A crise na USP
A crise na USP
Por Francisco de Oliveira
Há mais de um quinquênio, nossa principal universidade permanece imersa numa crise, que se está tornando permanente. Especifique-se: desde a reitoria Suely Vilela, e prosseguindo com o atual, Prof. João Grandino Rodas. Não devemos absolver as responsabilidades daqueles que ocuparam ou estão ocupando o cargo máximo da instituição, mas a rigor a crise na USP é mais profunda, e supera as diversas gestões, que aliás se comportam apenas como gestores: o qualificativo de “reitores” é demais para eles.
Em tempo: o reitor Rodas foi o segundo da lista tríplice que o Conselho Universitário submeteu ao então governadorJosé Serra, e este, quebrando a tradição e repetindo Paulo Maluf, não escolheu o primeiro colocado, mas o segundo. Isto é um indicativo da inadequação, para dizer o mínimo, dos procedimentos estatutários e legais que regem a USP, e para o que a chamada “comunidade uspiana” não dispõe de nenhum remédio. O governador faz o que quer com a vontade manifesta dos docentes, alunos e funcionários, pois Gláucio Oliva, o primeiro colocado, havia sido preferido numa primeira consulta, que a ADUSP [Associação dos Docentes da Universidadede São Paulo] se esforçou para fazer da forma mais democrática, ainda que sem valor legal, e o CO [Conselho Universitário] ratificou a preferência que a eleição direta havia indicado. Mas o governador deu as costas à universidade. Diga-se de passagem que o governo Serra foi dos mais desastrados na relação com a USP, o que é incompreensível, pois havia sido aluno dela na Politécnica, antes que o golpe de 1964 o afastasse da presidência da UNE.
Faz parte dos malabarismos políticos nacionais essa contradição: enquanto o Congresso Nacional pode decretar o impedimento do presidente da República, como ocorreu com o super-marajá Collor de Mello, nos estatutos e procedimentos que governam a USP não existe nada parecido, salvo se o CO num gesto pra lá de improvável resolver pedir sua renúncia. Mesmo o CO não tem poderes para depor o reitor. Isto quer dizer que tais procedimentos e estatutos estão pra lá de Marrakech, isto é, nem no Marrocos têm alguma utilidade. A crise da USP se explica, assim, pelo anacronismo de suas regras estatutárias e legais, e menos pela má qualidade de seus gestores. Ninguém espera que os mais brilhantes cérebros – que existem às centenas em nossas melhores universidades – sejam também bons reitores; assim, não é a qualidade acadêmica que está tornando a USP ingovernável, mas seu anacronismo estatutário e legal e o uso que as autoridades estaduais fazem dele.
Desde a gestão Suely Vilela, a reitoria vem se empenhando em perseguir funcionários e estudantes, mas sobretudo os primeiros. O atual Grandino Rodas, numa só tacada demitiu 270 funcionários, sem lhes dar a menor satisfação. A reitoria Vilela já havia demitido um diretor do SINTUSP [Sindicato dos Trabalhadores da Universidadede São Paulo] em pleno exercício de suas funções, ao arrepio da legislação que assegura a estabilidade dos representantes sindicais, salvo se tiverem cometido algum crime e condenadoem tribunal. Nema Constituição, um reitor que é formadoem direito respeita. Eo Conselho Universitário não faz nada, e estudantes, funcionários e docentes não podem fazer nada. Entre os entulhos autoritários que a ditadura nos deixou, talvez alguns estatutos e regulamentos que determinam as regras para a gestão pública de algumas importantes instituições republicanas estejam entre os mais repelentes, inadequados e anti-democráticos.
Mas a Universidade pode viver sob esses ataques porque a sociedade permite, e em alguns casos, engrossa a onda anti-pública característica dos tempos neoliberais. Os órgãos de imprensa não dão nem bola:a Folhade S. Paulo, antigamente nosso refúgio em meio às privações da liberdade, tornou-se um jornal que faz campanha anti-pública, em nome de uma difusa preocupação com a moralidade; o Estadão, que se considerava padrinho da USP, devido ao papel protagônico que o jornal desempenhou nos idos dos Trinta, quando a USP foi fundada, mudou para uma posição de permanente crítica, quase sempre infundadas; os dois grandes órgãos da imprensa escritade São Paulofazem uma péssima cobertura dos assuntos das universidades e têm desempenhado um papel retrógrado. A universidade pública é o único lugar onde se faz pesquisa de ponta no Brasil, já que grandes empresas estatais, como a Petrobrás, a Eletrobrás, patrocinam pesquisas sobretudo de natureza aplicada. Assim, não pode surpreender que o Brasil, já a 5ª economia capitalista do mundo, apresente alguns indicadores pra lá de péssimos nos quesitos fundamentais da pesquisa científica. Não à toa, a Finlândia, o pequenino país nórdico, lidera as pesquisas no ramos dos celulares, e certamente a Finlândia não utiliza seus recursos naturais – muito frio, muita água, florestas de clima frio – mas sim conhecimento e educação. Queremos ficar com o Amazonas como o mais importante rio do mundo, e isso basta?
A crise da USP, que já se estende sob outras formas para a Unicamp, somente poderá ser encaminhada para lograr-se algumas resoluções, mediante a convocação de uma estatuinte, uma constituinte para a universidade, que reforme seus estatutos, melhore a representatividade, amplie os poderes legais das três categorias básicas que formam a universidade, invente outras formas de ingresso que não seja apenas um vestibular que privilegia os que provêm de boas escolas, institua um amplo programa de bolsas para superar a barreira econômica de classe, absorva os cursinhos “caça-níqueis” (como o tentou o ex-reitor José Goldemberg), enfim, refaça de alto a baixo as formas institucionais de decisão e direção da universidade. O leitor não conhece como se elege o reitor da USP? Então prepare-se para uma surpresa: é a mesma fórmula que a Revolução Francesa, em 1789, derrocou: são os Estados Gerais, com uma minúscula representação dos estudantes e dos funcionários no Conselho Universitário, cuja maioria absoluta é de docentes e dirigentes das faculdades, que indica três nomes para apreciação do governador do Estado. Este não necessita obedecer à ordem indicada pelo chamado CO, como a última nomeação de Grandino Rodas confirmou: pode ser um dos três. Essa fórmula é a dos Estados Gerais, portanto, velha de quase 400 anos. Está na hora da Universidadede São Paulofazer a Revolução Francesa, até para ser coerente com seus cursos de História, onde se ensina que a referida revolução é a fundadora da modernidade. Ou preferimos regimes disfarçados de aiatolás?
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Francisco de Oliveira, professor titular aposentado de Sociologia da USP, é autor de extensa obra, da qual destacamos Noiva da revolução: elegia para uma re(li)gião (São Paulo, Boitempo, 2008), Crítica à razão dualista: o ornitorrinco (São Paulo, Boitempo, 2003) e Os direitos do antivalor: a economia política da hegemonia imperfeita (Petrópolis, Vozes, 1998). Em 2010, coorganizou a coletânea de ensaios sobre a hegemonia lulista, Hegemonia às avessas (Boitempo), com Ruy Braga e Cibele Rizek. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às segundas-feiras.
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