Artigo de Leandro Galastri sobre o Novo Partido Anticapitalista francês
O Novo Partido Anticapitalista francês: nova batalha numa antiga guerra?
Leandro de Oliveira Galastri
No último dia nove de fevereiro surgia oficialmente na cena política francesa o Novo Partido Anticapitalista, oriundo da antiga Liga Comunista Revolucionária, dissolvida no primeiro dos três dias do congresso de fundação do NPA. Quase nove mil fichas de adesão preenchidas, praticamente triplicando os cerca de três mil antigos filiados à LCR. (ZAPPI, 2009b, p.8). Foi o desfecho de um largo processo de criação do novo partido, cuja reta final havia começado em junho de 2008, com o lançamento, pela LCR, da “primeira coordenação nacional de comitês por um novo partido anticapitalista”, em Saint-Denis, subúrbio de Paris (ZAPPI, 2008, p.12). Quais são as perspectivas abertas para a luta política da chamada “extrema esquerda” francesa e o que o NPA realmente traz de novo para o espectro partidário socialista?
Para compreender a inserção da LCR / NPA no leque político-ideológico francês, é preciso lembrar que o partido pertence ao que na França se conhece como “gauche de la gauche”, esquerda da esquerda, ou ainda “esquerda radical”, termo usado comumente pela imprensa para designar os partidos e grupos de esquerda que não fazem parte da chamada “esquerda governamental”, que é basicamente a coalizão parlamentar entre o Partido Socialista e o Partido Comunista Francês.[1] Segundo Daniel Bensaïd, filósofo da Universidade de Paris 8, militante da antiga LCR e agora um os fundadores do NPA, a “esquerda radical” formaria um campo de forças instável, indo do realismo eleitoral até movimentos sociais que dão origem a projetos diferentes, mesmo contraditórios. No horizonte da luta anticapitalista européia estariam despontando duas tendências principais: a que pretenderia pressionar a social-democracia para que retome seu papel de gerente do Estado-social, e outra que consideraria se encontrar apenas no começo de uma reconstrução social e política, “após uma derrota histórica”. Bensaïd aponta o Die Linke alemão como exemplo do primeiro caso. Na segunda alternativa encontrar-se-ia o NPA. Tratar-se-ia, em todo caso, de opor à “esquerda renegada” uma alternativa radical. Nas palavras de Bensaïd, o horizonte do novo partido encontrar-se-ia na postura contra “a mercantilização e a privatização do mundo”, e pela “lógica do domínio público e da apropriação social” (BENSAÏD, 2008, p.19).
O NPA se pauta por uma proposta de plurarismo de esquerda. Pretende agrupar em seu seio todos os grupos políticos e movimentos sociais que estejam dispostos a integrar a causa “anticapitalista”. De acordo com seu porta-voz e figura pública, Olivier Besancenot, “nossa lógica é de agrupar o melhor das tradições do movimento operário, sejam elas trotskistas, socialistas, comunistas, libertárias ou guevaristas” (BESANCENOT, 2009, p.10). As duas últimas eleições presidenciais mostraram um desempenho expressivo de Besancenot, como candidato pela antiga LCR. O jovem funcionário dos correios franceses (então com 28 anos) obteve 4,25% dos votos em 2002, ou 1,2 milhões de votos em números absolutos, ficando atrás da tradicional candidata da Lutte Ouvrière, Arlette Laguiller (5,72%), mas já à frente do candidato do PCF, Robert Hue (3,37%). Em 2007 alcançou a liderança entre os “radicais”, com 4,08% dos votos, ou 1,5 milhões de eleitores, enquanto Laguiller e o “campesino” José Bové, por exemplo, amargaram “pífios” 1,33% e 1,32%, respectivamente (ZAPPI, 2009a, p.14). É essa votação expressiva no campo da “esquerda radical” que o novo partido pretende repetir ou mesmo aumentar nas próximas eleições. Sondagem sobre as intenções de voto para as eleições européias de junho próximo (que elege os deputados do Parlamento Europeu) indica 8 a 10% de votos para uma provável lista do NPA, mesma porcentagem de eleitores que votariam em Besancenot se as eleições presidenciais fossem esse ano (BONNEFOUS, 2009, p.10).
As sondagens publicadas não especificam em qual ou quais estratos da população ocorre esse aumento de intenções de voto, mas certamente ele é o reflexo de dois tipos de descontentamento: primeiro, em relação ao próprio governo francês que, a exemplo de outros países europeus, insiste em tocar avante um programa neoliberal de privatização / desmantelamento gradual da educação, da saúde e de serviços públicos, ao lado de uma repressiva política de segurança evidentemente voltada à garantia da ordem durante o desmonte do Estado social; segundo, em relação às alternativas políticas disponíveis, já que o NPA parece apresentar uma tendência a concentrar os votos concedidos à chamada “esquerda radical”, como vimos logo acima.
Para Vincent Tiberj, pesquisador da prestigiosa Sciences Po de Paris, a situação pode não ser tão favorável. Segundo Tiberj, embora as “pesquisas de opinião possam atingir entre 15% e 18% de potencial de voto, quando se fala de proximidade ideológica com seu partido a taxa cai a 3%”. E conclui taxativamente: “No momento, o NPA é Olivier Besancenot e a coluna vertebral da LCR”. (ZAPPI, 2009a, p.15).[2] Se, como aponta o professor da Science Po, as pesquisas de opinião procuram distinguir entre as simpatias votadas à Olivier Besancenot, de um lado, e ao NPA, de outro, é provável que o eleitorado não o faça no momento em que Besancenot se apresentar como candidato a cargo majoritário ou encabeçar listas para o legislativo nacional ou europeu. Nesse caso, sua “maior porcentagem” em comparação ao partido tornar-se-ia, de fato, a porcentagem do próprio partido. Isso explica a gravitação da propaganda partidária em torno de sua figura, personalizando essa que já se torna uma estratégia primordialmente eleitoral. Excelente orador, o funcionário da “Poste” tem participado de vários debates na TV e no rádio e concedido entrevistas a órgãos impressos, além de dividir a autoria de livros com os principais intelectuais do partido.
A tática de curto prazo do partido parece incluir, portanto, aproveitar essa popularidade eleitoral recente, o que o coloca num provável paradoxo já de saída. Ao mesmo tempo em que se pretende um partido de “esquerda radical” de novo tipo na França, pluralista e heterogêneo, vê-se obrigado a agarrar-se à figura pública de Olivier Besancenot e à personalização de sua propaganda política, que deixa de ser construída em torno de um programa partidário. Frédéric Lebaron, sociólogo da Universidade de Amiens e também um dos intelectuais fundadores do partido, aponta os possíveis rumos a serem adotados nas próximas etapas:
O acompanhamento das lutas e a elaboração de um programa não resumem toda a ação de um partido. Este não adquire força real se não aparece como suscetível de aplicar seu programa, de abrir perspectivas concretas em um horizonte temporal acessível, sem o quê a ausência de perspectiva a curto termo – fora o apoio às lutas, que permanecem dispersas no momento – não poderá responder às necessidades e inquietudes do período, notadamente nas classes populares (LEBARON, 2008, p. 25).
É provável que com as expressões horizonte temporal acessível e perspectiva a curto termo o autor se refira principalmente às disputas eleitorais nas quais se espera o engajamento de Olivier Besancenot. A julgar pelas pesquisas de opinião mais recentes, como vimos acima, o porta-voz do NPA teria motivos para esperar um aumento ainda maior de sua popularidade. As lideranças do partido, por sua vez, procuram estender tal popularidade à sigla em si. Se é verdade, e seus dirigentes o reconhecem mais ou menos abertamente, que o NPA não possui ainda um claro programa partidário, é verdade também que a antiga LCR sabe o que não quer mais ser, e procura se apresentar ao conjunto da população demonstrando o que se pode esperar e, de maneira quase tácita, o que não se precisa temer com relação ao partido. Numa entrevista publicada no site francês de notícias Mediapart, Besancenot sintetiza o perfil específico do NPA:
Há conflitos em cascata em setores que não estavam habituados a ter gente entrando na luta. No comércio, Pizza Hut, McDonald’s, Fnac. Então, a primeira coisa pra nós é dar uma resposta política a essa gente que descobriu o engajamento em suas novas lutas. Pra nós, trata-se de estar em sintonia com suas aspirações, de responder à sua vontade de ir mais longe. A segunda aposta é recriar um sentimento de classe majoritário que seja a imagem do proletariado tal como ele existe hoje [...]. De um lado, na história do capitalismo nunca foram tão numerosos quanto atualmente aqueles que precisam vender sua força de trabalho para viver mas, por outro lado, nunca houve um sentimento de classe tão fraco. [...] Depois da queda do Muro de Berlim, dizemos que é necessário um novo partido e um novo programa, porque pensamos que há um ciclo histórico que começou com a Revolução Russa e terminou em 1989. [...] Dizer que esse ciclo histórico está fechado não significa rejeitar em bloco este período, mas que devemos observar este século para tirarmos ensinamentos sobre o que se deve ou não fazer, e ao mesmo tempo compreender que estamos em um novo período. A revolução russa não pode continuar sendo o ponto de referência que foi para todas as organizações revolucionárias durante um século. [...] Na extrema esquerda, alguns nos dizem : “vocês não querem formar um partido marxista leninista trotskista”. É verdade, mas isso não tem nada a ver com uma deriva à direita. É necessário compreender o período no qual vivemos, assumir o passado, pegar o que há de melhor em cada tradição e não manter uma relação fetichista com etiquetas (BESANCENOT, 2008).
Eis sucintamente, portanto, o tripé sobre o qual se sustentaria a postura político-ideológica do NPA: agir em função de uma “nova” composição do proletariado, evitar tornar-se mais um partido “marxista-leninista-trotskista” e propagar a convicção de que a queda do Muro de Berlim em 1989 fecharia em definitivo o ciclo iniciado pela Revolução Russa em 1917, preconizando, em outras palavras, a superação do leninismo como método. As mudanças de nome e “logo” deixaram evidente, desde o início, o esforço para se desvencilhar dos símbolos da herança bolchevique, substituindo a foice e o martelo pelo megafone que reverbera ondas sonoras. Os primeiros faziam alusão a operários e camponeses. O segundo “fala” para todos. De fato, dois pressupostos leninistas restam assim deixados de lado pelo NPA, quais sejam o protagonismo necessário da classe operária na revolução e o centralismo democrático como método de organização do partido revolucionário. O primeiro é substituído por um alargamento pouco preciso da noção de proletariado, tomado agora como “todos aqueles que precisam vender sua força de trabalho para viver”. A aposta é agregar o maior número possível de camadas sociais descontentes e construir junto a essas camadas um “sentimento de classe” senão único, pelo menos majoritário. O segundo cede lugar a um conjunto heterogêneo de correntes de esquerda apenas formalmente reunidas em torno de uma direção partidária, cuja união pode se apresentar ameaçada diante da primeira necessidade de se elaborar um projeto político propositivo.
Ao se apresentar como um partido de esquerda que empreende uma reavaliação/superação do legado político e histórico da revolução bolchevique, o NPA promove também uma manobra de aproximação com as camadas médias da sociedade, para além do discurso referente ao “novo proletariado”. Trata-se de palavras que, intencionalmente ou não, se encaixam com adequação nos limites e horizontes da visão política pequeno-burguesa, característica de estratos sociais médios que outrora sentiram-se representados pelo Partido Socialista, no âmbito de suas utopias de justiça social e preservação da pequena propriedade. O termo “anticapitalismo” não assusta a esses setores, eles mesmos prejudicados em suas práticas de consumo pela voragem neoliberal vigente nas últimas décadas. Mas no momento em que, eventualmente, se torne necessário avançar politicamente para além da proposta de resistência anticapitalista, como reagiriam? E quais seriam as possibilidades, da parte do NPA, de tal avanço? O NPA nasce batendo-se pela necessária negação de uma organização social pútrida, mas sem afirmação ou projeto de alguma outra. Antonio Gramsci, ao criticar o conceito soreliano de mito, considerava-o como a “vontade coletiva deixada em sua fase primitiva” da “destruição sem construção”, e perguntava-se como o mito poderia ser “produtivo” se lhe faltava justamente a elaboração da prática política da fase “ativa ou construtiva” daquela vontade popular (GRAMSCI, 2001, p. 1557). A nosso ver, o anticapitalismo do NPA se apresenta como uma espécie de mito político, que só com muita dificuldade poderá ultrapassar aqueles mesmos limites apontados por Gramsci com relação à concepção soreliana.
Como convictos defensores da absoluta necessidade, possibilidade, conveniência e viabilidade do combate contra o sistema de produção e os valores sociais e políticos do capitalismo, saudamos a organização do NPA como partido de esquerda empenhado na mesma luta e desejoso de novas e eficazes fórmulas de desenvolvê-la. Porém, a mesma convicção nos leva a considerar incontornável o esforço analítico sobre as possibilidades de ação ou tendências dos rumos político que se podem apresentar a esse novo partido da esquerda francesa. A proposta de heterogeneidade interna do NPA, a ser construída exatamente como projeto de crescimento e formação de uma ampla frente de esquerda congregada sob a mesma sigla, exagera ao apostar na ordem unida de grupos políticos muito diferentes entre si e pode tornar pouco provável um programa político de estratégia claramente delineada. A definição de seu perfil programático pela negativa “anti” é a expressão evidente de que, até agora, o partido sabe apenas o que ele não é. No momento, a ausência de estratégia é sua própria estratégia. Ou seja, resistência. Resistir ao capitalismo, tentando impedir o aprofundamento das contra-reformas neoliberais, ocupar algum espaço político institucional no parlamento e na grande mídia e expandir o discurso anticapitalista, tudo isso forma o conjunto virtuoso e agregador do NPA até aqui. Caso surta o efeito desejado, qual seja a radicalização mais ou menos generalizada daquela resistência, a história lhe cobrará o salto qualitativo da passagem para a ofensiva. O partido ver-se-á obrigado a apresentar pelo menos os eixos de um programa político claro e objetivo em torno do qual erigir o consenso ativo das massas. Então, o que havia começado como um conjunto virtuoso pode vir a se mostrar a principal debilidade a ser superada. Nesse momento, será posto à prova seu ousado diagnóstico sobre a validade histórica das lições de outubro.
Referências Bibliográficas
BENSAÏD, Daniel. Prendre Parti: nouveau siècle, nouvelle gauche. In: ContreTemps. Paris, n. 1, 1 trimestre 2009, p. 13-20.
BESANCENOT, Olivier. L’extrême gauche ne devrait pas être une réserve d’Indiens (Entrevista a Marlène Benquet). In : Mediapart , 22 mai 2008. https://www.mediapart.fr/club/blog/marlene-benquet/220508/olivier-besancenot-l-extreme-gauche-ne-devrait-pas-etre-une-reserve.
BESANCENOT, Olivier. Ce sont les 9000 militants du parti qui ont le pouvoir, pas moi (Entrevista a Bastien Bonnefous). In : BONNEFOUS, Bastien. Le NPA capitalise sur le facteur Besancenot. 20 Minutes, Paris, 4 février 2009, p. 10.
BONNEFOUS, Bastien. Le NPA capitalise sur le facteur Besancenot. 20 Minutes, Paris, 4 février 2009, p. 10.
EQUY, Laure. Sitôt né, le NPA enchérit à la gauche de la gauche. Libération, Paris, 9 février 2009, p. 10.
GRAMSCI, A. Quaderni del carcere: edizione critica dell’Istituto Gramsci. A cura di Valentino Gerratana. Turim: Giulio Einaudi, 2001, Volume terzo.
LEBARON, Frédéric. De l’ébranlement idéologique au changement de paradigme? Réflexions sur la crise du capitalisme et l’alternative post-capitaliste. In: ContreTemps. Paris, n. 1, 1 trimestre 2009, p. 21-26.
ZAPPI, Sylvia. Besancenot: le pari du grand parti. Le Monde, Paris, 2 février 2009a, p. 14.
ZAPPI, Sylvia. Le Nouveau Parti Anticapitaliste veut incarner “une gauche qui résiste”. Le Monde, Paris, 9 février 2009b, p. 8.
ZAPPI, Sylvia. M. Besancenot capitalise sur les difficultés sociales. Le Monde, Paris, 25 août 2008, p. 12.
* Doutorando em Ciência Política - Unicamp / Universidade de Paris 8
[1] Importante observar, no entanto, que o PCF não descarta alianças pontuais com o NPA, mesma postura adotada pelo PG (Parti de Gauche), outro partido de criação recente, nesse caso a partir de uma cisão do PS. No entanto, o NPA mantém posicionamento cético com relação às duas siglas (EQUY, 2009, p.10).
[2] Coluna vertebral que também tem lá suas fissuras, já que uma fração minoritária da LCR votou contra e permanece crítica em relação ao processo de sua dissolução para a composição de um novo partido. Segundo Christian Picquet, militante da ala minoritária, “Olivier imprimiu sua maneira de ver, à marcha forçada, sem tempo pra discutir os contornos políticos do NPA, que se limitam ao anúncio de uma vontade política de ‘ruptura’. Tudo isso ao preço de uma despolitização certa” (ZAPPI, 2009a, p.15).