A crise estrutural da política, de István Mészáros
A crise estrutural da política
por István Mészáros [*]
1. Sintomas de uma crise fundamental
Gostaria de começar com um breve exame dos desenvolvimentos muito inquietantes — na verdade deveria dizer ameaçadores, à escala mundial — no campo da política e do direito. A este respeito pretendo sublinhar que há cerca de 23 anos tive conhecimento pessoal na Paraíba, Brasil, das penosas consequências dos tumultos explosivos por alimentos. Vinte e três anos depois, no tempo da campanha eleitoral do presidente Lula, li que ele anunciara como parte mais importante da sua futura estratégia a determinação em acabar com o grave problema social da fome no país. As duas décadas decorridas desde o tempo daqueles dramáticos tumultos por alimentos na Paraíba não foram obviamente suficientes para resolver este problema crónico. E mesmo hoje, disseram-me, as melhorias no Brasil ainda são muito modestas. Além disso, as sombrias estatísticas das Nações Unidas sublinham constantemente a persistência do mesmo problema, com consequências devastadoras, em muitas partes do mundo. Isto é assim apesar do facto de as capacidades produtivas hoje à disposição da humanidade permitirem relegar para todo o sempre no passado o agora totalmente indesculpável fracasso social da fome e da desnutrição.
Pode ser tentador atribuir estas dificuldades, como acontece frequentemente no discurso político tradicional, a contingências políticas corrigíveis de forma mais ou menos fácil, postulando assim como remédio mudanças de pessoas nas oportunidades eleitorais seguintes e estritamente dentro da ordem. Mas isto seria a evasão do costume e não uma explicação plausível. Pois a teimosa persistência dos problemas em causa, com todas as suas penosas consequências humanas, aponta para conexões enraizadas muito mais profundamente. Elas indicam alguma força aparentemente incontrolável de inércia que parece ser capaz de transformar, com frequência deprimente, mesmo as "boas intenções" de manifestos políticos prometedores em pedras para pavimentar a estrada para o inferno, nas palavras imortais de Dante. Por outras palavras, o desafio é enfrentar as causas e determinações estruturais subjacentes as quais, pela força da inércia, tendem a descarrilar muitos programas políticos concebidos para a intervenção correctiva. A descarrilá-los até mesmo quando na origem os autores de tais programas admitem que o estado de coisas existente é insustentável.
Vamos considerar uns poucos exemplos gritantes que demonstram claramente não só que há alguma coisa a afectar perigosamente o modo como regulamos nossos intercâmbios sociais como, ainda pior, que a tendência observável é de intensificação dos perigos em direcção ao ponto de não retorno.
Escrevi seis anos atrás, para uma palestra pública feita em Atenas em Outubro de 1999, que "Com toda a probabilidade, a forma final de ameaçar o adversário no futuro — a nova "diplomacia da canhoneira", exercida a partir do "ar patenteado" — será a chantagem nuclear. Mas o seu objectivo seria análogo àquele do passado, ao passo que a modalidade contemplada só poderia sublinhar a indefensabilidade de tentar impor deste modo a racionalidade extrema do capital sobre as partes recalcitrantes do mundo". Nestes seis anos tais práticas potencialmente letais de fazer política, do imperialismo hegemónico global, tornaram-se não só uma possibilidade geral como também uma parte integral da "concepção estratégica" neoconservadora admitida abertamente pelo governo dos EUA. E a situação hoje ainda é pior. Nas últimas poucas semanas, em relação ao Irão, entrámos na etapa do planeamento real de uma rota de acção que poderia ameaçar não só aquele país como toda a humanidade com um desastre nuclear. [2] A habitual artimanha cínica utilizada ao publicitar tais ameaças é "nem confirmá-las nem desmenti-las". Mas ninguém pode ser enganado por tal espécie de truque. De facto, foi este perigo muito real de desastre nuclear, recentemente materializado, que induziu um grupo de prestigiosos físicos americanos, dentre eles cinco Prémio Nobel, a escrever uma carta aberta de protesto ao presidente Bush na qual declaram: "É gravemente irresponsável para os EUA, como a maior superpotência, considerar rotas de acção que pudessem acabar por conduzir à destruição generalizada da vida sobre o planeta. Urgimos a administração a anunciar publicamente que está a retirar da mesa a opção nuclear no caso de todos os adversários não nucleares, presentes ou futuros, e urgimos o povo americano a fazer ouvir sua voz sobre esta matéria". [3]
Estarão as legítimas instituições políticas das nossas sociedades em posição de rectificar as situações mais perigosas através da intervenção democrática no processo real de tomada de decisão, tal como o discurso político tradicional continua a reassegurar-nos, apesar de toda a evidência em contrário? Somente os mais optimistas — ou um tanto ingénuos — poderiam asseverar e acreditar sinceramente que tal estado de coisas feliz se verifica. Pois as principais potências ocidentais neste últimos poucos anos embarcaram, de forma bastante desimpedida, em guerras devastadoras utilizando dispositivos autoritários — como a "prerrogativa executiva" e a "Prerrogativa Real" — sem consultarem seus povos sobre matérias tão graves, e varrendo brutalmente para o lado a estrutura do direito internacional e os órgãos apropriados para a tomada de decisões das Nações Unidas. [4] Os Estados Unidos arrogaram-se o direito moral de actuar como lhes agrade, sempre que lhes agrade, mesmo ao ponto de utilizar armas nucleares — não só antecipativamente (preemptively) como até mesmo preventivamente (preventively) — contra todos os países que quiserem, todas as vezes que os seus afirmados "interesses estratégicos" assim o ditarem. E tudo isto é feito pelos Estados Unidos como pretenso campeão e guardião da "democracia e liberdade", submissamente seguida e apoiada nas suas acções ilegais pelas nossas "grandes democracias".
Em outros tempos o acrónimo MAD — mutually assured destruction, destruição mutuamente assegurada — era utilizado para descrever o estado existente da confrontação nuclear. Agora que os "neoconservadores" não podem mais pretender estarem os Estados Unidos (e o Ocidente em geral) ameaçados pela aniquilação nuclear, o acrónimo tornou-se a loucura (madness) literal, como a "orientação política legítima" da insanidade militar/política institucionalizada. Isto em parte é consequência do desapontamento neoconservador acerca da guerra do Iraque. Pois "os neo-cons americanos tiveram a esperança de que a invasão do Iraque poria em andamento um efeito dominó através da região, com o povo do Irão e de outros estados ricos em petróleo a levantarem-se para exigir liberdades de estilo ocidental e democracia. Infelizmente a verdade foi o reverso, pelo menos no Irão". [5] Mas é muito pior do que isto, porque todo um sistema de "pensamento estratégico" institucionalmente arraigado e assegurado, centrado no próprio Pentágono, espreita por trás disto. É isto o que torna a nova LOUCURA (MADNESS) tão perigosa para todo o mundo, incluindo os Estados Unidos cujos piores inimigos são precisamente tais "pensadores estratégicos".
Podemos verificar isto de forma muito clara no livro de 2004 de Thomas P. M. Barnett, The Pentagon's New Map, revisto na Monthly Review por Richard Peet. Citando Peet:
O 11 de Setembro de 2001 foi uma prenda admirável, diz Barnett, tão retorcido e cruel quanto isto possa soar. Foi um convite da história para os Estados Unidos despertarem do sonho da década de 1990 e forçarem novas regras sobre o mundo. O inimigo não é nem a religião (Islão), nem lugares, mas a condição de desligamento (disconnectedness). Estar desligado neste mundo é estar isolado, privado, reprimido e não educado. Para Barnett estes sintomas de desligamento definem perigo. Dizendo simplesmente, se um país estiver a perder para a globalização, ou a rejeitar muito dos seus fluxos de conteúdo cultural, as probabilidades são que os Estados Unidos acabem por enviar tropas para ali... A visão estratégica nos Estados Unidos necessita focar o "número crescente de estados que reconhecem um conjunto de regras estáveis respeitantes à guerra e à paz" — o que é a condição sob a qual é razoável travar guerra contra inimigos identificáveis da "nossa ordem colectiva". Expandir esta comunidade é uma simples questão de identificar a diferença entre os bons e os maus regimes e encorajar os maus a modificar os seus modos. Os Estados Unidos, pensa, têm a responsabilidade de usar o seu tremendo poder para tornar a globalização verdadeiramente global. De outro modo porções da humanidade estarão condenadas a um estatuto de marginalidade que eventualmente as definirá como inimigas. E após os Estados Unidos terem designado estes inimigos, invariavelmente travará a guerra com eles, desencadeando morte e destruição. Isto não é uma assimilação forçada, defende Barnett, nem a extensão do império; ao invés, isto é a expansão da liberdade. [6] (ênfase adicionada)
Evidentemente, esta "visão" raia a insanidade. As suas implicações brutais estão explicitadas numa entrevista dada por Barnett à revista Esquire: "O que significa esta nova abordagem para este país e para o mundo a longo prazo? Deixe-me ser muito claro em relação a isto: os rapazes nunca mais virão para casa. A América não sairá do Médio Oriente até que este se junte ao mundo. É tão simples como isto. Sem saída quer dizer sem estratégia de saída". [7]
Na verdade, seria difícil apresentar as coisas de forma mais clara do que Barnett nesta entrevista e no seu livro. Desta forma podemos observar a idealização gratuita das presunções absurdas do "tremendo poder" dos EUA e a correspondente projecção da "globalização" como sendo a dominação nua da América, reconhecendo abertamente que os seus meios são " morte e destruição ". E se alguém pensasse que Barnett é um escrevinhador inconsequente, ficaria bastante alarmado com os factos. Pois Barnett foi um investigador estratégico sénior no U.S. Naval War College em Newport, Rhodes Island, e um "homem de visão" no Office of Force Transformation ligado ao secretário da Defesa. Além disso, ele é apresentado com toda a seriedade como um "homem de visão" a ser ouvido e a ser seguido.
Infelizmente, os mais altos escalões do "pensamento estratégico" nos Estados Unidos estão povoados por tais "homens de visão", que estão determinados a adicionar os seus maciços blocos de pavimento não de boas mas de muito más e agressivas intenções na estrada do inferno de Dante. Pois o grande poeta italiano nunca sugeriu que a estrada para o inferno de que falava fosse pavimentada exclusivamente por boas intenções. Segundo um destes perigosos "homens de visão", Max Boot – que é membro sénior no prestigiado Council on Foreign Relations – "Qualquer nação empenhada em policiamento imperial deverá sofrer alguns revezes. O exército britânico, durante as pequenas guerras da Rainha Vitória, sofreu enormes derrotas com milhares de baixas na Primeira Guerra Afegã (1824) e na Guerra Zulu (1879). Isto não refreou apreciavelmente a determinação britânica de defender e expandir o império; tornou-os antes sedentos de vingança. Se os americanos não podem adoptar uma atitude igualmente cruel, então não podem assumir o policiamento imperial".[8]
Neste tipo de "visão estratégica" agressiva é-nos oferecida a idealização aberta da construção do Império Britânico, incluindo os seus aspectos mais brutais. Cinicamente, em nome da "difusão da democracia e da liberdade", a adopção irrestrita da passada violência colonial é recomendada como o modelo para a actual construção do império americano.
O que torna tudo isto particularmente perturbante é o facto de relativamente a todos os assuntos de grande importância – alguns dos quais podem resultar na destruição da humanidade – encontramos nos mais altos níveis de tomada de decisão política nos EUA um consenso absolutamente perverso. Isto é verdadeiro apesar dos rituais periódicos das eleições para a presidência assim como para o Congresso, onde é suposto oferecerem-se alternativas reais. Contudo, as diferenças afirmadas em tais assuntos vitais são, em regra, apenas pretensas diferenças. Como comentei em Dezembro de 2002, muito antes da invasão do Iraque, "O presidente democrata Clinton adoptou as mesmas políticas que o seu sucessor, ainda que de forma mais camuflada. Relativamente ao candidato presidencial democrata, Al Gore, ele declarou recentemente que apoiou sem reservas a guerra planeada contra o Iraque porque tal guerra não significava uma "mudança de regime" mas apenas "o desarmamento de um regime que possuía armas de destruição em massa". [9] Além disso, não devemos esquecer que o primeiro presidente americano a bombardear o Afeganistão foi nem mais nem menos que o muitas vezes ridiculamente idealizado Bill Clinton. É portanto longe de surpreendente que o sucessor de Al Gore como candidato presidencial democrata, o senador John Kerry, se apressasse a declarar na última corrida presidencial, ecoando as palavras do seu oponente republicano George W. Bush, que "os americanos divergem sobre o se e o como devíamos ter ido para a guerra. Mas seria impensável agora para nós se nos retirássemos em desordem e deixando para trás uma sociedade mergulhada em disputa e dominada por radicais". É compreensível, portanto, que o célebre escritor e crítico americano, Gore Vidal, tenha descrito a política dos EUA, com ironia amarga, como um sistema unipartidário com duas alas de direita.
Desafortunadamente, os EUA não são de forma alguma o único país que deveria ser caracterizado nestes termos. Há muitos outros onde as funções de tomada de decisão política são monopolizadas por acordos institucionais consensuais auto-legitimadores muito similares, com desprezível diferença (se alguma) entre eles, não obstante a mudança ocasional do pessoal ao nível do topo. Confinar-me-ei a este respeito à discussão de um caso proeminente, o Reino Unido (ou Grã-Bretanha). Este país em particular – tradicionalmente auto-promovendo-se como o país "mãe da democracia" por conta da histórica Magna Carta – sob a liderança de Tony Blair se habilita à mesma distinção dúbia de "um sistema unipartidário com duas alas de direita", tal como o poderoso Estado norte-americano. A guerra do Iraque foi carimbada no Parlamento Britânico quer pelo Partido Conservador quer pelo "New Labor", com a ajuda de mais ou menos óbvias manipulações e violações legais. Embora possamos agora ler que "Transcrições de provas apresentadas em privado pelo Procurador-geral, Lord Goldsmith, num inquérito oficial sugerem que o conselho crucial quanto à legalidade da guerra, apresentado ao parlamento em seu nome, foi escrito para ele por dois dos aliados mais próximos de Tony Blair … O anterior ministro das Relações Exteriores Robin Cook afirmou na noite passada que tendo-se demitido no dia anterior ao início da guerra, nunca ouviu Lord Goldsmith apresentar o processo legal no Conselho de Ministros. "Eu agora penso que ele nunca escreveu uma segunda opinião formal", afirmou ao The Guardian. " [10] Naturalmente, a subsequente exposição pública e condenação de tais práticas por eminentes peritos legais, relativamente à "guerra ilegal de Bush e Blair", não faz qualquer diferença. [11] Pois os interesses encapotados do imperialismo hegemónico global – servidos sem hesitação e de forma vergonhosa pelo sistema político consensual de uma antiga grande potência imperialista – devem prevalecer a todo o custo.
As consequências desta forma de regular os intercâmbios políticos e sociais são de longo alcance. De facto, elas podem ter implicações devastadoras para as alegadas credenciais democráticas de todo o sistema legal. Três casos importantes devem bastar para ilustrar o ponto.
O primeiro diz respeito ao alarme criado por um escritor famoso, John Mortimer, que no passado foi um apoiante apaixonado do Partido Trabalhista Britânico, e não é de forma alguma uma figura socialmente radical. Contudo, à luz de desenvolvimentos políticos e legais recentes, e em particular devido à abolição do habeas corpus, salvaguarda legal crucialmente importante, ele sentiu a necessidade de protestar com igual paixão, escrevendo num artigo de jornal que "agora que o facto horrendo emergiu aquela ideia de 'modernização' do New Labour é forçar-nos a um período anterior à Magna Carta e à Bill of Rights, dias negros quando não havíamos chegado à presunção de inocência… Tony Blair parece ser a favor de condenações sumárias repartidas pela polícia sem a necessidade de qualquer julgamento num grande número de casos. Portanto descartaram-se séculos da constituição na qual temos tanto orgulho". [12]
O segundo caso mostra como o governo britânico responde à crítica severa mesmo vinda dos mais altos órgãos judiciários: através da rejeição autoritária . Como foi tornado claro recentemente: "Um juiz de um alto tribunal qualificou ontem o sistema governamental de controlo de ordens contra suspeitos de terrorismo com 'uma afronta à justiça' e sentenciou que violava as leis dos direitos humanos… O Home Office rejeitou a sentença do tribunal ". [13]
Relativamente ao terceiro caso, indica uma questão de grande importância legislativa: a autoridade do próprio Parlamento, ameaçada pela "Reform Bill" do governo New Labour. Para citar John Pilger: "A Lei de Reforma Legislativa e Regulamentar já passou a sua segunda audiência parlamentar sem [despertar o] interesse da maioria dos deputados trabalhistas e dos jornalistas que cobrem aquela casa; contudo o seu objectivo é absolutamente totalitário … Significará que o governo poderá secretamente alterar o Parliament Act, e a constituição e as leis poderão ser revogadas por decreto da Downing Street. A nova lei marca o fim da verdadeira democracia parlamentar: nos seus efeitos, é tão significativa quanto o abandono da Bill of Rights pelo Congresso dos EUA no ano passado ". [14]
Porém a manipulação e a violação das leis internas e internacionais, para justificar o injustificável, acarreta perigos consideráveis até para as condições constitucionais mais elementares. As mudanças negativas – a remoção do escrutínio legal vital e das salvaguardas do quadro político e legal dos seus "aliados" – não podem ser confinadas ao contexto (imposto pelos EUA) internacional. Elas tendem a por em causa a constitucionalidade em geral, com consequências incontroláveis para a operacionalidade do sistema legal interno dos "aliados voluntários", subvertendo as suas tradições políticas e legais. A arbitrariedade e o autoritarismo podem levar à loucura como resultado de tais mudanças altamente irresponsáveis que não hesitam em arruinar até mesmo a constituição estabelecida.
Um debate actual no Japão oferece um caso gritante:
Surgiu uma situação grave na qual as forças políticas a favor da revisão constitucional adversa estão realmente a competir entre si na redacção de uma nova constituição. A "minuta de uma nova Constituição" do LDP (o há muito governante Partido Democrático Liberal) … eliminou o segundo parágrafo do Artigo 9º da Constituição e adicionou uma cláusula autorizando o Japão a "manter a auto-defesa militar" para desempenhar "actividades coordenadas internacionalmente para assegurar a paz e a segurança da comunidade internacional," abrindo portanto caminho ao Japão para a utilização da força no estrangeiro. Também contém uma cláusula para restringir direitos humanos fundamentais em nome do "interesse e da ordem públicas" o que leva à negação do constitucionalismo. Além disso, é também grave que a minuta de Constituição do LDP facilite a possibilidade de mais alterações adversas à Constituição aligeirando o requisito para o início do processo de revisão pelo Dieta passando de dois terços da maioria presente para apenas a maioria de todos os membros de cada câmara.
O objectivo imediato de tais mudanças é, obviamente, tornar o povo japonês o alimento "voluntário" para os canhões na guerra que decorre actualmente e nas futuras guerras do imperialismo americano. Mas pode alguém oferecer seguranças e garantias – ignorando a evidência dolorosa das aventuras imperialistas japonesas no passado, em conjunto com a sua muito repressiva história interna – de que a longo prazo não haverá consequências humanas horrendas resultantes destas mudanças?
Entretanto tantos problemas sérios gritam por soluções genuínas, as quais poderiam muito bem estar ao nosso alcance. Alguns deles têm-nos acompanhado ao longo de várias décadas, impondo terrível sofrimento e sacrifícios a milhões de pessoas. A Colômbia é um exemplo actual. Durante quarenta anos as forças de opressão – interna e externa, dominadas pelos EUA – tentaram sufocar a luta do povo colombiano, sem êxito. Tentativas de se chegar a um acordo negociado – "com a participação de todos os grupos sociais, sem excepção, de forma a reconciliar a família colombiana", nas palavras de Manuel Marulanda Velez, o líder das FARC-EP – foram sistematicamente frustradas. [16] Como escreveu Velez numa carta aberta dirigida recentemente a um candidato presidencial: "Nenhum governo, liberal ou conservador, produziu uma solução política eficaz para o conflito armado e social. As negociações foram usadas para se atingir o objectivo de não alterar coisa alguma, para que tudo permanecesse igual. Todos os esquemas políticos dos governos utilizaram a Constituição e as leis como uma barreira, para se assegurarem de que tudo se mantinha da mesma forma que antes" [17]
Assim, quando os interesses sociais dominantes o ditam, a "constitucionalidade" e as regras do "consenso democrático" são usadas na Colômbia (e em qualquer parte) como instrumentos cínicos para a fuga e o adiamento eterno da solução mesmo dos assuntos mais candentes, independentemente da enormidade da escala de sofrimento imposto, como resultado, ao povo. E, da mesma forma, num contexto social diferente mas sob o mesmo tipo de determinações estruturais profundamente enraizadas, até as mais flagrantes e abertamente admitidas violações da constitucionalidade estabelecida são ignoradas, apesar do ritual periódico do falso elogio devido à necessidade de respeitar os requisitos constitucionais. Neste sentido, quando o Comité do Congresso que investigava o "Irangate Contra Affairs" concluiu que a administração Reagan era responsável pela " subversão da Lei e o enfraquecimento da Constituição ", absolutamente nada aconteceu para condenar, quanto mais remover do cargo, o presidente culpado. E ainda num outro tipo de caso – como vimos na determinação para subverter a Constituição japonesa por parte do partido governante LDP – quando as cláusulas da constituição originais aparecem como obstáculos ao embarque em novas aventuras militares perigosas, os interesses dominantes políticos e sociais do país impõem um novo quadro legal cuja função principal é liquidar as anteriormente proclamadas garantias democráticas e transformar aquilo que anteriormente era decretado como ilegal em "legalidade constitucional" arbitrariamente institucionalizada. Tão pouco deveríamos esquecer o que tem acontecido num sentido muito adverso, e na sua tendência perigosamente autoritária, à constitucionalidade britânica e americana durante estes últimos anos.
Como indiquei no início, não podemos atribuir os problemas crónicos dos nossos intercâmbios sociais a mais ou menos facilmente corrigíveis contingências políticas. Está demasiado em jogo, e temos historicamente um tempo limitado à nossa disposição para remediar, de uma forma socialmente sustentável, os muitos sofrimentos óbvios das classes sociais estruturalmente subordinadas. A questão do porquê? – relativamente a problemas substantivos, e não simplesmente os insucessos pessoais contingentes, mesmo quando são sérios, como são os muitas vezes destacados exemplos de corrupção política generalizada – não pode ser evitada indefinidamente. É necessário investigar as causas sociais e as determinações estruturais nas raízes das perturbadoras tendências negativas na política e na lei; de forma a se poder explicar a sua teimosa persistência e o seu agravamento actual. O problema do porquê é o que pretendo agora analisar.
2. A natureza da crise estrutural do capital
A este respeito é necessário clarificar as diferenças relevantes entre tipos ou modalidades de crise. Não é uma questão indiferente se uma crise na esfera social pode ser considerada uma crise periódica / conjuntural ou alguma coisa muito mais fundamental que isso. Pois, obviamente, a forma de lidar com uma crise fundamental não pode ser conceptualizada em termos de categorias de crise periódica ou conjuntural.
Para antecipar um ponto principal desta palestra, na medida do que à política diz respeito a diferença crucial entre os dois tipos nitidamente contrastantes de crise em questão é o facto de que uma crise periódica ou conjuntural evolui e é mais ou menos resolvida com êxito num determinado enquadramento político, enquanto que a crise fundamental afecta aquele enquadramento em si mesmo na sua totalidade. Por outras palavras, relativamente a um determinado sistema sócio-económico e político estamos a falar acerca da diferença vital entre as mais ou menos frequentes crises na política, por oposição às crises da própria modalidade de política estabelecida, com requisitos qualitativamente diferentes para a sua possível solução. É com estas últimas que estamos hoje preocupados.
Em termos gerais, esta distinção não é simplesmente uma questão da aparente severidade dos tipos de crise contrastantes. Pois uma crise periódica ou conjuntural pode ser dramaticamente severa – como a "Grande Crise Económica Mundial de 1929-1933" acabou por ser – e contudo ser capaz de uma solução dentro dos parâmetros de um determinado sistema. Interpretar incorrectamente a severidade de uma determinada crise conjuntural como se ela fosse uma crise sistémica fundamental, como Estaline e os seus conselheiros fizeram a meio da "Grande Crise Económica Mundial de 1929-1933", está condenado a levar a estratégias erradas e na verdade voluntaristas, como declarar a social-democracia como sendo a "principal inimiga" no início dos anos 30, o que apenas poderia reforçar, como de facto tragicamente aconteceu, as forças de Hitler. E do mesmo modo, mas no sentido oposto, o carácter "não explosivo" de uma crise estrutural prolongada, em contraste com as "tempestades de trovões" (Marx) através das quais crises periódicas de conjuntura podem descarregar-se resolverem-se, pode também conduzir a estratégias fundamentalmente mal concebidas, como resultado da má interpretação da ausência de "trovões" como se a sua ausência fosse a prova esmagadora de uma estabilidade indefinida do "capitalismo organizado" e da "integração da classe trabalhadora". Este tipo de má interpretação, altamente promovida pelos interesses ideológicos dominantes sob a capa de "objectividade científica", tende a reforçar a posição daqueles que representam a aceitação auto-justificante de abordagens reformistas acomodatícias nos institucionalizados – anteriormente genuinamente de oposição – partidos e sindicatos da classe trabalhadora (agora, contudo, "Oposição Oficial a Sua Majestade," como diz o ditado). Mas até entre os críticos comprometidos do sistema capitalista mais profundamente, a mesma má interpretação relativamente à perspectiva indefinidamente livre de crise da ordem estabelecida pode resultar na adopção de uma postura defensiva auto-paralisante, como testemunhámos no movimento socialista nas últimas décadas.
Não pode ser suficientemente sublinhado que a crise da política no nosso tempo não é inteligível sem ser referida ao enquadramento social mais vasto do qual a política é parte integrante. Isto quer dizer que para se poder clarificar a natureza da crise persistente e em aprofundamento da política no mundo hoje devemos focar a nossa atenção na crise do próprio sistema capitalista. Pois a crise do capital que estamos a experimentar – pelo menos desde o início da década de 1970 – é uma crise estrutural universal. [18]
Vejamos, resumidas de forma tão breve quanto possível, as características definidoras da crise estrutural com a qual nos preocupamos.
A novidade histórica da crise actual é manifestada através de quatro aspectos principais:
(1) o seu carácter é universal, em vez de restrito a uma esfera particular (por exemplo, financeira, comercial, ou afectando apenas este ou aquele ramo específico da produção, ou que se aplica a este em vez daquele outro tipo de trabalho, com o seu alcance específico de habilidades ou graus de produtividade, etc);
(2) o seu âmbito é verdadeiramente global (no sentido literal mais ameaçador do termo), em vez de confinado a um conjunto particular de países (como foram todas as grandes crises ocorridas no passado);
(3) a sua escala temporal é prolongada, contínua – se preferirem: permanente – ao invés de limitada e cíclica, como acabaram por ser todas as anteriores crises do capital.
(4) o seu modo de evolução pode ser chamado de rastejante – em contraste com as mais espectaculares e dramáticas erupções e colapsos do passado – enquanto se soma à condição de que mesmo as convulsões mais veementes ou violentas não podem ser excluídas relativamente ao futuro; quer dizer, quando a complexa maquinaria agora activamente empenhada na "gestão da crise" e no mais ou menos temporário "deslocamento" das contradições em crescimento ficar sem vapor…
[Aqui] é necessário fazer algumas observações gerais acerca do critério de uma crise estrutural, assim como acerca das formas como a sua solução pode ser encarada.
Colocando isto em termos mais simples e muito gerais, uma crise estrutural afecta a totalidade de um complexo social, em todas as suas relações com as suas partes constituintes ou sub-complexos, assim como com outras complexos com os quais está ligado. Em contraposição, uma crise não-estrutural afecta apenas algumas partes do complexo em questão, e portanto não importa quão severa possa ser relativamente às partes afectadas, não pode colocar em perigo a sobrevivência continuada da estrutura global.
Consequentemente, o deslocamento das contradições é factível apenas enquanto a crise é parcial, relativa e internamente controlável pelo sistema, exigindo não mais do que mudanças – ainda que significativas – dentro do próprio sistema relativamente autónomo. Do mesmo modo, uma crise estrutural põe em causa a própria existência do respectivo complexo global, postulando a sua transcendência e substituição por algum complexo alternativo.
O mesmo contraste pode ser expresso em termos dos limites que qualquer complexo social particular possa ter nas suas proximidades, em qualquer tempo dado, quando comparados com aqueles para além dos quais concebivelmente não pode ir. Assim, a crise estrutural não está preocupada com os limites imediatos mas sim com os derradeiros limites de uma estrutura global…. [19]
Assim, num sentido razoavelmente óbvio nada pode ser mais sério que a crise estrutural do modo social de reprodução metabólica do capital o qual define os derradeiros limites da ordem estabelecida. Mas apesar de profundamente sério em todos os seus importantes parâmetros gerais, à sua superfície a crise estrutural pode não parecer ser de uma importância tão decisiva quando comparada com as dramáticas vicissitudes de uma grande crise conjuntural. Pois os "trovões" através das quais as crises conjunturais se descarregam são especialmente paradoxais no sentido de que no seu modo de desdobramento elas não só se descarregam (e impõem) mas também se resolvem a si próprios, até ao ponto em que isso é possível tendo em conta as circunstâncias. Eles podem fazer isto precisamente devido ao seu carácter parcial que não põe em questão os limites derradeiros da estrutura global estabelecida. Ao mesmo tempo, todavia, e pela mesma razão, eles apenas podem " solucionar " os problemas estruturais subjacentes profundamente enraizados – os quais necessariamente se reafirmam reiteradamente na forma de crises conjunturais específicas – de uma forma estritamente parcial e também temporalmente bastante limitada. Isto é, até que a crise conjuntural seguinte surja no horizonte da sociedade.
Em contraste, tendo em conta a inevitavelmente complexa e prolongada natureza da crise estrutural, a desdobrar-se em tempo histórico num sentido de época e não episódico/instantâneo, é a inter-relação cumulativa do todo que decide a questão, ainda que sob a falsa aparência de " normalidade ". Isto porque na crise estrutural tudo está em jogo, envolvendo os limites derradeiros universais de uma dada ordem da qual não pode possivelmente haver uma ocorrência "simbólica/paradigmática" específica. Sem se compreender as conexões sistémicas globais e as implicações dos eventos específicos e os seus desenvolvimentos perdemos de vista as mudanças realmente significativas e as correspondentes alavancas de potencial intervenção estratégica para afectá-las positivamente, no interesse da necessária transformação sistémica. A nossa responsabilidade social consequentemente requer uma consciência crítica intransigente da inter-relação cumulativa emergente, ao invés de procurar garantias reconfortantes no mundo da normalidade ilusória até a casa desabar sobre as nossas cabeças.
Dada a crise estrutural do capital no nosso tempo, seria um milagre absoluto se essa crise não se manifestasse – e de facto num sentido profundo e amplamente abrangente – no domínio da política. Pois a política, em conjunto com o seu enquadramento legal correspondente, ocupa uma posição vitalmente importante no sistema do capital. Isto deve-se ao facto de o estado moderno ser a estrutura de comando político totalizadora do capital, exigida (enquanto a ordem reprodutiva agora estabelecida sobreviver) de forma a introduzir algum tipo de coesão (ou uma unidade de funcionamento eficaz) – mesmo numa bastante problemática e periodicamente avariada – dentro da multiplicidade de constituintes centrífugos (o "microcosmos" produtivo e distributivo) do sistema do capital.
Esta espécie de coesão só pode ser instável porque depende da sempre predominante, mas pela sua própria natureza mutável, relação de forças. Uma vez rompida essa relação de forças, ela tem de ser reconstruída de alguma maneira, para corresponder à nova relação de forças. Quer dizer, até que seja rompida novamente. E isto repete-se vezes sem conta, como algo rotineiro tido como garantida. Esta espécie de dinâmica problematicamente auto-renovadora aplica-se tanto internamente, entre as forças dominantes de países específicos, e internacionalmente, exigindo reajustamentos periódicos de acordo com as relações de forças cambiantes entre a multiplicidade de estados na ordem global do capital. Foi assim que o capital dos EUA pôde adquirir o seu domínio global durante o século XX, em parte através da dinâmica interna do seu próprio desenvolvimento, e em parte através da imposição progressiva da sua superioridade imperialista sobre as enormemente enfraquecidos potências imperialistas anteriores – sobretudo a Grã-Bretanha e a França – durante e após a Segunda Guerra Mundial.
A grande questão a este respeito é: por quanto tempo pode este tipo de quebra e de reconstrução da coesão em funcionamento do sistema dado ser executado sem activar a crise estrutural do capital? O reajustamento forçado da relação de forças inter-estatal não parece constituir um limite derradeiro a este respeito. Afinal de contas, devemos lembrar-nos que a humanidade teve que, e fê-lo, suportar os horrores de duas Guerras Mundiais sem pôr em questão a adequação do capital para permanecer como o controlador sistémico da nossa reprodução social metabólica. Isto poderia não só ser considerado compreensível mas, pior que isso, também aceitável, pois sempre fez parte da normalidade do capital determinar que "deve haver guerra se o adversário não puder ser subjugado de nenhuma outra forma". Contudo, o problema é que este tipo de "raciocínio" – que nunca foi mais "racional" que a afirmação categórica de que "o mais forte prevalece, sejam quais forem as consequências" – é agora totalmente absurdo. Pois uma Terceira Guerra Mundial não poderia parar no ponto de apenas subjugar o adversário denunciado. Ela destruiria a totalidade da humanidade. Quando Albert Einstein foi questionado sobre a espécie de armas com que seria combatida a Terceira Guerra Mundial, a sua resposta foi de que não poderia dizer isso, mas ele poderia garantir absolutamente que todas as guerras subsequentes seriam combatidas com machados de pedra.
O papel da política na reconstituição da coesão necessária sempre foi grande no sistema do capital. Muito simplesmente, um tal sistema não poderia ser mantido sem ela. Pois ele teria tendência a desfazer-se em pedaços sob a força centrifugadora das suas partes constituintes. O que aparece em geral sob a normalidade do capital como uma grande crise política, num sentido mais profundo deve-se à necessidade de produzir uma nova coesão ao nível societário global, de acordo com as materialmente modificadas – ou em modificação – relações de forças. Assim, por exemplo, as tendências monopolizadoras do desenvolvimento não podem ser simplesmente deixadas a si próprias sem provocar enormes problemas por toda a parte. Elas devem ser de alguma forma trazidas para um enquadramento relativamente coeso através da política – a estrutura de comando totalizadora do capital. Isto deve ser feito mesmo se os passos regulatórios adoptados como demonstração muitas vezes não passam senão de uma flagrante racionalização e justificação ideológica da nova relação de forças, a ser ainda mais favorável às corporações monopolistas (ou quase-monopolistas) como determina a tendência subjacente. Naturalmente, os desenvolvimentos monopolísticos internacionais têm lugar com base na mesma espécie de determinações. Mas todos estes processos são em princípio compatíveis com a normalidade do capital, sem resultar necessariamente em crise estrutural no sistema. Nem, de facto, na crise estrutural da política. Pois, no que diz respeito à questão da crise, estamos ainda a falar sobre a crise na política – ou seja, crises específicas que se desdobram e se resolvem por si próprias dentro dos parâmetros administráveis do sistema político estabelecido – e não sobre a crise da política.
As instituições políticas estabelecidas têm a importante função de gerir, e em certo sentido até mesmo de rotinizar, a maneira mais conveniente ou duradoura de reconstituir a necessária coesão social, em sintonia com os contínuos desenvolvimentos materiais e a correspondente relação de forças cambiante, activando ao mesmo tempo também o arsenal cultural e ideológico disponível ao serviço daquele fim. Nas sociedades democráticas capitalistas este processo no domínio político é habitualmente gerido na forma de eleições parlamentares periódicas mais ou menos contestadas genuinamente. Mesmo quando os necessários reajustamentos reconstitutivos não podem ser contidos dentro de tais parâmetros ordeiros, devido a algumas mudanças significativas na relação de forças subjacente, trazendo com elas tipos ditatoriais de intervenção política/militar, ainda podemos falar de crise na política que pode ser contida pelo capital, desde que mais cedo ou mais tarde possamos observar um retorno à característica "constitucionalidade democrática" da normalidade do capital. Além disso, tais desenvolvimentos são frequentemente controlados em grande extensão a partir do estrangeiro, como testemunham na América Latina os numerosos exemplos de governos de gestão autoritária inspirados pelos EUA.
Isto, está claro, é um assunto inteiramente diferente quando processos profundamente autoritários e tendências de desenvolvimento começam a prevalecer não em regiões subordinadas mas no núcleo interno – as partes estruturalmente dominantes – do sistema do capital global. Nesse caso, o padrão anterior do "duplo critério", que consiste em dominar brutalmente outros países (mesmo de forma militar e imperialista) enquanto em casa vigoram "regras do jogo democráticas", incluindo a plena observância da constitucionalidade, torna-se não mais administrável. O deslocamento das contradições é uma aspiração sistémica do capital, enquanto for praticável. Dadas as hierarquias estruturais que prevalecem e devem prevalecer em qualquer época determinada também nas relações inter-estatais, faz parte da normalidade do sistema que os países dominantes tentem exportar – na forma de intervenções violentas, incluindo guerras – as suas contradições internas para outras, menos poderosas, partes do sistema. Isto eles fazem-no na esperança de fortalecer internamente, e em meio a enormes choques intensificando-se mesmo através das fronteiras de classes, a necessária coesão social.
Contudo, isto torna-se cada vez mais difícil – não obstante todas as mitologias em causa própria acerca da "globalização universalmente benéfica" – quanto mais globalmente entrelaçado se torna o sistema capitalista. Como resultado, têm de se desenvolver mudanças significativas, com sérias consequências por toda a parte. Pois a preocupação primária do país esmagadoramente dominante, actualmente os Estados Unidos, é assegurar e reter o controlo sobre o sistema capitalista global, como o supremo poder do imperialismo hegemónico global. Mas tendo em conta os custos materiais e humanos proibitivos envolvidos, que têm de ser pagos de uma forma ou de outra, este desígnio de dominação global inevitavelmente traz consigo imensos perigos assim como a resistência implícita, não só internacionalmente mas também internamente. Por esta razão, a fim de manter o controlo autoritário sobre o sistema do capital como um todo, sob as condições de uma crise estrutural em aprofundamento inseparável da globalização capitalista no nosso tempo, as inconfundíveis tendências autoritárias têm de se intensificar não só no plano internacional mas também dentro dos países imperialistas dominantes, de forma a subjugar toda a provável resistência. As graves violações da constitucionalidade a que já assistimos nos Estados Unidos e no enquadramento legal/político dos seus aliados próximos, e o que provavelmente assistiremos mais no futuro, como pressagiado nas medidas e cláusulas legais codificadas até à data, ou ainda sob uma enviesada "consideração" particularmente no pipeline legislativo cinicamente manipulado, são indicações claras desta tendência perigosa, sob o impacto da crise estrutural do capital.
Um exemplo revelador da manipulação legislativa tendenciosa é a forma como leis importantes são redigidas pelo ramo executivo do governo. Não surpreendentemente, portanto, um juiz de um Supremo Tribunal na Grã-Bretanha teve que se queixar acerca uma questão vital de direitos humanos dizendo que "as leis aprovadas tinham sido redigidas de tal forma que impedia os tribunais de inverter as ordens de controlo… O juiz afirmou que Charles Clarke [o secretário do Interior britânico na época] havia tomado a decisão de emitir a ordem com base em informação unilateral, mas foi incapaz de encarar circunstâncias que permitissem ao tribunal revogar a decisão do secretário do Interior. Como resultado, disse o juiz, ele teria de manter a ordem em vigor, apesar de ter decidido que violava a lei dos direitos humanos. [20]
No período pós-Segunda Guerra Mundial, "o fim do imperialismo" foi celebrado, um tanto apressadamente e ingenuamente. Pois na realidade apenas vimos um há muito devido reajustamento na relação de forças internacional, em linha com a maneira como as relações de poder políticas e sócio-económicas se tinham objectivamente transformado antes e durante a Segunda Guerra Mundial, como previsto já numa passagem-chave do First Inaugural Adress do Presidente Roosevelt a defender a "política da porta aberta" em todo o lado, incluindo os então territórios coloniais. O reajustamento do pós-guerra trouxe consigo, obviamente, a relegação das antigas potências coloniais à segunda e terceira divisão, como forças subordinadas do imperialismo americano. Porém, durante um considerável número de anos – no período pós-guerra da reconstrução e relativamente imperturbada expansão económica que ajudou ao estabelecimento com êxito e ao financiamento do estado providência – a mudança mais significativa apregoada pela resolutamente instituída "política da porta aberta" (isto é, aberta aos Estados Unidos) foi combinada com a ilusão de que o próprio imperialismo fora para sempre relegado ao passado. Além disso, foi também combinada com a ideologia amplamente difundida, infectando pesadamente não só os intelectuais mas também alguns movimentos organizados importantes da esquerda tradicional, segundo a qual a crise da ordem política e sócio-económica estabelecida (admitida apenas até pouco antes da guerra), pertencia irreparavelmente ao passado. Esta ideologia foi promovida – em conjunto com a sua irmã gémea ideológica que anunciava "o fim da ideologia" – com base na assumpção gratuita de que agora vivíamos num mundo de "capitalismo organizado" que obtivera êxito no domínio das suas contradições numa base permanente.
Tinha que haver um despertar brusco, também na política e na ideologia, quando a crise estrutural universal e em aprofundamento do sistema do capital se declarou. Em 1987, quando houve uma grande crise nas bolsas de valores internacionais, os bancos mercantis argumentaram numa discussão pública televisiva que a razão daquela crise era a recusa dos EUA em fazer algo quanto à sua dívida astronómica. O banqueiro americano retorquiu agressivamente na discussão que eles deviam apenas esperar até os Estados Unidos começarem a fazer alguma coisa quanto à sua dívida, e então eles iriam ver a enormidade da crise que explodiria na sua cara. E num certo sentido ele estava certo. Pois era extremamente ingénuo imaginar que a Europa poderia isolar-se convenientemente do impacto brutal em todos os aspectos da cronicamente não resoluta crise estrutural global da qual a dívida dos EUA é apenas um aspecto, que envolve completamente a cumplicidade interesseira dos países credores.
Nas últimas duas décadas temos observado o regresso de um imperialismo claramente flagrante com uma vingança, depois de por muito tempo se ter camuflado com êxito como o mundo pós-colonial de "democracia e liberdade". E sob as circunstâncias agora predominantes ele assumiu uma forma particularmente destrutiva. Agora domina a etapa histórica casado com a afirmação aberta da necessidade de se envolver, no presente e no futuro, em "guerras ilimitadas". Além disso, como mencionado anteriormente, nem mesmo receou decretar a "legitimidade moral" da utilização de armas nucleares – de forma "antecipativa" e "preventiva" — mesmo contra países que não possuem tais armas.
Desde o começo da crise estrutural do capital no princípio da década de 1970, os graves problemas do sistema têm estado a acumular-se e a piorar em todos os campos, e não menos no domínio da política. Apesar de, contrariamente a todas as evidências, a lavagem cerebral da "globalização universalmente benéfica" continuar a ser propagandeado por toda a parte, não possuímos órgãos políticos internacionais viáveis capazes de reparar as consequências visíveis claramente negativas das tendências de desenvolvimento em curso. Até o limitado potencial das Nações Unidas é anulado pela determinação americana de impor ao mundo as políticas agressivas de Washington, como aconteceu no começo da guerra do Iraque sob falsas alegações.
Actuando desta forma o governo dos EUA assumiu arbitrariamente para si próprio o papel incontestável de ser o governo global do sistema do capital como um todo, imperturbado pelo pensamento do necessário fracasso derradeiro de um tal desígnio. Pois não é suficiente desencadear uma "força esmagadora", como prescreve a doutrina militar dominante, destruindo o exército da outra parte e infligindo no curso das aventuras militares empreendidas um enorme "dano colateral", como é obscenamente chamado, a toda a população. A ocupação e dominação permanente e sustentável – incluindo a imperturbada e lucrativa exploração económica – dos países atacados deste modo é um assunto completamente diferente. Imaginar que mesmo a maior super-potência militar poderia fazer isto, como "normalidade forçada" imposta a todo o mundo, e assim imposta como situação inalterável da "nova ordem mundial", é uma proposição totalmente absurda.
Infelizmente, os acontecimentos e desenvolvimentos têm apontado para esta direcção desde há muito tempo. Pois não foi o presidente George W. Bush mas o presidente Bill Clinton que arrogantemente declarou que " apenas existe uma nação necessária, os Estados Unidos da América ". Os neocons apenas quiseram pôr em prática, e reforçar, essa crença. Mas mesmo os chamados liberais não puderam pregar nada mais positivo que o mesmo credo pernicioso, com o mesmo espírito geral. Eles queixavam-se de que temos hoje no muno "demasiados Estados", e defendiam uma chamada integração jurisdicional como a solução viável de tal problema. [21] Quer dizer, uma grotescamente apelidada "integração jurisdicional" que realmente significaria a pseudo-legitimação de um controlo directo autoritário dos deplorados "Estados a mais" por menos do que um punhado de potências imperialistas, sobretudo os Estados Unidos. Este conceito, apesar da sua terminologia ofuscante, não é muito diferente da teorização de Thomas P. M. Barnett sobre como lidar com a lastimada "condição de desconexão " citada acima.
Se hoje existem "Estados a mais", eles não podem ser eliminados da existência. Nem podem ser destruídos através da devastação militar, para se estabelecer com base nisto a felicidade globalizada da "nova normalidade". Os interesses nacionais legítimos não podem ser reprimidos indefinidamente. De todos os lugares no mundo, o povo da América Latina pode atestar eloquentemente esta verdade.
A crise estrutural da política é uma parte integrante da há muito supurada crise estrutural do si