-se através de uma onda de conflitos.

O ciclo de lutas

Os conflitos compreenderam a renovação dos convênios da atividade privada e a negociação salarial dos funcionários públicos, sustentados por ações comuns de todo o movimento sindical, incluindo uma greve geral de 24 horas. A agitação somou um total de 1.279.500 jornadas de trabalho no ano de 2010, com a participação de 1.114.400 trabalhadores, segundo o Instituto de Relações Laborais.

Seu impacto se viu incrementado, ainda, por formas de luta que multiplicam os efeitos sobre as atividades. As ocupações de locais de trabalho, os piquetes e o encadeamento das paralisações revelaram um conhecimento e poder dos trabalhadores, que se sobrepôs às direções de empresas e serviços. O ciclo concluiu atraindo os trabalhadores do comércio e dos serviços, ademais dos baixos salários e que tinham sido mantidos até então à margem das lutas.

O Ministério do Trabalho celebrou os acordos finalmente alcançados com a assinatura de novos convênios. Em troca, o Banco Central advertiu que se acordaram aumentos de salários acima da inflação que não estão ligados a incrementos de produtividade.

Efetivamente, a maioria dos convênios estabeleceu aumentos de salários fixos e, inclusive, quando adotaram formas de flexibilidade como no caso da Construção Civil, limitaram sua variação dentro de estreitas margens. A similitude das percentagens de aumento, apesar da diversidade das fórmulas de ajuste, reflete referências comuns, que prevalecem sobre as diferenças entre os setores econômicos.

Pode-se discutir se os resultados obtidos estão à altura do potencial existente. Este é e será um assunto de debate entre os agrupamentos sindicais. Os conflitos do período produziram também algo mais e distinto que melhores salários. Traçaram um curso de ação majoritário entre os trabalhadores e vitorioso no choque de classes.

Conclusão: a estratégia da autonomia

As relações de forças produziram resultados que contrariaram os alinhamentos do governo. Não são os salários que se flexibilizam para manter os lucros, mas, sim, estes últimos que acabam condicionados pela rigidez das necessidades dos trabalhadores. Longe de dispersar sua ação, os sindicatos impuseram referências comuns, que nivelam as diferenças entre os setores econômicos. O salário se torna independente como um “componente exógeno”, alerta o Banco Central, que escapa à administração da política econômica e a condiciona.

Das lutas surge uma estratégia diferenciada do governo, que revela uma tendência à autonomia política dos trabalhadores e se projeta como um movimento que supera o atual estado das coisas.

Luis Ibarra é Politólogo, Mestre em Governo e Políticas Públicas, trabalha como pesquisador no Instituto de Ciência Política e é docente na Faculdade de Ciências Sociais da Universidade da República do Uruguai.

Notas

1 Criado como uma coalizão de organizações de esquerda e figuras políticas tradicionais, a Frente Ampla se converteu em um partido, no qual as velhas formações persistem como setores internos.

2 Plenário Intersindical de Trabalhadores – Convenção Nacional de Trabalhadores é a denominação da central que reúne aos sindicatos do Uruguai.

Tradução de Gabriela Blanco para Diário Liberdade