A concepção negativa de política de J. Chasin, por Golbery Lessa

22/10/2012 17:31

A concepção negativa de política de J. Chasin


 
 
Operários da Cia Siderúrgica Nacional não se intimidam diante das tropas do Exército, numa Greve Geral, em 1988
 
por Golbery Lessa
Doutor em Ciências Sociais
 

Resumo

Este artigo busca contextualizar a obra do filósofo brasileiro J. Chasin (1937-95) e dialogar criticamente com sua tese sobre uma suposta concepção negativa de política no pensamento de K. Marx. Por meio da análise do contexto histórico no qual surge a referida tese, do teste de sua consistência interna e de sua harmonia com os textos marxianos, chega-se à conclusão de que a abordagem chasiniana não é sustentável, pois de fato existe uma marxiana concepção negativa de Estado, mas não de política.Palavras-chave: Pensamento social brasileiro. Teoria Política. Marxismo.

 

Introdução

 

Com a regularidade de um relógio, nos momentos históricos marcados pela atitude defensiva das forças revolucionárias ressurgem formas iniciais de consciência crítica e de prática política. O movimento operário, outros sujeitos coletivos oprimidos e a intelectualidade anticapitalista reencenam um conhecido roteiro de equívocos. Entre outros descaminhos, ressurgem as ideias de reinventar a política ou de negá-la completamente. Deseja-se efetivar uma “outra política”, procura-se passar ao largo das incontornáveis decisões estratégicas e, portanto, dos partidos e de outras instituições organizadoras de uma atuação global. Busca-se salvaguardar o caráter democrático e coerente da ação contestatória da Ordem por meio da contenção das lutas nos espaços sociais mais restritos. O máximo de articulação aceita é aquela que se constrói de modo aparentemente não hierárquico, como ocorre na estrutura em rede, tão decantada nas duas últimas décadas.  

 

Neste contexto, a análise da concepção negativa de política do filósofo brasileiro J. Chasin (1937-1995) permite uma problematização particularmente sistemática da repulsa à política presente em setores românticos da esquerda e mesmo entre grupos declaradamente marxistas. Por ter propugnado uma marxiana concepção “ontonegativa” do universo político, o filósofo inseriu-se em um seleto grupo de autores que elevou a um novo patamar teórico a negação da potencialidade prática e ética deste complexo social, permitindo uma crítica heuristicamente mais fértil desta noção.[1] No presente artigo buscarmos, essencialmente, testar os argumentos chasinianos por meio da contextualização histórica do pensamento do filósofo e da crítica de elementos de sua atribuição à Marx de uma abordagem negativa da política.

Parte I – Contexto histórico da obra

José Chasin nasceu em 1937, em pleno Estado Novo (1937-1945), no bairro paulistano da Mooca, em uma família judaica imigrante do Leste Europeu. Aprendeu o iídiche antes do português, mas desde muito jovem teve uma atitude de profunda integração à cultura brasileira. Estudou em escola primária judaica e, posteriormente, frequentou educandários públicos, inclusive o colégio estadual de referência. Viveu a primeira infância em um país marcado pela exacerbação dos dilemas do desenvolvimento periférico, a solidificação das leis trabalhistas e a vigência de uma ditadura, bem como pelos conflitos ídeo-políticos de um mundo dividido entre fascismo, liberalismo e marxismo.[2]

 

Em 1959, ingressou no curso de filosofia da Universidade de São Paulo (USP). Encontrou grande efervescência política entre os estudantes e formalismo, erudição e rigor entre os docentes, vários dos quais com pós-graduação na Europa, como o brasileiro José Arthur Giannotti e o francês Gérard Lebrun. Amadurecida por décadas de investimentos da elite paulistana em ensino e pesquisa, a USP chegava a um novo momento na luta pela hegemonia nacional nos campos das ciências sociais e da filosofia. O famoso Seminário sobre O Capital, no final dos anos 1950, foi uma das expressões da pugna dos uspianos contra as práticas intelectuais consideradas “ensaísmo” pré-científico e marxismo vulgar.

 

Desde o fim da Segunda Guerra Mundial até meados de 1964, o Partido Comunista Brasileiro (PCB) teria hegemonia na esquerda, contudo seria sempre contestado por grupos e personalidades em vários pontos de sua interpretação do Brasil, de seu programa político e de algumas de suas teses sobre campos científicos particulares, como a estética e a filosofia. O jovem Chasin aproximou-se, ao mesmo tempo, do PCB e de alguns dos seus críticos. Aliou-se a Caio Prado Jr., sempre marginalizado no interior do partido, e ao grupo de intelectuais colaboradores do historiador paulista na Revista Brasiliense. A influência do autor de Formação do Brasil Contemporâneo seria responsável pelo reforço de duas dimensões básicas da personalidade teórica de Chasin: a preocupação com o estudo da particularidade do capitalismo brasileiro e a aproximação crítica do marxismo nacional. Por outro lado, rejeitará a abordagem caiopradiana da filosofia, marcada por uma perspectiva gnosiológica de fato muito distante da proposta de K. Marx.

 

No início dos anos 1970, Chasin despontava como um dos professores mais influentes da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, dividindo o espaço com outros jovens talentosos, como Gildo Marçal Brandão e Marcos Aurélio Nogueira. Obteve preeminência entre os estudantes criticando o marxismo vulgar, o stalinismo, a sociologia paulista, o maoismo e o irracionalismo da filosofia da nova esquerda europeia. Usou como bases de sua perspectiva os textos de Marx, G. Lukács e V. I. Lenin.  Tornou-se, assim, advogado de uma peculiar ortodoxia, centrada na afirmação dos fundamentos da filosofia ontológica proposta por Marx e no uso da lógica da particularidade no estudo do capitalismo nacional.

 

A postura de criticar todos os outros pontos de vista da esquerda de modo sistemático e radical, concomitante à busca de institucionalizar sua hegemonia por meio de uma proposta de pós-graduação centrada em suas convicções teóricas, uniu tacitamente seus adversários de esquerda e de direita, isolando-o politicamente, ao ponto de ser “legalmente” expulso da Escola de Sociologia e Política de São Paulo em 1976, sob a esdrúxula acusação de descumprir um decreto dos militares que proibia os professores de influenciarem o movimento estudantil. Meses depois, em 1977, numa verdadeira revanche, o professor expulso por seus pares defendeu sua volumosa tese de doutorado sobre o integralismo de Plínio Salgado, trabalho elogiado por intelectuais do naipe de Antônio Cândido, um dos componentes da banca examinadora.

 

A partir desses episódios, adensa-se um relevante movimento intelectual ao redor da abordagem chasiniana e da personalidade do filósofo, que se expressa em revistas, livros, eventos científicos, ação política nos sindicatos, nos movimentos sociais e mesmo no PCB – nesse caso, numa estratégia tipicamente caiopradiana de ficar um pouco dentro e um pouco fora do partido. A conjuntura de crise do modelo econômico da ditadura militar e a ascensão do movimento operário, a partir de 1978, alargariam os desafios para todas as correntes da esquerda revolucionária, colocando grandes tarefas teóricas e práticas para Chasin e seus colaboradores.

Parte II – Análises de conjunturas políticas

A tese chasiniana sobre a existência de uma concepção negativa de política em Marx surgirá em 1984, no desfecho da conjuntura marcada pela emergência do movimento operário e a transição entre a ditadura e a democracia liberal. A tese só aparecerá quando o grupo ao redor do filósofo já se encontrava politicamente derrotado e ultrapassado por outras correntes de esquerda. Chasin intervém naquela conjuntura com um diagnóstico específico e propostas políticas concretas, mas a realidade não lhe dá ouvidos e se move de modo distinto, tanto no sentido de desmentir o seu diagnóstico em dimensões importantes como dando hegemonia aos seus concorrentes. Parece existir um nexo relevante entre o desencanto provocado pela derrota e a negação da política como espaço positivo e ético.

 

Em 1977, poucos meses antes da grande greve metalúrgica de 1978, Chasin publica “Conquistar a democracia pela base” (CHASIN, 1979), o primeiro de uma série de importantes artigos sobre as sucessivas conjunturas políticas ocorridas entre o final dos anos 1970 e meados dos anos 1990. No artigo há a preocupação com as várias formas e dimensões da democracia e uma análise das bases econômicas e sociais da ditadura civil-militar instalada em 1964. Mesmo tendo sido escrito antes das massivas greves operárias, o texto parece imantado pela atmosfera criada pelo gigante proletário preparando-se para erguer-se. Há um diálogo crítico e áspero com a oposição, uma análise acurada da economia nacional, demonstrando um diálogo detalhado com os grandes economistas brasileiros, e uma reflexão sobre as bases e os rumos políticos da ditadura.

 

O quadro traçado é bem realista e a análise esmera-se num fluir dialético, lembrando o estilo de O 18 Brumário de Louis Bonaparte (MARX, 2011). Aparece a expressão “perspectiva do trabalho” várias vezes e com o sentido que se prolongará na corrente fundada por Chasin. O autor diferencia democracia institucional de democracia econômica, cultural e outras. Há, no entanto, uma valorização positiva da democracia política. Existe um chamado à atuação no Parlamento como ação complementar à luta de massas e a propositura de dois eixos para a oposição: a crítica ao arrocho salarial e a rejeição do entreguismo na economia. A análise da estrutura econômica é muito próxima à perspectiva de Caio Prado Jr., ou seja, está centrada na denúncia do caráter colonial do capitalismo brasileiro. Não existe a concepção negativa de política no texto, mesmo sem estar presente uma valorização absoluta da democracia institucional.

 

Em 1979, quando se encontrava em Moçambique trabalhando para o governo revolucionário daquele país, já durante o período de greves do ABC paulista, Chasin escreve o mais complexo e inovador dos seus textos de análise de conjuntura: “As máquinas param, germina a democracia” (CHASIN, 1980). Trata-se de um elogio ao movimento operário e à dialética da história. Os operários apontariam para o caminho correto, o de abandonar o “politicismo” pela verdadeira política, com centralidade operária e focada nas mudanças econômicas, mesmo aquelas inscritas ainda na ordem regida pelo capital. Afirma serem evidentes as dimensões universais da democracia, mas sublinha os limites e as ilusões da democracia liberal. Não há qualquer traço relevante de uma teoria negativa da política, muito menos de uma tentativa de vincular Marx a esse tipo de abordagem. O autor não critica a política em si, mas o “politicismo”, a perda da atitude adequada por meio do exagero da política, ou seja, por meio de uma hipostasia da política em detrimento de outros complexos sociais. 

 

O texto “Lula versus Luís Inácio da Silva” (CHASIN, 1981), de 1981, já é revelador das derrotas políticas de Chasin. O filósofo transforma um comentário sobre o diálogo com Lula durante uma entrevista em uma oportunidade para demonstrar surpresa diante dos limites da consciência dos líderes operários. Uma atitude teórica pouco razoável, pois seria, evidentemente, impossível aos operários referidos avançarem sozinhos e instantaneamente para uma consciência política plena. As greves tinham recomeçado há apenas três anos. Não era plausível apontar com surpresa para as falhas nas ideias de Lula, ainda mais quando se partia de uma visão dialética da consciência de classe, embasada em autores como Lenin e Lukács. Chasin atribui a parte negativa da consciência das lideranças operárias ao seu contato com os adversários teóricos do próprio filósofo. Contudo, os erros poderiam ter sido criados pelos operários por meio das insuficiências do seu senso comum, eles não precisavam importar os erros dos intelectuais, apesar desta importação também ser possível e ocorrer com frequência. O texto também demonstra o momento no qual o filósofo brasileiro sente escapar a possibilidade de o seu grupo liderar setores significativos do movimento operário. Diante do fato, ao invés de mudar de rota, fazer uma autocrítica e tentar composições, Chasin começa uma guerra total contra tudo e todos na esquerda, e inicia a demonstração de sua dificuldade para compor com quem quer que seja e de fazer mediações no campo da luta ídeo-política.

 

No artigo “Hasta quando?” (CHASIN, 1982), publicado em 1982, sobre a conjuntura eleitoral daquele ano, há a reafirmação das teses expostas anteriormente e uma definitiva ruptura com todos os grupos políticos da oposição liberal e da esquerda revolucionária. Chasin passa a posicionar-se como alguém que vê o processo de longe, de um espaço localizado apenas no universo da teoria; sai do jogo e julga o descaminho subjetivo e prático dos grupos em disputa. Coloca-se como professor excessivamente rigoroso e não com sujeito político: não concede qualquer significativa positividade a quem é objeto de sua crítica, suprime artificialmente as mediações e queima sem necessidade todas as pontes para futuras alianças.

No mesmo diapasão criticará, em 1985, no artigo “A sucessão transada” (CHASIN, 1984), a solução “pelo alto” dos impasses da redemocratização. Percebe na aceitação majoritária do Colégio Eleitoral para a eleição de presidente da república a comprovação de suas teses sobre os descaminhos da oposição e da esquerda. É sintomático que o movimento das Diretas Já não mereça uma análise detida do autor, sequer é levado em consideração como importante irrupção do proletariado no espaço público. Talvez porque a massa se mobilizasse por uma bandeira político-institucional e não por um programa econômico. O filósofo faz uma previsão sombria sobre o futuro da democracia no Brasil, considerado uma farsa o processo de superação da ditadura civil-militar.  

 

Sua abordagem das conjunturas políticas do país segue se desenvolvendo por meio da aplicação de suas teses básicas em momentos posteriores até que sofre uma inflexão radical, no ano de 1996, em um artigo sobre a campanha presidencial intitulado “Brasil: o poder do real” (CHASIN, 1996). De modo surpreendente, Chasin afirma a superioridade da visão de país e do tipo de política propostos pelo assim chamado “príncipe dos sociólogos” brasileiros. Fundamenta a sua opinião na tese de que as mudanças no capitalismo teriam superado os dilemas da via colonial e, portanto, que toda sua própria abordagem sobre as especificidades da economia e da política nacionais não mais ajudava a entender o Brasil contemporâneo. De um salto, o outrora incompletável capitalismo brasileiro completa-se e toda a chasiniana estratégia revolucionária, baseada na noção de revolução permanente, é abandonada, assim como passa a ser negado o protagonismo político das classes trabalhadoras. Essa mudança autodestrutiva na abordagem chasiniana coincide com a publicação da forma mais elaborada e sistemática do pensamento filosófico do autor, consubstanciada no enorme posfácio do livro Pensando com Marx (CHASIN, 1995), de José Francisco Teixeira, no qual aparece do modo mais sofisticado a tese sobre a existência de uma concepção negativa de política no pensamento marxiano.

Parte III – Concepção negativa de política

A tese aparece publicamente pela primeira vez no ano de1984, em uma mesa do I Encontro Nacional de Filosofia, promovido pela ANPOF (Associação Nacional dos Professores de Filosofia), em Diamantina (MG), entre 30 de julho e 03 de agosto.  A comunicação foi publicada como artigo no mesmo ano, no número13 da revista Ensaio, com o título “Democracia política e emancipação humana” (CHASIN, 1984). O contexto político imediato no qual emerge é o momento posterior à derrota da emenda Dante de Oliveira e o início das negociações para a saída do impasse político via Colégio Eleitoral, isto é, tratava-se de uma conjuntura de evidente afirmação de uma transição política “pelo alto”, um dos arranjos mais criticados por Chasin. [3]  

3.1. Enfrentar o capital diretamente

Naquele artigo já aparecem os principais elementos da referida tese, que seriam mantidos nas suas explicitações posteriores. Declaradamente inspirado em texto de István Mészàros (MÉSZÀROS, 1982), o autor afirma, de início, a existência de um círculo vicioso entre o poder político e o capital; sublinha depois que a ruptura deste círculo se daria, segundo Marx, por fora do universo político, em um espaço no qual seria possível enfrentar o capital diretamente, sem as mediações políticas clássicas.

O primeiro momento de sua argumentação pode ser percebido nas seguintes palavras:

O círculo mágico compreende o imenso papel que desempenha o poder político na auto-reprodução ampliada do universo regido pelo capital; e, vice-versa, o modo pelo qual a sociedade civil do capital representa e reproduz a formação política dominante segundo sua própria imagem. Um mundo articulado de dimensões solidárias entre si, graças à interdependência entre sociedade civil e estado, tendo o capital como centro organizativo de ambos. Ou seja, a sociedade civil, articulada em torno do poder econômico, assegura a dominação capitalista sobre o estado político e, através deste, sobre o conjunto da sociedade, formando, assim, um anel autoperpetuador. (CHASIN, 2000 p. 93)

Três parágrafos adiante, o filósofo explicita a estratégia supostamente marxiana de enfrentar o capital fora do complexo da política e dentro do universo que lhe seria próprio: o das relações econômicas:

A questão, para Marx, posta da perspectiva do trabalho, cifra-se precisamente pela ruptura do anel vicioso. Ou seja, antes de mais nada há que romper com o círculo perverso da própria política. Pondo-se com isto nas condições de desenvolver a luta contra o poder do capital na esfera do próprio capital. (CHASIN, 2000 p. 93)

Após atribuir ao pensador alemão a proposta de abandonar o universo político, Chasin anuncia o fundamento teórico dessa alegada estratégia marxiana: uma concepção negativa de política:

Desde suas expressões mais antigas, a concepção marxiana da política é negativa, e, por maiores que tenham sido as modificações ao longo de seus escritos, a definição negativa da política permaneceu. (CHASIN, 2000 p. 94)

 

3.2. Apoio nas “Glosas Críticas Marginais”

Chasin sublinha o contexto da suposta tese marxiana e, em seguida, analisa escritos da juventude e da maturidade do pensador alemão, dando grande destaque para o artigo “Glosas críticas marginais ao artigo ‘O rei da Prússia e a Reforma Social’, de um prussiano”, originalmente publicado em duas partes, no ano de 1844 (MARX, 2000). De fato, esse artigo e a aqueles sobre a Questão Judaica (MARX, 2010), de 1843, serão os principais apoios do filósofo na sustentação de sua tese ao longo de todos os seus escritos sobre o tema. Alguns textos marxianos da maturidade também aparecerão, mas nunca no centro dos argumentos do autor.  

 

É relevante destacar o uso pelo autor da noção de determinação social do pensamento na busca das origens históricas da suposta tese de Marx. O fundador do socialismo científico atuaria inicialmente em meio à “miséria alemã”, na qual seria vã qualquer ação de caráter político; enfrentaria o legado hegeliano criticando o seu reformismo minimalista, preocupado apenas em tornar a política germânica um pouco mais contemporânea da política dos países mais desenvolvidos da Europa; por fim, o pensador alemão observaria atentamente o contraste entre as tempestades políticas gaulesas no século XIX e a lentidão das mudanças econômicas e sociais na França. Esses três elementos teriam sido decisivos para a conformação da marxiana concepção negativa de política.

 

O filósofo brasileiro inicia a demonstração de sua tese citando uma passagem do referido artigo “Glosas críticas marginais ao artigo ‘O rei da Prússia e a Reforma Social’, de um prussiano”:

Quanto mais o estado é potente, quanto mais um país é político, tanto menos está disposto a buscar no princípio do estado – isto é, na organização atual da sociedade, da qual o estado é a expressão ativa, consciente e oficial – a razão das taras sociais e a compreender-lhe o princípio geral. A inteligência política é precisamente inteligência política porque pensa no interior dos limites da política. Quanto mais ela é viva e penetrante, tanto menos é capaz de apreender a natureza das taras sociais. O período clássico da inteligência política é a Revolução Francesa. Longe de perceber no princípio do estado a fonte das taras sociais, os heróis da Revolução Francesa, ao contrário, percebiam nas taras sociais a fonte dos males políticos. É assim que Robespierre não vê na extrema pobreza e na extrema riqueza a não ser um obstáculo para a democracia pura. Ele deseja, por isso, estabelecer uma frugalidade geral à espartana. O princípio da política é a vontade. Quanto mais o espírito político é unilateral, tanto mais é perfeito, tanto mais crê na onipotência da vontade, e tanto mais é cego em face dos limites naturais e espirituais da vontade, e por consequência, menos capaz é ele de descobrir a fonte das taras sociais. (MARX, 2000 apud CHASIN, 2000 p. 94)

Diante da complexa elaboração marxiana contida nesta passagem e da ausência nela mesma de várias mediações necessárias para entender o seu conteúdo, o qual de modo algum fica claro sem sua conexão com outras partes do artigo, Chasin, surpreendentemente, afirma: “É supérfluo qualquer comentário”. Contudo, acaba oferecendo uma explicação sintética e elucidativa de um aspecto decisivo de sua posição:

 

(...) mas compete grifar que se está no interior de um discurso que visualiza um modo de ação social profundamente diverso da política, e que tem por ponto de partida a denúncia dos condicionamentos paralisantes de qualquer política como necessariamente inerentes à própria política. (CHASIN, 2000 p. 94)

 

3.3. Proposta de uma “metapolítica”

Para Chasin, a passagem de Marx citada anteriormente expressaria o pressuposto deste pensador para a propositura de uma prática social distinta da política e, ao mesmo tempo, denunciadora dos limites deste complexo social. Como se pode observar, a atribuição de uma negatividade essencial ao universo político vai impondo a Chasin, desde o início, a postulação de uma “metapolítica” (CHASIN, 2000 p. 59) [4] e a forçada imputação deste conceito ao pensador alemão. Os problemas desta interpretação saltam aos olhos do leitor atento. Que complexo social seria esse no qual os homens se mobilizariam coletivamente para a solução de seus problemas coletivos essenciais sem imitarem o espaço político e sem reproduzirem o que seria sua presumida maneira própria e alienada de pensar e agir? Uma política para quebrar as pernas da política, uma “metapolítica”, não deixaria de ser uma política. Trata-se, evidentemente, de uma propositura incapaz de resolver os problemas conceituais surgidos das afirmações simultâneas da negatividade do universo político e da necessidade do momento político em uma revolução social. Trata-se de uma contradição lógica formal, não de uma contradição dialética. O autor expulsa a política pela porta da frente e a readmite pela janela.

3.3. Identificação entre Estado e política

Na passagem marxiana citada, em uma linguagem por vezes literária, aberta à hipérbole, e inserida no contexto de um diálogo com autores de palavreado neohegeliano, portanto, grávida de ambiguidades se lida literalmente, Marx está de fato fazendo uma crítica àquilo que o próprio Chasin denominara em textos anteriores de atitude “politicista”, caracterizada por uma interpretação invertida dos nexos entre o universo político e a sociedade civil. Dessa inversão teórica da hierarquia efetiva dos nexos causais, típica do pensamento político liberal, deriva o equivocado entendimento de que a racionalização progressiva do Estado seria o único meio eficiente para a promoção do bem-estar da sociedade civil; o aperfeiçoamento do Estado, e não a sua extinção, seria a única e decisiva meta da prática política e do pensamento político.

Devido à importância da passagem já citada para a argumentação de Chasin, é necessário comentar suas partes detidamente:

 

 Quanto mais o estado é potente, quanto mais um país é político, tanto menos está disposto a buscar no princípio do estado – isto é, na organização atual da sociedade, da qual o estado é a expressão ativa, consciente e oficial – a razão das taras sociais e a compreender-lhe o princípio geral. (MARX, 2000 apud CHASIN, 2000 p. 94)

 

Marx inicia usando a noção de determinação social do pensamento, relacionando a atitude mental politicista em um país com a intensidade da força do seu Estado. Um país com um Estado mais “potente” teria mais dificuldade de perceber “no princípio do Estado”, ou seja, no fato de que a máquina estatal se assenta na propriedade privada e tem como função garantir sua existência, “a razão das taras sociais”.

 

De modo diferente da interpretação de Chasin, o pensador alemão não identifica de fato a natureza do Estado e a natureza da política em geral. A alegada identidade entre Estado (a parte) e política (o todo) na citação seria uma confusão conceitual (de fato, uma falácia) pouco provável na mente radicalmente lógica de Marx. Na verdade, trata-se apenas do uso de uma sinédoque (figura de linguagem na qual a parte representa o todo ou vice-versa) e, ao mesmo tempo, de uma ironia com a expressão “país não-político” usada pelo “prussiano” (o neohegeliano Arnold Rouge, autor do artigo) para definir a Alemanha. “Quanto mais o estado é potente, quanto mais um país é político”, isto é,  “país político” seria aquele no qual uma das principais expressões da política, o Estado, estaria particularmente presente e poderosa. A partir desse ponto, Marx passa a usar “política” como sinônimo de Estado, mas somente como um recurso literário, não como uma afirmação objetiva estrita, como interpreta Chasin. Prova adicional disso reside no fato de que a identidade alegada não aparece em nenhum outro texto marxiano.[5]

 

Nos citados artigos sobre a Questão Judaica, publicados um ano antes, Marx admite e usa várias vezes a expressão que reprova no “prussiano”: “Estado não-político”. Naqueles artigos, o filósofo conceitua esse tipo de Estado como aquele no qual não existiria a igualdade jurídica entre todos os cidadãos. Trata-se, como é evidente, não de uma afirmação da existência de fato de um “Estado não-político”, mas de uma figura de linguagem, uma hipérbole, para ressaltar a inexistência ou a incipiência da emancipação política em um determinado país.  No artigo “Glosas críticas marginais”, a crítica marxiana a Arnold Rouge, o “prussiano”, baseia-se com clareza na ideia de que todo Estado é político, mesmo aquele não democrático e, como tal, não pode perceber nos seus próprios fundamentos a origem dos males sociais. Marx, portanto, ironiza a tese da existência de um “Estado não-político” meses depois de ter abusado da mesma expressão nos escritos sobre a Questão Judaica. Essa complexidade linguística, existente em qualquer texto clássico, lembra-nos de que não se pode analisar a obra de qualquer autor de modo literal, é preciso levar em conta o seu estilo e o jogo simbólico inscrito no diálogo implícito e explícito com seus interlocutores imediatos.

 

Em determinado momento do seu texto, Chasin apresentará de modo mais explícito a concepção negativa de Estado de Marx como uma concepção negativa de política, assumindo com limpidez a sua tese da identidade entre esses dois elementos: “Em Marx, o estado e a política em geral, como domínio separado, deve ser superado através de uma transformação radical do complexo social” (CHASIN, 1984 p. 97). Como afirmamos anteriormente, esta suposta identidade, que o autor solidificará em outros textos pelo uso da palavra “politicidade” para referir-se indiferentemente ao Estado e à política, gera antinomias na reflexão chasiniana sobre o tema e a fará cair em graves insuficiências lógicas, além de insustentáveis afirmações ontológicas. 

3.4. Extração de uma concepção negativa de política

Sem a percepção do caráter retórico da identificação feita por Marx no texto, esta parte da citação transforma-se em uma teoria negativa de política:

A inteligência política é precisamente inteligência política porque pensa no interior dos limites da política. Quanto mais ela é viva e penetrante, tanto menos é capaz de apreender a natureza das taras sociais. (...) O princípio da política é a vontade. Quanto mais o espírito político é unilateral, tanto mais é perfeito, tanto mais crê na onipotência da vontade, e tanto mais é cego em face dos limites naturais e espirituais da vontade, e por consequência, menos capaz é ele de descobrir a fonte das taras sociais. (MARX, 2000 apud CHASIN, 2000 p. 94)

 

Lida por Chasin, a passagem afirmaria que pensar politicamente seria uma atitude necessariamente alienada. A sustentação de tal tese colocaria Marx na difícil situação de ser um revolucionário de mente “não-política”, uma evidente contradição formal, pois a dimensão política de uma revolução é o mais radical e abrangente dos atos políticos, e pressupõe profunda reflexão sobre suas condições e possibilidades. Na passagem citada, o pensador alemão refere-se na realidade à perspectiva politicista, à tese de que o aperfeiçoamento do Estado seria sempre o principal objetivo, não se refere à reflexão política em si. Provas adicionais do caráter retórico da identificação aludida se encontram nas expressões “inteligência política” e “espírito político”, duas imagens neohegelianas usadas de modo irônico no texto marxiano.

 

Para reforçar a ideia de uma concepção negativa de política em Marx, Chasin faz outra citação do mesmo artigo na qual fica clara, na verdade, a alusão do autor alemão à natureza negativa do Estado, não da política em geral. O leitor atento perceberá, facilmente, que o pensador germânico abandona a figura de linguagem unificadora dos dois conceitos e expõe de modo mais preciso uma teoria sobre a negatividade essencial do Estado:

 

A menos que suprima a si mesmo, o estado não pode suprimir a contradição entre o papel e a boa vontade da administração, de um lado, seus meios e seus poder, doutro. Ele repousa sobre a contradição. Ele é fundado sobre a contradição entre a vida pública e a vida privada, entre os interesses gerais e aos interesses particulares. Por consequência, a administração deve-se limitar a uma atividade formal e negativa, pois seu poder para precisamente lá onde principia a vida civil e seu trabalho. Em verdade, a impotência é a e lei natural da administração, quando ela é posta diante das consequências que resultam da natureza antissocial desta vida civil, desta propriedade privada, deste comércio, desta indústria, desta pilhagem recíproca das múltiplas esferas civis. Pois este esquartejamento, esta baixeza, esta escravidão da sociedade civil constituem o fundamento natural sobre o qual repousa o estado moderno, do mesmo modo que a sociedade civil da escravidão é o fundamento natural do estado antigo. A existência do estado e a existência da escravidão são indissociáveis. (...) Para findar com a impotência de sua administração, o estado moderno deveria findar com a vida privada de hoje. Se quisesse suprimir a vida privada, necessitaria suprimir a si mesmo, pois é unicamente por oposição à vida privada que o estado moderno existe. (MARX, 2000 apud CHASIN, 2000 pp. 94-95)

 

No comentário a esta citação, na qual o objeto é claramente o Estado e a palavra “política” sequer aparece, Chasin novamente identifica Estado e política e imputa o mesmo movimento conceitual a Marx:

 A definição negativa de política e, mais ainda, o vínculo essencial entre a base material e o poder político, na concepção de Marx, são aspectos muito conhecidos, fontes mesmo da maioria das críticas que lhe são dirigidas. (CHASIN, 2000 p. 95)

 

3.5. Efetividade da aparência do Estado

O essencial das palavras de Marx sobre a natureza do Estado na citação acima é rigorosamente correto e coerente com o seu pensamento em momentos posteriores. A impotência do Estado para resolver de modo definitivo os problemas estruturais causados pela sociedade de classes é um fato. No entanto, uma afirmação exagerada dessa constatação pode levar à incompreensão de mediações importantes da relação entre a “administração” e a realidade social, a uma tese de que as políticas públicas seriam apenas epifenômenos, ações estatais sem nenhum poder de modular a realidade.

 

Como Marx escreve 1844, portanto em um momento muito anterior, por exemplo, em relação aos primeiros sistemas de previdência social, desenvolvidos a partir do final do século XIX e principalmente nas primeiras décadas do século XX, e em uma Alemanha particularmente refratária aos direitos sociais, o pensador é levado a deduzir que o Estado teria uma limitação absoluta e não apenas essencial (ou seja, desconsidera a aparência do Estado, sua dimensão objetiva não-essencial, mas real) diante dos males sociais. Isso fica evidente em alguns exemplos apresentados pelo autor germânico relativos às políticas de assistência e de educação.  

 

O fundador do socialismo científico afirma no texto que o estabelecimento de um sistema universal de educação e o fim do trabalho das crianças levariam à abolição do proletariado enquanto tal, tese claramente não sustentável para os países centrais do capitalismo durante grande parte do século XX e no presente. Em suas palavras:

Por que Napoleão não ordenou a imediata supressão da mendicância? O mesmo valor tem a pergunta do "prussiano": Por que o rei da Prússia não determina a imediata educação de todas as crianças abandonadas? Sabe o "prussiano" o que o rei da Prússia deveria determinar? Nada menos que a eliminação do proletariado. Para educar as crianças, é preciso alimentá-las e liberá-las da necessidade de trabalhar para viver. Alimentar e educar as crianças abandonadas, isto é, alimentar e educar todo o proletariado que está crescendo, significaria eliminar o proletariado e o pauperismo. (MARX, 1995)  

Este erro de Marx, ou seja, a afirmação de um laço necessário entre a ausência de um sistema público universal de educação, a presença do trabalho infantil e a reprodução do capital, relaciona-se também ao fato de que o autor ainda não havia desenvolvido uma teoria econômica suficientemente complexa para explicar a reprodução das relações capitalistas e, portanto, do proletariado enquanto classe; carência que o faz sobrevalorizar o papel da ausência da educação formal e a presença do trabalho infantil no processo de alienação prática e subjetiva da classe dos produtores diretos. A interpretação de Chasin corrobora esta insuficiência da abordagem marxiana das políticas sociais. Posteriormente, o equívoco marxiano é amplamente superado, bastando citar sobre isso sua complexa análise em O Capital da lei de limitação legal da duração da jornada de trabalho, na qual Marx afirma ser esta lei a primeira vitória da economia política proletária sobre a economia política burguesa (MARX, 1988). [6]

No que se refere à política de assistência, o erro marxiano no artigo encontra-se no fato de que o próprio filósofo sublinha gradações positivas e negativas na política inglesa para os pobres. Se uma política de assistência pode ir piorando, como demonstra Marx no texto, indo da coordenação estatal da esmola pública por meio de um imposto para os pobres até a reclusão obrigatória destes em instituições de trabalho forçado, também pode fazer o caminho inverso. Mesmo não infirmando a tese marxiana relativa à impotência do Estado em relação às causas essenciais do pauperismo, a existência de um gradiente de possibilidades na política de assistência social demonstra que a ação do Estado sobre a pobreza não é totalmente irrelevante, não é uma mera ilusão.

3.6. Análise de obras marxianas da maturidade

Chasin também procurará demonstrar sua tese a partir da abordagem presente nos escritos marxianos da maturidade, escolhendo inicialmente a primeira versão dos rascunhos da Mensagem do Conselho Geral da Associação Internacional dos Trabalhadores sobre a Comuna de Paris, cujo texto acabado foi publicado como A Guerra Civil na França (MARX, 2011), e passagens dos materiais preparatórios de O Capital, conhecidos como Grundrisse (MARX, 2011).

 

O autor brasileiro inicia sua argumentação comentando a seguinte passagem:

Tanto quanto o aparelho de estado e o parlamentarismo não constituem a verdadeira vida das classes dominantes, não sendo mais do que os organismos gerais de sua dominação, as garantias políticas, as formas e as expressões da velha ordem da coisa, igualmente, a Comuna não é o movimento social da classe operária, e, por consequência, movimento regenerador de toda a humanidade, mas somente o meio orgânico de sua ação. A Comuna não suprime as lutas de classes, pelas quais a classe operária se esforça por abolir todas as classes e, por consequência, toda dominação de classe (porque ela não representa um interesse particular; representa a libertação do ‘trabalho’, quer dizer, a condição fundamental e natural de toda a vida individual e social, que somente a usurpação, a fraude e artifícios especiosos permitem à minoria confiscar à maioria), mas ela (a Comuna) cria o ambiente racional no qual a luta de classes pode atravessar suas diferentes fases do modo mais racional e mais humano [...] A classe operária sabe que a atual ‘ação espontânea das leis naturais do capital e da propriedade fundiária’ não pode ser substituída a não ser pela ‘ação das leis da economia sócia do trabalho livre e associado. (MARX, 2000 apud CHASIN, 2000 p. 95)

Neste exceto, Marx expõe exatamente o oposto do sustentado por Chasin. A Comuna era um Estado, mesmo sendo a mais positiva forma de Estado, por possibilitar a máxima racionalização da luta de classes e o desfecho mais generoso para esse processo. O pensador alemão não afirma que a Comuna não seria um Estado proletário, diz que esse Estado proletário se extinguiria porque os interesses imediatos dos trabalhadores não se coadunam com sua perenidade. A interpretação do filósofo brasileiro não leva em conta a complexidade prática do período de transição, atitude distinta da assumida por Marx.

 

A aceitação marxiana desta complexidade fica explícita, por exemplo, nas cartas escritas em 1875, três anos após a citada passagem sobre o movimento revolucionário parisiense, e publicadas postumamente, no ano de 1891, sob o título “Crítica ao Programa de Gotha” (MARX, 1982), nas quais o pensador germânico afirmará inclusive a necessidade da sobrevivência do direito após o momento política inicial da revolução,[7] o que implica na existência de uma estrutura estatal e na sociedade de transição entre o capitalismo e o comunismo:

Pergunta-se, então: por que transformação passará o sistema de Estado numa sociedade comunista? Por outras palavras, que funções sociais permanecem aí, que sejam análogas às funções atuais do Estado? Há que responder a esta pergunta apenas cientificamente, e também não se fica de um salto de pulga mais perto do problema pela combinação, em mil maneiras, da palavra povo com a palavra Estado.

Entre a sociedade capitalista e a comunista fica o período da transformação revolucionária de uma na outra. Ao qual corresponde também um período político de transição cujo Estado não pode ser senão a ditadura revolucionária do proletariado. (MARX, 1982)

Um dos objetivos principais da teoria negativa de política de Chasin é o de contribuir para a explicação dos processos de burocratização das revoluções proletárias ocorridas no século XX. Segundo o filósofo brasileiro, essas revoluções teriam fracassado no sentido de superar o capital porque ocorreram em circunstâncias de atraso econômico e pelo fato de suas lideranças não se colocarem suficientemente contrárias ao Estado e à política, de não terem clareza da necessidade de dissolvê-los e devolver suas energias à sociedade civil. A intenção do filósofo é a de colaborar para evitar o mesmo erro no futuro, ou seja, para convencer os revolucionários a não fortalecerem o Estado no processo de transição, mesmo se tratando de um Estado hegemonizado pelos trabalhadores.

 

 Para Chasin, um “Estado proletário” seria uma contradição em termos, pois qualquer versão desse órgão estaria assentada sobre a dominação de classe e o proletariado revolucionário seria obrigado a abolir todas as classes, inclusive a si mesmo. A escolha da passagem marxiana acima demonstra a preocupação chasiniana de tentar provar como o próprio Marx considerava a Comuna uma espécie de “não Estado”, com características tais que facilitariam as sua dissolução no processo revolucionário e a reabsorção pela sociedade civil das forças alienadas na forma de máquina estatal. Contudo, como o pensador alemão diz algo bem diferente disso, Chasin, de modo inconsciente, acaba tentando fazer passar ao leitor uma espécie de quadratura do círculo.

 

O filósofo brasileiro procura demonstrar que o pensador alemão tinha em mente o definhamento do Estado e não a construção de um perene “Estado proletário” como um dos resultados essenciais da Revolução, contudo Chasin será obrigado a tecer armas com a positividade conferida por Marx aos momentos organizativos da política revolucionária, única atividade capaz de efetivar as condições para a dissolução do Estado na sociedade civil e abrir o caminho para a emancipação humana.

 

Este conflito explica porque Chasin tem dificuldade de comprovar sua tese a partir dos textos da maturidade de Marx e evita a referência à maioria deles. Em todos seus escritos sobre tema, cita e analisa principalmente os artigos sobre a Questão Judaica, de 1843, o artigo “Para uma crítica da Filosofia do Direito de Hegel. Introdução” (MARX, 2010), de 1844, o artigo as “Glosas críticas marginais ao artigo A Reforma Social”, de 1844, os  “Primeiros Materiais Preparatórios para A Guerra Civil na França” (MARX, 2011), de 1872, e poucas passagens do caderno de anotações publicadas como “Grundrisse”, de 1857/58. É como se fugisse dos vários textos nos quais Marx procura demostrar a necessidade imperiosa do fazer político em toda a sua complexidade, fazer que implica em muitas tarefas organizativas, portanto, positivas, muito antes da efetivação do trabalho de destruição do poder estabelecido, tarefa negativa, que será sucedida pela mãe das ações positivas: a construção da ordem comunista.

Além de simplificar exageradamente as mediações políticas da fase de transição, outra característica da abordagem de Chasin sobre o momento pós-revolucionário é o irrealismo econômico, que se observa, inclusive, pela inexistência de conceitos relativos à economia nos seus escritos sobre o tema. O autor sequer se coloca a evidente questão da complexidade organizativa de uma sociedade na qual o sistema de preços e a dinheiro seriam abolidos, ou seja, de uma sociedade em que a economia não poderá efetivar-se de modo automático, sem a decisão consciente e coletiva dos produtores diretos. Com o fim do Estado, após a fase de transição, o papel do complexo no qual os homens refletirão e resolverão as questões gerais da sociedade só poderá aumentar. Este complexo terá as mesmas características do universo político, assim como foi definido pelos gregos e reafirmado por G. Lukács, uma das principais fontes do pensamento de Chasin: “Não pode haver nenhuma comunidade humana (...) na qual e a propósito da qual não surjam continuamente questões que nós estamos acostumados a denominar, num nível mais evoluído, de políticas”. (LUKÁCS, 1981 apud TOLEDO, 2002)

3.7. Antinomias da concepção negativa de política

Reflitamos sobre as afirmações ontológicas pressupostas e explicitadas por Chasin na sua interpretação da abordagem marxiana da política. Para o autor, Marx perceberia a política como algo estranho às dimensões perenes da natureza humana, seria um complexo próprio da “pré-história” da humanidade, de natureza alienada e transitória, como, por exemplo, as classes sociais, a escravidão e a mercadoria. Essa concepção marxiana constituiria uma singularidade na história da teoria política; nenhum outro autor teria sustentado a ideia de que a política seria, ao mesmo tempo, negativa e superável pela decisão e a ação dos próprios homens. Entre os outros pensadores modernos da política seria frequente a aspiração de aperfeiçoar o aparato estatal com a intenção de domar sua tendência de voltar-se contra o progresso da sociedade civil, ou seja, a tradição negada por Marx centralizaria sua atitude na busca do aperfeiçoamento continuado do Estado e da política. Para o pensador germânico, a política, dimensão essencialmente negativa, poderia realizar cumprir o sujo trabalho de destruição do Estado e do capital e, portanto, de aniquilamento da própria política.

 

Explicitemos uma das principais dimensões do raciocínio atribuído por Chasin a Marx no que se refere ao significado do momento político da revolução proletária: um complexo social negativo, a política, se voltaria de modo radical contra uma das suas partes, também negativa, o Estado, e, extinguindo essa parte, extinguiria a si mesmo. Em outro grau de concreção, o raciocínio seria mais complexo: um complexo social negativo, a política, se voltaria de modo radical contra uma das suas partes, também negativa, o Estado, e contra o capital, complexo igualmente negativo e base do Estado, e, extinguindo esse órgão e seu fundamento econômico, extinguiria a si mesmo.

 

Nas duas formas de apresentação do raciocínio básico não existe qualquer polo positivo no conflito dialético. A negatividade (a política) se bate contra si (o Estado) e contra outra negatividade (o capital) para extinguir esses dois polos e a si mesma, produzindo a positividade ao final do processo (a superação do Estado, a extinção da política e a emancipação humana). É uma dialética histórica no mínimo estranha, pois é capaz de produzir o positivo do conflito do negativo consigo mesmo. Para garantir a negatividade essencial da política e a equação “dialética” referida, Chasin tende a atribuir-lhe tarefas principalmente negativas no processo revolucionário, ou seja, tarefas apenas destrutivas da máquina do Estado e das relações sociais de produção capitalistas.  

 

Se a política é essencialmente negatividade, uma “metapolítica” também o será, na medida em que as duas teriam a mesma natureza essencial, apesar de comportarem especificidades. O autor procura dar um salto mortal lógico para sair da antinomia na qual se envolveu (considerar a política como negatividade e aceitar como decisivo o momento político da revolução social) e termina entrando em um raciocínio circular. Se o complexo social da política é uma negatividade, como seria capaz de superar a si mesmo sem deixar de sê-lo? Se o complexo social da política for capaz de superar a si mesmo, como pode ser essencialmente negativo? A superação de um ente negativo impõe a positividade ao ente que o supera. Ou a política é negativa, e insuperável a partir de si mesma, ou a política é positiva, portanto, capaz de aperfeiçoar a si mesma, por exemplo, livrando-se do Estado e do seu fundamento na sociedade civil, a luta de classes.

 

A abordagem chasiniana da política como negatividade é análoga a uma abordagem que confundisse as relações capitalistas de produção com a economia em geral. Uma perspectiva desse tipo propugnaria o caráter negativo da economia e sua superação por meio de uma “meta-economia”, capaz de efetivar-se como uma economia superadora da própria economia, isto é, capaz de dissolver a economia capitalista e a si mesma. 

 

Numerosas evidências históricas demonstram que uma revolução contra o Estado e o capital possui amplas tarefas organizativas, portanto, positivas, anteriores aos seus momentos destrutivos, e também posteriores, pois necessitará construir novas relações de produção. Como fica claro em Marx, Lenin, Rosa de Luxemburgo, Lukács e Gramsci, entre outros, a principal tarefa positiva da dimensão política da Revolução é organizar e fazer avançar a consciência do sujeito revolucionário, o proletariado, auxiliando-o a transitar do em si (momento alienado, negativo) até o para si (momento libertário, positivo). Após a destruição do Estado e das relações capitalistas de produção, a Revolução precisa criar uma economia capaz de funcionar a partir do planejamento consciente dos indivíduos livres, o que implicará numa radicalização do universo político, definido como aquele no qual os indivíduos pensam e agem no sentido de equacionar ou resolver os problemas coletivos essenciais. Uma economia planejada e sem o mecanismo automático dos preços seria o reino da política, entendida no sentido atribuído por Lukács, não no sentido de atividade própria do Estado ou referente à luta pelo poder.

3.8. Singularidades da política em Marx e a emancipação humana

Para concluirmos a nossa exposição sobre a abordagem de Chasin, ainda é necessário discutir, mesmo brevemente, três outros pontos relevantes: 1) a caracterização das diferenças entre a teoria de Marx e a dos outros pensadores do Estado e da política; 2) o tratamento dispensado à emancipação política; e 3) os problemas postos por uma concepção negativa de política para uma ética revolucionária.

 

Para Chasin, os teóricos da política, exceto Marx, estariam essencialmente preocupados com o aperfeiçoamento do Estado e empenhados na pesquisa dos caminhos necessários para a realização desse objetivo. Sublinha fortemente a ideia de que todos seriam antípodas de Marx por abraçarem a tese da positividade da política. Para ser plausível, a afirmação feita por Chasin precisaria ser apresentada de modo mais detalhado. Causa estranheza ao leitor atento o exagerado grau de abstração proposto, pois os pensadores da Antiguidade (Aristóteles e Platão, por exemplo) tipificam bem os defensores da positividade da política (entendida como a afirmação da compatibilidade entre ética e política e como a defesa do Estado perfeito), entretanto, é mais difícil aceitar o mesmo enquadramento para os teóricos modernos.

 

Para Maquiavel, Jean Bodin e Thomas Hobbes, fundadores da reflexão política moderna, o Estado seria um mal necessário e se expressaria como órgão distanciado, fundador e dominador da sociedade civil. A política não permitiria o predomínio de meios morais e éticos, mas apenas fins compatíveis com a moral e a ética. O espaço da política não seria o lugar da liberdade do cidadão e da interação racional entre os indivíduos, mas a esfera da liberdade do príncipe e da escravidão dos súditos, em benefício deles mesmos, pois a alternativa seria a barbárie. O Estado produziria a Ordem, uma grande positividade, por meio de uma negatividade extrema: o poder absoluto do príncipe  (BOBBIO, 1997).

 

Os liberais clássicos, como John Locke e Adam Smith, não imaginavam o Estado como um bem em si e que sua perfectibilidade fosse possível ou desejável. Para os dois, o Estado deveria ser limitado e vigiado pela sociedade civil por meio de uma Constituição cerceadora do poder do príncipe. O mercado seria a esfera positiva, a origem de todo o bem, enquanto o Estado seria um mal, um obstáculo atrapalhando a dinâmica da livre iniciativa (BOBBIO, 2000). Os neoliberais, como Friedrich Hayek e Milton Friedman, elevaram esta postura marcada pela percepção negativa do Estado e da política à sua potência máxima, propugnando um Estado tão pequeno e impotente que sequer teria a atribuição de imprimir e regular a moeda. No limite do seu raciocínio, os neoliberais aspiram pelo fim do Estado, ou pelo menos pela sua irrelevância diante da sociedade civil e do mercado (HAYEK, 1987; FRIEDMAN, 1997).

 

Diante dessa complexidade, é necessário especificarmos melhor os conceitos para enquadrar de modo razoável os pensadores modernos entre os que concebem a política e o Estado como positividades. Os autores absolutistas propõem o aperfeiçoamento do Estado autoritário e concebem a política como o espaço da luta encarniçada pelo domínio, portanto, perseguem o aperfeiçoamento do Estado como aparato de poder absoluto causador do bem comum, mas não concebem a prática política em si e as ações estatais como passíveis de tornarem-se morais, positivas, de onde decorre, por exemplo, sua recusa à democracia. Os pensadores liberais propõem a limitação do poder do Estado por meio de mecanismos institucionais garantidores do controle dos seus abusos pela sociedade civil, ou seja, por meio da garantia de direitos políticos fundamentais. Não imaginam que a máquina estatal possa vir a ser perfeita, pois ela seria um mal em si; buscam apenas aperfeiçoar o Estado no sentido de torná-lo compatível com a liberdade de parcelas da sociedade civil. 

 

Os teóricos democratas radicalizam a posição liberal, mas em essência não a transcendem; buscam diversos modelos institucionais para diminuir a malignidade intrínseca do Estado, mas também para eles este órgão é um mal e configura-se como insuperável, apesar de a prática política ter condições de apresentar-se como uma esfera positiva, moral. Alguns desses autores, entre os quais se encontra o jovem Marx (afirmando do ponto de vista democrata uma tese de Hegel sobre o Estado como expressão mais acabada da liberdade e da racionalidade), conceberam o Estado como o bem supremo e a política como espaço para a ação moral por excelência.

 

Chasin tem razão quando afirma que Marx foi o único (junto com os anarquistas, mas com uma elaboração teórica muito mais sofisticada) a afirmar a negatividade do Estado até as últimas consequências, ou seja, até a percepção da necessidade de superá-lo e percebê-lo como exterior à natureza humana. Contudo, erra em não especificar igualmente as identidades de Marx com os pensadores anteriores. Entre elas está o fato de que os autores modernos, salvo exceções, como Hegel e o jovem Marx, também não percebem o Estado como uma positividade, no sentido de ele ser um elemento ético em si e estar de acordo com a natureza do ser social; além disso, apenas os autores liberais democráticos admitem a positividade da política.

3.9. Efetividade da emancipação política

No que se refere às diferenças entre emancipação política e emancipação humana, há na abordagem de Chasin, ancorada principalmente nos dois artigos marxianos sobre a Questão Judaica, um exagero no tratamento do caráter limitado da primeira (CHASIN, 2000). Isso abre espaço para aqueles que abraçam o equívoco de torná-la fonte essencial da alienação da subjetividade dos indivíduos, quando de fato essa alienação origina-se no mundo das relações econômicas, a partir da aparência fetichista da troca de mercadorias.[8] A emancipação política ganha um tratamento de epifenômeno e, em certos momentos, de mera ilusão, quase um elemento de logro das classes oprimidas. Na tradição hegeliana e em Marx a aparência do ente é um elemento inerente, possui uma natureza objetiva, não é uma ilusão subjetiva; é elemento inseparável do próprio ente, apesar de não ser sua dimensão definidora, essencial. Chasin tende a perceber a liberdade política apenas como uma miragem, somente na sua dimensão não reveladora das diferenças de classe no capitalismo. Esquece, portanto, que o falso é um momento do verdadeiro no interior de um processo dialético, ou seja, não leva em conta que o trato com o universo político, marcado por uma liberdade limitada, é a janela prática e subjetiva necessária para o desvelamento dos seus limites e de seus fundamentos, os quais se encontram na sociedade civil dividida em classes sociais. Afirma em um breve momento o caráter efetivo, real, da emancipação política (até porque Marx o faz algumas vezes no texto, pois temia ser incompreendido nesse ponto politicamente decisivo), mas sua tônica principal não é essa.

 

A ênfase da perspectiva marxiana nos dois artigos sobre a Questão Judaica é distinta daquela afirmada pelo filósofo brasileiro. Para Marx, mesmo deixando de pé as diferenças de classe originadoras da alienação humana, a emancipação política é uma liberdade efetiva, prática, não ilusória. Ela permite, por exemplo, a real liberdade de expressão religiosa, mesmo sendo esta a liberdade de esposar uma forma de alienação. O voto de um capitalista vale, aritmeticamente, o mesmo que e o voto de um proletário, apesar de o primeiro ter recursos muito maiores para influenciar as eleições. Mesmo denunciando as limitações da emancipação política e sublinhando a superioridade da emancipação humana, o pensador alemão não a rejeita ou diminui a sua efetiva importância e o seu caráter progressista.

 

Ao sublinhar as complexas metáforas e outras imagens usadas por Marx para demonstrar as diferenças entre emancipação política e emancipação humana, algumas delas contendo a contraposição entre imagens religiosas e profanas, usadas para adequar o estilo ao tema, Chasin termina por desenhar uma figura muito piorada da liberdade política, ao ponto de ela aparecer como diáfana, sem efetividade, e, no limite, como um elemento capaz de lograr a percepção da essência negativa do Estado e da sociedade civil regida pelas relações mercantis.

3.10. Insustentabilidade ética de uma concepção negativa de política

A abordagem chasiniana do pensamento de Maquiavel é reveladora de um sério problema no campo da ética provocado pela sua concepção negativa de política (CHASIN, 2000 pp. 197-238). Após fazer uma contextualização erudita da obra do pensador florentino e fugir de modo competente das banais considerações anacrônicas e moralistas em relação ao autor, Chasin aceita como verdadeira a percepção maquiavélica da política e, em decorrência, considera de fato a amoralidade como característica básica deste complexo social, no que acompanha toda a moderna perspectiva dominante sobre o tema (BOBBIO, et al., 1998 pp. 954-62).

 

Se a identidade entre Maquiavel e Marx fosse verdadeira nesse aspecto decisivo, a couraça ética da perspectiva revolucionária estaria gravemente fragilizada, pois inexistiria qualquer vantagem moral do proletariado no interior da luta política. De um salto, as forças da Revolução se tornariam tão amorais quando as forças da Ordem e a própria vanguarda revolucionária passaria a ser incapaz de justificar seu próprio engajamento político. Se ação ética somente fosse possível numa sociedade comunista, não haveria sentido em F. Engels deixar a confortável posição de proprietário industrial para arriscar-se nas barricadas. Do mesmo modo, seria inexplicável o fato de G. Lukács ter abandonado a confortável vida junto à sua família burguesa para tornar-se um dos dirigentes da Revolução comunista húngara de 1919 (LOWY, 1998).

 

Como é conhecido, Marx sublinha a ultrapassagem subjetiva feita pelo proletariado em relação à burguesia a partir do momento em que esta classe, em meados do século XIX, toma o poder e transforma-se de revolucionária em conservadora nos países situados na vanguarda do capitalismo (MARX, 1987). Os interesses imediatos e potenciais dos trabalhadores passaram a projetar uma perspectiva mais avançada do ponto de vista científico, filosófico, artístico, político e moral. O projeto ídeo-político do proletariado tornou-se o mais concreto, factível e harmonizado com as tendências conjunturais e universais do gênero humano. G. Lukács, por exemplo, parte dessa constatação para desenvolver alguma de suas análises mais acuradas sobre a luta de classes no século XX, principalmente nos aspectos filosóficos e literários (LUKÁCS, 1959; COUTINHO, 1972).

 

A concepção negativa de política de Chasin pressupõe a superioridade da perspectiva do proletariado em todos os campos referidos, exceto no campo moral. Se o complexo da política é negativo e caracteriza-se pela amoralidade, a “metapolítica” efetivada pelo proletariado, possuidora da mesma natureza essencial da política, será igualmente amoral, o que, evidentemente, “desmoraliza” a Revolução, pois aniquila o seu principal elemento subjetivo de atração. A abordagem marxiana é antagônica à abordagem de Chasin. Para Marx, a Revolução apenas se realiza pela decisão dos indivíduos de perseverarem em uma atitude ética, ou seja, em uma atitude de irem além da moral vigente, não de posicionarem-se aquém desta ou de rejeitarem qualquer moral. O Capital, de Marx, é também uma obra sobre moral e ética, na medida em que faz a crítica dos valores que fundamentam a propriedade privada dos meios de produção (por exemplo, o desvelamento do caráter injusto das trocas entre assalariados e capitalistas) e demonstra, pelo desvelamento da essência perversa da lógica societária imposta pelo capital, o quanto é limitada e anacrônica a moral vigente.

 

Os objetivos de Maquiavel como estadista e teórico eram a unidade política das cidades comerciais italianas e o consequente desenvolvimento de novas etapas do capitalismo naquela região do Mediterrâneo, na virada do século XV para o XVI. Em Portugal, Espanha, Inglaterra e França, entre outras nações europeias, a unidade territorial e a centralização política foram alcançadas por meio do Regime Absolutista, expressão institucional de uma mudança no equilíbrio de poder entre a nobreza e a monarquia. O monarca absoluto restaurou o poder social da nobreza em um período de crise do feudalismo e garantiu as condições gerais para a acumulação primitiva de capital, colocando os pressupostos para o capitalismo industrial (ANDERSON, 1995). Os meios, portanto, foram diferentes dos fins, se considerarmos como fins as dimensões progressistas do desenvolvimento das forças produtivas sob o Antigo Regime. Maquiavel estava certo em um ponto: em sua época, não existiam sujeitos sociais capazes de alavancar a modernidade sem apelar para amoralidade no universo da política. Entretanto, é evidente o anacronismo inscrito no movimento teórico de generalizar esse nexo para a totalidade dos sujeitos sociais de todos os momentos históricos.

 

O primeiro momento do capitalismo industrial só foi possível por meio de revoluções burguesas que se obrigaram a ampliar bastante a compatibilidade entre meios e fins no universo político. A realização dos objetivos ideológicos, políticos e econômicos da Revolução Francesa, por exemplo, foi compatível com uma série de atitude morais, como a abertura para a participação popular e o desenvolvimento da liberdade de expressão no interior das hostes revolucionárias. A Grande Revolução não usou luvas de pelica, foi impiedosa com seus inimigos, mas aliou, em vários momentos, o Terror da Guilhotina e a democracia de massas.

 

Toda moral pressupõe uma tensão entre meios e fins, mas não comporta um antagonismo entre esses dois elementos. Um cirurgião precisa cortar o paciente, os pais necessitam reprimir determinados comportamentos indesejados nos seus filhos, contudo, o corte e a repressão não podem ir além de determinado ponto sem negar os próprios objetivos dos processos nos quais estão inseridos. Por ser mais universal do que todas as classes do passado e do presente, o proletariado é o sujeito social mais capaz de agir moralmente no espaço político, de harmonizar meios e fins. Interessa-lhe a verdade, pois não tem nada a esconder e tudo precisa desvelar. Deseja a justiça, porque é o mais oprimido e só a igualdade radical o redime. Aspira à transparência no debate público e nas lutas entre as facções políticas, na medida em que sua vitória só pode advir do conflito amplo e aberto. É a única classe social obrigada pela história a ser ética “por interesse”.  

Conclusão

Acreditamos ser possível afirmar que a tese chasiniana sobre uma concepção negativa de política em Marx não é sustentável. Há no pensador alemão uma concepção negativa de Estado, mas esta não se estenda para a política em geral, a qual é percebida como um complexo social positivo, inerente às dimensões universais do gênero humano. A política seria uma dimensão composta pela integração entre as formas superiores de autoconsciência humana, que são arte, a ciência e a filosofia, e a práxis coletiva, uma potencialização da liberdade humana por meio da síntese entre a mais alta consciência de si do próprio gênero e a ação mais coerente em direção ao desenvolvimento infinito do ser social.

 

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SARTÓRIO Lúcia V. e ASSUNÇÃO Vânia Noeli F. A trajetória de J. Chasin: teoria e prática a serviço da revolução social (Entrevista com os Profs. Drs. Antonio Rago Filho e Ester Vaisman). In Verinotio (revista on-line de educação e ciências humanas), n. 9, nov. 2008 [Livro]. - [s.l.] : Disponível em: https://www.verinotio.org/conteudo/r9_14_entrevista_rago_ester.pdf, 2008.

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TONET I Democracia ou Liberdade? 2 edição. [Livro]. - Maceió : Edufal, 2004.

TRAGTENBERG M A Falência da Política [Livro]. - São Paulo : Unesp, 2009.

 

Fonte: https://pcbalagoas.blogspot.com.br/2012/10/a-concepcao-negativa-de-politica-de-j.html