Acumulação por Espoliação e Direitos Sociais: Crítica do Reformismo, de Pablo Biondi

04/08/2011 10:56

Acumulação por Espoliação e Direitos Sociais: Crítica do Reformismo

 

Pablo Biondi é bacharel em Direito e pós-graduando (Mestrado) em Direitos Humanos pela Universidade de São Paulo.

 

Resumo:

Nossa intenção com o presente artigo é utilizar o conceito de David Harvey de acumulação por espoliação (e suas implicações) para demonstrar que o Estado capitalista está profundamente comprometido com a dinâmica de reprodução de capital, não apenas como um guardião externo da ordem na produção e circulação de mercadorias, mas também como um agente econômico diretamente envolvido em tal processo. Modernamente, um dos mais drásticos resultados é o declínio dos direitos sociais em escala global, uma consequência do crescente apoio estatal ao capital financeiro (especialmente às suas formas fictícias). Este fato, ilustrado pela ruína do Estado de bem-estar social, coloca em questão as perspectivas reformistas de uma sociedade capitalista onde melhorias sociais para a classe trabalhadora seriam gradualmente garantidas e universalizadas.

Abstract:

Our intention with the present article is to utilize David Harvey’s concept of “accumulation by dispossession” (and its implications) to demonstrate that the capitalist state is deeply compromised with the dynamics of reproduction of capital, not just like an external guardian of order in production and circulation of commodities, but also like an economic agent directly involved in such process. Modernly, one of the most drastic results is the decline of social rights in global scale, a consequence of the growing state support to finance capital (especially to its fictitious forms). This fact, illustrated by the ruin of Welfare State, poses in question the reformist perspectives of a capitalist society where social improvements for working class would be gradually granted and universalized.

Palavras-chave: acumulação; espoliação; direitos; reformismo

Keywords: accumulation; dispossession; rights; reformism

 

Introdução

Com o presente artigo, pretendemos realizar uma discussão que abarque o conceito de acumulação por espoliação e entender suas relações com os direitos sociais (direitos à educação, à saúde, à previdência social e de todos os que, de um modo geral, dependem de um financiamento público). A mediação entre os temas, por sua vez, toca inevitavelmente o papel do Estado na sociedade capitalista, o que nos leva a enfrentar a questão. Rumando nesta direção, será possível enxergar os entraves objetivos a um projeto welfarista no capitalismo e a necessidade de uma alternativa radical ao modo de produção vigente. Esperamos então recolher substrato para uma crítica geral ao reformismo.

Para atingir os objetivos propostos, observaremos o seguinte itinerário: em primeiro lugar, haverá um tópico, mais extenso, para se investigar a concepção de acumulação por espoliação, bem como suas origens e modos de manifestação (o que nos conduzirá a subtemas como acumulação primitiva e capital fictício). Depois, ver-se-á, à luz do desenvolvimento anterior, como o fenômeno em comento concorre para o malogro dos direitos sociais na sociedade contemporânea, e em seguida, como o Estado desempenha um papel indispensável em processos como este, tendo em vista sua vinculação à estrutura social. Finalmente, invocaremos os rumos do Estado de bem-estar social como um elemento de comprovação da tese defendida, a qual será apresentada sob uma forma mais sintética na conclusão.

1. Acumulação primitiva, capital fictício e acumulação por espoliação

 Até que se possa chegar ao conceito de acumulação por espoliação de modo satisfatório, captando sua essência a partir de sua origem (que está em Marx), há de se seguir uma trilha lógica não muito curta. Resta-nos contar com uma pequena dose de paciência da parte do(a) leitor(a).

A dinâmica econômica capitalista caracteriza-se, historicamente, pela transformação do dinheiro em capital, pela extração do excedente do trabalho em favor do capital e pela obtenção de mais capital a partir da mais-valia extraída. Este é o movimento em que se perfaz a acumulação de capital. No entanto, tal movimento só é possível num cenário favorável, cuja constituição, dos pontos de vista histórico e mesmo lógico, antecede o capitalismo.

Capital é valor que se valoriza no processo capitalista de produção, em que se verifica a compra e venda da mercadoria força de trabalho. Esta mercadoria diferencia-se das demais por ser a única capaz de gerar valor. Ao adquirir, pelo contrato de trabalho, o direito de se apropriar do que o trabalhador produz em sua jornada, o capitalista despende apenas o necessário para repor a força de trabalho (e nisto consiste o salário). O valor produzido para além do que corresponde a esta reposição configura um mais valor, um excedente, o qual se denomina mais-valia. Eis a fonte primária do lucro capitalista, destacando que, embora surja na produção, esta mais-valia só se realiza na esfera da circulação, com o “salto mortal da mercadoria”.

Temos, portanto, que na base desta relação social chamada capital, ou deste processo a que se chama capital, encontra-se a compra e venda da força de trabalho. Tal operação mercantil, invariavelmente, depende da concentração de capital monetário nas mãos de uma classe, de um lado, e da despossessão de bens do lado de outra classe[1]. Em outras palavras, para que alguém compareça ao mercado para comprar força de trabalho e que alguém compareça para vendê-la, faz-se indispensável um contexto em que um expressivo contingente populacional se veja obrigado a trabalhar (sob pena de inanição) para quem detenha o dinheiro para a paga salarial e os meios de produção para o processo produtivo. E é assim que dinheiro e meios de produção assumem a forma social de capital.

Coloca-se aí a questão de como uns se consagraram à posição de possuidores enquanto outros foram condenados, à maneira de Adão, no mito bíblico, a ter de manter a própria existência (e a da burguesia, no caso) com o suor do próprio rosto. E esta referência bíblica, feita pelo próprio Marx, não é casual. Para que as principais classes do capitalismo tenham se formado, pressupõe-se uma acumulação de riquezas prévia para uma minoria e uma despossessão prévia para a maioria. Pressupõe-se, portanto, processos anteriores ao modo capitalista de produção, que dele não decorrem, e daí se falar numa acumulação primitiva, que “desempenha na economia política um papel análogo ao do pecado original na teologia[2]”.

Refutando a tese bisonha de que, no passado, uma elite laboriosa e parcimoniosa amealhou riquezas, enquanto que uma massa de vadios e pródigos teria desperdiçado suas oportunidades, Marx percebe que “a chamada acumulação primitiva é apenas o processo histórico que dissocia o trabalhador dos meios de produção”, e que “é considerada primitiva porque constitui a pré-história do capital e do modo de produção capitalista[3]”. Entretanto, esta dissociação se deu pela violência nua e crua, sendo inscrita “a sangue e fogo nos anais da humanidade”. Os camponeses foram expulsos de suas terras, as quais passaram a integrar o circuito mercantil, inicialmente, pela atividade rentista. Buscando a sobrevivência no meio urbano, amargaram condições de miséria, tornando-se sujeitos a compor as fileiras do exército industrial. Paralelamente, entrava em cena o capital dinheiro, herdeiro de formas antediluvianas do capital[4], aproveitando-se da dissolução dos séquitos feudais e da perda do controle das manufaturas pelas corporações. E foi decisiva a participação do Estado, rebaixando os salários e estendendo as jornadas de trabalho compulsoriamente, com legislações sanguinárias, além de ter promovido a expropriação colonial de inúmeras populações fora da Europa[5]. A força se apresentou como uma verdadeira “potência econômica”, como uma “parteira” da nova sociedade.

No tocante à Inglaterra (país paradigmático, onde o capitalismo havia atingido o maior grau de desenvolvimento até então), Marx observou quatro sistemas que funcionavam como meios propulsores de acumulação primitiva: o colonial, o das dívidas públicas, o moderno regime tributário e o protecionismo, sendo o primeiro o mais brutal de todos. Destes, teremos foco no sistema das dívidas públicas, e em virtude de sua ligação imediata com o capital fictício (conceito de nosso interesse para o presente estudo).

O mecanismo do endividamento público impulsionou o comércio marítimo e as guerras comerciais que caracterizaram o sistema colonial no período que se abre com as Grandes Navegações. A dívida estatal financiou os primeiros empreendimentos capitalistas de maior vulto[6], e Marx explica como ela promove a acumulação primitiva:

“A dívida pública converte-se numa das alavancas mais poderosas da acumulação primitiva. Como uma varinha de condão, ela dota o dinheiro de capacidade criadora, transformando-o assim em capital, sem ser necessário que seu dono se exponha aos aborrecimentos e riscos inseparáveis das aplicações industriais e mesmo usurárias. Os credores do Estado nada dão na realidade, pois a soma emprestada converte-se em títulos de dívida pública facilmente transferíveis, que continuam a funcionar em suas mãos como se fossem dinheiro. A dívida pública criou uma classe de capitalistas ociosos, enriqueceu, de improviso, os agentes financeiros que servem de intermediários entre o governo e a nação. As parcelas de sua emissão adquiridas pelos arrematantes de impostos, comerciantes e fabricantes particulares lhes proporcionam o serviço de um capital caído do céu. Mas, além de tudo isso, a dívida pública fez prosperar as sociedades anônimas, o comércio com os títulos negociáveis de toda a espécie, a agiotagem, em suma, o jogo de bolsa e a moderna bancocracia[7]”.

A expressão “serviço de um capital caído do céu” demonstra bem como a dívida pública permite uma acumulação inicial que nada tem que ver com a produção capitalista, e é precisamente aí que reside o caráter fictício do capital que se obtém com a renda dos títulos públicos. Lembremos que, para Marx, toda valorização que se realiza fora da esfera da produção é fictícia, uma vez que não decorre de uma dada quantidade de trabalho humano socialmente necessário para produzir uma mercadoria. É como se ela decorresse do éter, ou de um prodígio do Espírito Santo.

Ora, mas nem a dívida pública e nem os demais meios propulsores de acumulação primitiva restringem-se aos primórdios da trajetória do capitalismo. Eles aumentaram em número e se sofisticaram, fazendo-se presentes até os dias de hoje, cada vez mais relevantes para a dinâmica de reprodução do sistema do capital. É o que constata David Harvey:

 

“Uma reavaliação geral do papel contínuo e da persistência das práticas predatórias da acumulação ‘primitiva’ ou ‘original’ no âmbito da longa geografia histórica da acumulação do capital é por conseguinte muito necessária, como observaram recentemente vários comentadores. Como parece estranho qualificar de ‘primitivo’ ou ‘original’ um processo em andamento, substituirei a seguir esses termos pelo conceito de ‘acumulação por espoliação’[8]”.

A contribuição de Harvey é muito importante. Ao verificar que estes expedientes próprios do que Marx chamou de acumulação primitiva persistem atuais e sempre persistiram, o geógrafo inglês percebe uma instrumentalidade neste mecanismo, uma função sistêmica que se reitera ao longo do tempo. A categoria-chave para se pensar esta instrumentalidade é um problema que forçosamente acompanha o capitalismo em seu metabolismo econômico-social: a sobreacumulação. Ela remete a uma tendência do capitalismo de gerar “excedentes de capital (em termos de mercadoria, moeda e capacidade produtiva) e excedentes de força de trabalho lado a lado, sem que haja aparentemente uma maneira de conjugá-los lucrativamente[9]”.

Para sair do atoleiro da sobreacumulação, Harvey nota que o capital se socorre daquilo que ele denomina como ordenação espaço-temporal. Trata-se de um fenômeno largamente reproduzido no capitalismo global e que se apresenta como um meio de se lidar com as contradições do sistema. Pode-se, por exemplo, evitar o inconveniente de um capital que não encontra aplicação lucrativa por meio de uma realocação espacial. A globalização é prenhe destas situações, haja vista a busca por territórios com mão-de-obra mais barata para compensar o profit squeeze ou por novos mercados para se escoar os estoques, mitigando as dificuldades de demanda efetiva. Outro procedimento é postergar no tempo a expectativa de lucro, motivo pelo qual se mostram convidativos os investimentos de longo prazo e a valorização financeira.

Ocorre que nenhuma das contradições fundamentais que perpassam pelo modo de produção capitalista podem ser constantemente remanejadas ou indefinidamente procrastinadas. Em face de seus limites internos, a sociedade do capital depara-se com o imperativo de abraçar uma solução fora de si mesma. Seus anseios por uma acumulação interminável não cabem nela mesma, e por isso suas fronteiras devem ser estendidas em ritmo permanente. Daí a atuação do Estado e o papel da dominação imperialista, representando o marco da união entre as lógicas territorial e capitalista do poder[10].

É graças à intervenção estatal que o capital logra expandir sua área de domínio, e aí entra também a acumulação por espoliação. Se o problema central da sobreacumulação é a indisponibilidade de escoadouros com boas perspectivas de lucro, a solução que surge é a seguinte:

“O que a acumulação por espoliação faz é liberar um conjunto de ativos (incluindo força de trabalho) a custo muito baixo (e, em alguns casos, zero). O capital sobreacumulado pode apossar-se desses ativos e dar-lhes imediatamente um uso lucrativo. No caso da acumulação primitiva que Marx descreveu, isso significa tomar, digamos, a terra, cercá-la e expulsar a população residente para criar um proletariado sem terra, transferindo então a terra para a corrente principal privatizada da acumulação do capital. A privatização (da habitação social, das telecomunicações, do transporte, da água etc. na Inglaterra, por exemplo) tem aberto em anos recentes amplos campos a ser apropriados pelo capital sobreacumulado[11]”.

Eis um aspecto imprescindível para este nosso breve estudo. A apropriação de ativos situados fora da esfera mercantil se traduz, para o trabalhador, em restrição ao acesso a serviços públicos de bem-estar social. Em poucas palavras: ataque a direitos, como veremos no próximo item.

2. Impactos sobre os direitos sociais

David Harvey, em obra posterior, apresenta quatro aspectos da acumulação por espoliação: (i) privatização e mercadificação; (ii) financeirização[12]; (iii) administração e manipulação de crises; (iv) redistribuições via Estado. O segundo nos interessa mais de perto, por contemplar de maneira mais imediata os temas do capital fictício e dos direitos sociais. Ademais, se a mercadificação e a privatização de serviços públicos claramente minam os referidos direitos (saúde, educação, previdência social, habitação etc.), a mesma clareza não se coloca de modo imediato nos demais casos.

A financeirização da economia mundial é um fenômeno que se inicia nos anos 70, com a desregulamentação dos chamados mercados de capitais. Esta desregulamentação, por sua vez, é uma resposta ao enorme contingente de capital sobreacumulado oriundo do notável crescimento econômico do período em que vigeu o arranjo “fordista-keynesiano[13]” (os “anos dourados” do capitalismo). Desenvolvendo-se numa conjuntura de acumulação flexível, e fomentando ainda esta mesma conjuntura, o processo em comento inaugura um momento histórico em que a lógica financeira passa a presidir a reprodução econômica, sobretudo no que tange à valorização. De acordo com Leda Maria Paulani, inclusive,

“‘Dominância financeira da valorização’ afigura-se um termo mais adequado do que ‘dominância da valorização financeira’, pois enquanto o último refere-se a momentos ou fases na história do capitalismo em que a valorização rentista se exacerba e se sobrepõe à valorização produtiva de um modo insustentável no longo prazo, o primeiro diz respeito à etapa corrente do capitalismo, na qual a importância e a dimensão dos capitais e da valorização financeira, combinados à peculiar forma assumida pelo sistema monetário internacional, fazem com que a lógica da valorização financeira contamine também a esfera produtiva, gerando um novo modo de regulação adequado ao regime de acumulação financeira. As mudanças operadas pelo toyotismo vão nessa direção. A chamada ‘flexibilização do trabalho’, por exemplo, permite, entre outros: utilizar mais intensamente o valor de uso da força de trabalho; repartir com o trabalho os riscos do capital, flexibilizando o próprio capital; em conjunto com a customização da produção, reduzir ao mínimo o custo de carregamento de estoques de matérias-primas e bens intermediários (que se torna um desperdício imperdoável num contexto de taxas de juros positivas e elevadas). Todas essas mudanças têm que ver com o contexto no qual hoje deve se dar a valorização produtiva, qual seja: o contexto rentista e curto-prazista da valorização financeira[14]”.

O aprofundamento da financeirização, este verdadeiro refúgio para o capital excedente que não vê perspectivas lucrativas na produção, foi tamanho que não coube no interior das fronteiras do sistema bancário. Houve uma “desintermediação” que permitiu aos grandes grupos capitalistas (e fundos de pensão) colocar títulos diretamente nos mercados financeiros. Rumou-se para uma hipertrofia da esfera destas operações, a ponto de hoje se verificar uma situação em que o volume dos ativos equivale a quatro vezes o valor do PIB mundial. A rentabilidade célere e flexível atrai os capitais, de sorte que uma empresa como a Sadia, antes de quebrar, aplicava mais da metade de seus investimentos não na produção de alimentos, e sim na especulação com o mercado de câmbio. A empresa estadunidense Enron, por sua vez, utilizava seus lucros para criar empresas-fantasmas que comprassem suas próprias ações, sinalizando para os investidores que seus ativos eram dignos de confiança. A descoberta gerou um escândalo e a subsequente falência da companhia, com todos os imagináveis desdobramentos econômicos e sociais. No caso da Enron, houve ainda um vasto prejuízo nos direitos de pensão, representando um dano direto aos trabalhadores. Aliás, os fundos de pensão protagonizam uma série de episódios em que o risco da atividade financeira se transfere parcial ou integralmente para os segurados. Eis o traço distintivo dos modernos sistemas previdenciários privados de capitalização, que vem substituindo os sistemas públicos de repartição simples com matriz welfarista[15].

Com a financeirização, o capital fictício se propaga em larga escala, e o mercado acionário ilustra bem esta situação. Os dividendos são uma parte do lucro que remuneram os acionistas que investiram, e não há nada de especulativo nesta atividade. Ocorre que a busca por ações, na imensa maioria das vezes, não tem por objetivo financiar algum empreendimento produtivo. Visa-se apenas à possibilidade de vender o ativo a preço mais caro do que o de compra conforme as expectativas, independentemente do desempenho econômico real, sendo que é precisamente esta a raiz da formação de bolhas. Formam-se, então, montanhas de capital fictício, que drenam o produto social até que uma grande desvalorização de ativos ponha a nu toda a farsa[16].

Não obstante os desastres, o modelo segue firme, principalmente por contar com o respaldo estatal. Às quebradeiras, segue-se a intervenção socorrista do Estado, valendo-se do tesouro nacional para cobrir os rombos financeiros privados. E como não se pode simplesmente imprimir moeda (as consequências deletérias são inevitáveis, a começar pela inflação), os governos realizam drásticos ajustes fiscais (leia-se: cortes na aera social) para sinalizar ao mercado que são “responsáveis” em suas políticas, que merecem receber novos empréstimos. Assim, apazigua-se temporariamente a intempérie no mundo das finanças, enquanto a classe trabalhadora se vê ameaçada por medidas de arrocho salarial (destacadamente no funcionalismo), restrições a direitos previdenciários, desmonte nos serviços públicos etc. A experiência grega atual fornece uma clara demonstração do que descrevemos.

Faz-se evidente, portanto, que a financeirização é uma modalidade de acumulação por espoliação, tendo no Estado um garante das aventuras especulativas, ainda que em detrimento das necessidades da população. Isto nos leva a refletir sobre o papel econômico do Estado no capitalismo contemporâneo. Para Francisco de Oliveira, o fundo público “é agora um ex-ante das condições de reprodução de cada capital particular e das condições de vida, em lugar de seu caráter ex-post, típico do capitalismo concorrencial”. Ele é “a referência pressuposta principal, que no jargão de hoje sinaliza as possibilidades de reprodução”, sendo que “do lado da reprodução da força de trabalho, a ascensão do financiamento público não foi menos importante[17]”.

Caminhando na mesma direção, Nicos Poulantzas indica uma “transformação do espaço-processo econômico que modifica os pontos de impacto do Estado e faz com que ele opere cada vez mais no núcleo da reprodução do capital”, ao mesmo tempo em que “o espaço do Estado se expande e se modifica na medida em que setores inteiros de valorização do capital e de reprodução da força de trabalho (capital público e nacionalizado entre outros) se inserem daí em diante no Estado[18]”.

Uma vez que o Estado coloca-se como pressuposto tanto da reprodução do capital como da reprodução da força de trabalho, abre-se uma disputa em torno da hegemonia sobre o fundo público. Vale frisar que, quando se fala em disputa, o termo envolve muito mais as diferentes frações da burguesia do que a classe trabalhadora. Tanto é assim que, no que diz respeito ao capital financeiro, o aparato estatal não possui nem mesmo uma autonomia relativa, tal é a sua imprescindibilidade enquanto garante do sistema de crédito como um todo. O caráter burguês do Estado se apresenta de modo absoluto e imediato, e não em última instância[19].

Seja como for, tem-se que a real proposta do neoliberalismo não é tirar o Estado do jogo, mas sim manter o fundo público como pressuposto “apenas”[20] para o capital, ou o máximo possível para o capital, segundo nosso entendimento. Afinal,

“É típico da reação tatcherista e reaganiana o ataque aos gastos sociais públicos que intervêm na nova determinação das relações sociais de produção, enquanto o fundo público aprofunda seu lugar como pressuposto do capital; veja-se a irredutibilidade da dívida pública nos grandes países capitalistas, financiando as frentes de ponta da terceira revolução industrial[21]”.

O que se vê no contexto da financeirização é precisamente o triunfo do projeto descrito. O referido fenômeno notabiliza-se por uma crescente transferência de recursos fiscais, antes destinados a saúde, educação, previdência etc., para a acumulação de capital. Trata-se, com isso, de se minar a efetividade dos direitos sociais em sua base material, que é o orçamento do Estado. No âmbito das finanças, este movimento é inequívoco. O serviço da dívida pública é um dos maiores (talvez o maior) mecanismo de transferência de recursos públicos para capitais particulares, em detrimento da universalização dos serviços à população. Dado o caráter pretensamente mais seguro do título da dívida pública (que se deve ao poder estatal de tributar a sociedade e fazer valer seu tesouro), o capital financeiro adquire estes bens para negociá-los no mercado de obrigações, contando ainda com o apoio da taxa de juros, que lhes provê uma renda garantida. Deste modo, consolida-se uma classe rentista, que vive da detenção de ativos desta natureza, especializando-se no papel de credor do Estado para abocanhar quinhões consideráveis da tributação[22]. No Brasil, para se ter uma noção, gasta-se mais de 40% do orçamento da União com o pagamento de parcelas da dívida e de sua rolagem. Supera-se até mesmo as despesas com a Previdência Social, o que deixa claro qual é o verdadeiro fator de endividamento público. Enquanto uma camada privilegiada obtém renda fácil com transações financeiras envolvendo ativos públicos, a imensa maioria do povo padece com as restrições do fator previdenciário, com a deficiência da estrutura hospitalar, com o baixíssimo índice de acesso ao ensino superior etc.

3. O Estado: garante da reprodução e da acumulação de capital

A discussão que ora travamos remonta à natureza do Estado no modo de produção capitalista, e tratar desta natureza é fundamental para uma análise dos erros cometidos pelo reformismo. Tangenciaremos o assunto de modo sucinto, dados os limites em que se circunscreve nossa pesquisa.

No que tange ao Estado, o marxismo é um verdadeiro divisor de águas. Assim como compreendeu a luta de classes como o motor da história e o conflito capital-trabalho como a relação social específica que molda a modernidade em última instância, viu no Estado a cristalização do domínio de classe. Onde o pensamento acrítico enxerga paz e harmonia, a dialética de Marx denuncia contradições fundamentais. Longe de ser o produto do acordo de indivíduos que se entregam a um contrato social ou o apogeu da razão, o Estado é fator de subjugação das classes laboriosas e de reiteração dos pilares sociais.

Na maior parte dos autores marxistas, passando por figuras tão diferentes como Bukharin, Gramsci e Althusser, pode-se dizer que predomina a concepção de que o Estado constitui um conjunto de aparelhos que desempenham funções repressivas (exército, polícia, tribunais etc.) e ideológicas (escola, mídia, igreja etc.)[23]. A dominação política da burguesia se exerceria pela força ou pelo consenso, sendo que o consenso é sempre escudado na força. Ao fim da mansuetude das massas, segue-se sempre o início da violência pública organizada contra os atos subversivos. Assim, o Estado compreende as linhas de defesa do modo de produção, seja tutelando contratos ou reprimindo ameaças à propriedade, seja ganhando corações e mentes para a paz social. Sem esta participação estatal, o edifício que abriga a extração de mais-valia da classe trabalhadora não se sustenta. Não haveria acumulação possível.

A dicotomia repressão-ideologia nos referidos pensadores, sobretudo em Althusser, parece ter a pretensão de esgotar o fenômeno estatal, e Nicos Poulantzas é um dos primeiros a ir além dessa concepção. Salienta o teórico de origem grega que leituras como a althusseriana reduzem o Estado a uma mistura de vigilante paciente com disseminador de mentiras. Não se trata de negar, de modo algum, o papel da força e do consenso, mas sim de lançar luz sobre a função econômica direta do Estado enquanto agente indispensável ao processo de reprodução do capital. Seria necessário, assim, falar também em aparelhos econômicos de Estado[24], se for o caso de se preservar as proposições althusserianas.

Ao considerarmos uma função econômica do Estado, sobretudo no tocante aos expedientes de acumulação por espoliação mencionados nos primeiros tópicos (e nossa passagem pelo tema do serviço da dívida pública só faz respaldar esse entendimento), tem-se que o caráter de classe do Estado se acentua, salta ainda mais aos olhos. À crença reformista de que o aparato estatal capitalista pode ser apropriado como uma coisa ou preenchido por qualquer conteúdo como se fosse uma garrafa vazia, opõe-se um novo obstáculo. O aparato estatal não está carregado apenas de uma maquinaria repressiva e ideológica, mas suas instituições estão umbilicalmente ligadas ao modo de produção. Os fundamentos materiais que lhe dão vida são peças sem as quais o capitalismo contemporâneo não pode subsistir, como o fundo público, o banco central, o sistema tributário etc. E sendo tais peças tão importantes, foram blindadas por uma reprodução econômica hegemonizada pelo poder financeiro, permanecendo inacessíveis à política institucional. Se vislumbrarmos os governos latino-americanos que ascenderam em contextos de fervor popular, é dizer, num momento em que a luta de classes indicava uma relação de forças favorável a transformações mais profundas, o que vemos é um movimento progressista de reformas mais ou menos limitadas que, no entanto, mantém intocado o serviço da dívida pública. O abastecimento público do mercado financeiro, principal suporte da globalização capitalista, segue firme independentemente das correntes políticas que passam pelas presidências e casas parlamentares.

A economia capitalista, portanto, mostra-se cada vez menos “domesticável”. Com o capital financeiro em cena, já notamos com Harvey que a autonomia relativa do Estado perante as frações da burguesia se perde, havendo um sequestro da máquina pública por interesses particularíssimos. Se a sua destinação a um bem comum sempre foi falaciosa, hoje ela o é ainda mais, pois somente alguns setores privilegiados das classes dominantes podem dar-se ao luxo de esquivar-se da produção e viver do mais puro rentismo. Mas disto não se deve concluir que a hegemonia dos capitalistas monetários sobre os industriais é absoluta. Importa frisar que o predomínio completo de uma facção do capital sobre outra geraria uma acumulação desequilibrada. Produção e finança são interdependentes.

De qualquer maneira, o problema da financeirização está na ordem do dia, haja vista a fragilidade (e não mera instabilidade) econômica que instaurou pelo mundo. Para confrontá-lo, o reformismo prende-se às aparências. Diante do exacerbado poder das finanças, do rentismo e dos desvarios do capital fictício, a resposta imediata é reviver o status quo ante. A culpa recai sobre o capital financeiro, uma forma insegura e parasitária, enquanto que o capital produtivo, como seu próprio nome parece sugerir, seria puro e benévolo. Uma nostalgia do fordismo-keynesianismo faz supor que basta reatar o elo rompido dos grilhões que aprisionavam a finança para que a marcha do bem-estar social retome o rumo interrompido.

Em verdade, cumpre esclarecer o seguinte: capital é sempre capital, nunca deixa de ser valor que busca se valorizar. As diferenças dos espaços de valorização trazem consigo suas peculiaridades, mas a essência da persecução do lucro permanece. Aliás, a finança é inerente ao capitalismo, é um corolário da produção capitalista (vide a imprescindibilidade de um sistema de crédito, por exemplo). Portanto, a ideia de um capitalismo pautado puramente pela produção é puramente cerebrina, e pressupõe a negação do sistema em si, pois a possibilidade do dinheiro se converter em capital já aponta para a forma financeira. Some-se a isto o caráter do capitalismo: o que importa é a expansão do valor, e não a produção de coisas úteis. O produto é um mero veículo do valor na produção capitalista, é a carcaça necessária ao consumo que permite a realização do lucro, único objetivo do empresário. Neste sentido, “burlar” a produção apresenta-se como um “atalho” extremamente desejável para os detentores do capital. Saltar de D – M – D’ para D – D’ é a tendência do capital em si, é o movimento que corresponde à sua íntima natureza de processo de valorização do valor e de maximização do lucro. E se o financista merece o anátema por extrair riqueza da produção como um todo, melhor juízo não merece o industrial, que se alimenta do trabalho alheio.

Ora, sendo o Estado o conjunto dos aparelhos repressivos, ideológicos e econômicos a serviço da reprodução do capital e da sociedade burguesa como um todo, o que lhe cabe, essencialmente, é tutelar o processo de valorização. Se esta valorização é produtiva ou financeira, real ou fictícia, pouco importa. Não há que se imaginar, assim, um Estado paladino da indústria que caminha na contramão do próprio movimento do valor, que se choca com a tendência de um capital que enfim encontrou a liberdade que o faz corresponder a seu conceito de modo mais exato e direto. O que se vê é precisamente o contrário, isto é, o fomento público às aventuras especulativas. Concorrendo para esta e outras formas de acumulação por espoliação (e para a acumulação ordinária, como já vimos), o Estado perfaz-se enquanto garante das relações de produção em vigor. Sendo elas capitalistas, a tarefa consiste em zelar, inclusive ativamente, pela reprodução do capital (expansão contínua do valor) e por todo o ciclo de acumulação.

Sem levar em conta todas essas determinações, o reformismo vê apenas um período de refluxo na política. Ignora que a busca pelo valor no capitalismo aspira ao infinito, encontrando no Estado o mais apto instrumento para a manutenção e a expansão dos lucros. O que está em curso é muito mais que um refluxo: é a realização plena de uma formação social movida pelo valor em detrimento do valor de uso dos produtos. Eis o obstáculo estrutural a qualquer programa que se restrinja a reformas sociais, quer para implementá-las, quer para simplesmente mantê-las em longo prazo.

Acrescente-se ainda a perspectiva de István Mészáros, para quem o capital se define, em última análise, como uma “forma incontrolável de controle sociometabólico”. Segundo o filósofo húngaro,

“A razão principal por que este sistema forçosamente escapa a um significativo grau de controle humano é precisamente o fato de ter, ele próprio, surgido no curso da história como uma poderosa – na verdade, até o presente, de longe a mais poderosa – estrutura “totalizadora” de controle à qual tudo o mais, inclusive seres humanos, deve-se ajustar, e assim provar sua ‘viabilidade produtiva’, ou perecer, caso não consiga se adaptar. Não se pode imaginar um sistema de controle mais inexoravelmente absorvente – e, neste importante sentido, ‘totalitário’ – do que o sistema do capital globalmente dominante, que sujeita cegamente aos mesmos imperativos a questão da saúde e a do comércio, a educação e a agricultura, a arte e a indústria manufatureira, que implacavelmente sobrepõe a tudo seus próprios critérios de viabilidade, desde as menores unidades de seu ‘microcosmo’ até as mais gigantescas empresas transnacionais, desde as mais íntimas relações pessoais aos mais complexos processos de tomada de decisão dos vastos monopólios industriais, sempre a favor dos fortes e contra os fracos[25]”.

4. Welfare State: exceção na sociedade do capital

Antes de nos encaminharmos para a conclusão, cumpre analisar muito brevemente a experiência do Welfare State, já que ela pode ser pensada como o apogeu dos direitos sociais em toda a história capitalista. Do ponto de vista ideológico, o Estado de bem-estar social se projeta como a possibilidade de um lugar ao sol para todos dentro do capitalismo, como um meio de satisfação das necessidades humanas que prescindiria do fim das classes sociais. Veremos que o padrão welfarista nunca se universalizou e nunca teve tal pretensão, constituindo uma exceção no tempo e no espaço.

Deve-se levar em conta que o Estado de bem-estar social restringiu-se fundamentalmente à Europa ocidental, e não durou mais que 30 anos. E mesmo no continente europeu não houve uma completa cobertura da população, haja vista a exclusão das mulheres, dos jovens e dos migrantes[26]. No mais, a conquista/concessão[27] de direitos sociais em tal proporção só foi possível por uma conjuntura muito peculiar.

O modelo do Welfare desponta num contexto em que o pacto fordista-keynesiano se impõe como a melhor saída para um sistema que não poderia se dar ao luxo de falhar. Terminada a Segunda Guerra Mundial, os trabalhadores não estavam dispostos a simplesmente deixar as trincheiras e voltar para as fábricas. Lutaram por melhores condições de existência, ocasionando uma vaga revolucionária que assombrou boa parte da burguesia mediterrânea (na França, na Itália e na Grécia). Esta radicalização do movimento operário era particularmente gravosa num mundo em que a União Soviética saía fortalecida politicamente do confronto bélico. Se a mão invisível do mercado conduzisse a sociedade capitalista a um novo 1929, a classe burguesa poderia não mais deter a ofensiva anticapitalista (viesse ela das forças degeneradas pelo burocratismo stalinista ou das forças verdadeiramente comprometidas com o socialismo científico da tradição marxista).

Foi assim que a burguesia convocou seus representantes no aparelho estatal e as direções colaboracionistas da classe trabalhadora (social-democratas e stalinistas, agora aliados indiretos da burguesia por sua política de “coexistência pacífica” com o capital) para negociar um regime de acumulação capaz de, a um só tempo, levantar uma economia em ruínas e assegurar que o movimento operário não ultrapassaria o horizonte do reformismo. O resultado, por óbvio, foi a preservação do capitalismo, embora com bases pouco usuais, a começar pela notável expansão do salário indireto (responsável pelo consumo de massa de bens duráveis, que não foi senão o motor do fordismo). No mais, foram decisivas as condições objetivas para uma inédita concertação política e econômica entre os países capitalistas, sendo o controle ao fluxo de capitais a maior evidência. Isto permitiu uma sujeição das finanças à produção, quadro este que se inverteu com as desregulamentações dos anos 70 e as políticas estadunidenses sobre o dólar e a taxa de juros. Uma experiência como essa só foi possível mediante todas as peculiaridades conjunturais descritas.

No entanto, as peculiaridades do Estado de bem-estar social não devem nos conduzir a enganos quanto à sua natureza. Francisco de Oliveira, a título ilustrativo, entende que os bens e serviços que constituem o salário indireto funcionaram “como antimercadorias sociais, pois sua finalidade não é a de gerar lucros, nem mediante sua ação dá-se extração da mais-valia[28]”. Isto porque as políticas intervencionistas de regulação do consumo fazem com que a produção de uma série de bens e serviços seja orientada a partir do próprio salário como parâmetro. Para o autor, haveria uma tendência à desmercantilização da força de trabalho pelo peso crescente do salário indireto (composto pelas “antimercadorias sociais”) na sua reprodução. Eis o motivo pelo qual o fundo público seria “o antivalor, menos no sentido de que o sistema não mais produz valor, e mais no sentido de que os pressupostos da reprodução do valor contêm, em si mesmos, os elementos mais fundamentais de sua negação[29]”.

Contudo, o próprio sociólogo coloca na introdução uma crítica interessante que foi feita à sua teoria: os recursos fiscais que integram os fundos públicos, suportes do antivalor, derivam dos tributos pagos pela povo em geral, predominantemente composto por trabalhadores (o que se reforça nos modelos de tributação regressiva). Esta crítica, portanto, permite questionar a propagandeada natureza redistributiva do Welfare, ou mesmo indagar sobre um acréscimo na exploração da classe trabalhadora em nível global. E para além deste apontamento, cabe destacar que a essência do caráter mercantil da força de trabalho na sociedade capitalista, ou seja, sua qualidade de objeto de troca mediante paga em dinheiro, configura-se como uma barreira intransponível dentro desta totalidade de relações sociais, integrando, em verdade, a essência das relações de produção burguesas. Os serviços públicos, em que pesem seu caráter progressista (sobretudo quando impulsionados por reivindicações populares), não são mais que um aporte limitado para que os capitalistas economizem nos seus dispêndios com capital variável.

Ademais, os direitos sociais como um todo se inserem nos marcos de um compromisso entre as classes, por meio do qual se fortalece a hegemonia burguesa. Como afirma Poulantzas,

“Todas as disposições tomadas pelo Estado capitalista, mesmo as impostas pelas massas populares, são finalmente e a longo prazo inseridas numa estratégia em favor do capital ou compatível com sua reprodução ampliada. É levando em conta a relação de forças com as classes dominadas e suas resistências, que o Estado leva a cabo as medidas essenciais em favor da acumulação do capital e elabora-as de maneira política, ou seja, de maneira tal que elas possam, por meio de certas concessões às classes dominadas (as conquistas populares), garantir a reprodução da hegemonia de classe e da dominação do conjunto da burguesia sobre as massas populares. (...) Enfim a assunção pelo próprio Estado de certas reivindicações materiais populares que podem encobrir, no momento em que são impostas, uma significação bastante radical (ensino público livre e gratuito, segurança social, assistência-desemprego etc.), pode a longo termo favorecer a hegemonia de classe. Essas ‘conquistas populares’ podem, quando de uma mudança da relação de forças, ser progressivamente despojadas de seu conteúdo e caracteres iniciais, e isso de maneira oblíqua e dissimulada[30]”.

Este mecanismo conciliatório, vale dizer, dura até que alguma crise do capital dê ensejo a um novo ajuste, numa tentativa de se transferir os prejuízos da atividade econômica para o campo do trabalho[31]. Somente numa sociedade emancipada, livre do controle metabólico do capital, é que se poderá usufruir de uma universalização verdadeira e duradoura da riqueza produzida pelo trabalho, desacorrentada dos imperativos da acumulação.

A maior prova das limitações do Welfare State, se quisermos, é a história. Tão logo que este modelo deixou de corresponder positivamente à dinâmica da valorização e da acumulação, caiu por terra. Não se trata, pois, de ajustar o capital a determinados compromissos, pois é ele o senhor da reprodução social no presente modo de produção. O que não concorre para valorizar o valor ao máximo não lhe serve, daí a necessidade radical de se romper com o capital, de se revolucionar os pilares da sociedade existente. Às pusilânimes investidas reformistas, opõe-se historicamente o audacioso projeto do socialismo científico e da destruição do Estado burguês. Sua marca distintiva é a reinvenção da sociabilidade estrutural, um novo modo de se produzir a vida coletiva, em que a livre associação dos trabalhadores e trabalhadoras comanda uma produção subordinada às necessidades humanas[32].

Conclusão

Por todo o exposto, concluímos que a acumulação por espoliação, que nada mais é do que a persistência da chamada acumulação primitiva no tempo, traz consigo expedientes econômicos e extra-econômicos, em geral promovidos pela ação estatal, que resultam em lesão direta às classes dominadas. Tais expedientes são necessários para um sistema guiado por uma valorização que se pretende prolongável em caráter indefinido, e que precisa internalizar novos espaços para promover mais expansão do valor (principalmente sob as pressões do capital sobreacumulado). O serviço da dívida pública é bastante ilustrativo quanto a isso: consiste no uso de recursos oriundos de toda a população como garantia da especulação financeira (válvula de escape de um capital que rejeita os lucros magros da esfera produtiva) e como cabo de transmissão de riqueza para uma camada rentista, à revelia do financiamento de direitos sociais. Para uma ínfima minoria, o capital fictício gerado traz delícias e volúpias. Para a imensa maioria, resta o estado de escassez. E o que enseja toda essa dinâmica é o governo do capital sobre a reprodução social, ou, em outras palavras, é a própria força motriz e organizativa do modo de produção. Aí entra o Estado como garante geral, valendo-se da repressão, da ideologia e da intervenção econômica direta. Seu agir mostra-se condicionado aos imperativos do capital, o que ajuda a explicar por que mesmo uma experiência político-econômica limitada como o Welfare se apresenta, historicamente, como excepcional. Não obstante, as mais diversas formas de reformismo seguem apostando num conjunto de aparelhos cuja ocupação essencial é favorecer as relações de produção capitalistas na sua reprodução, seja qual for o governo. Em nossa sintética pesquisa, tentamos destacar o apoio do Estado à acumulação por espoliação em particular como um elemento sintomático de seu caráter de classe, que em maior ou menor grau passa despercebido pelos reformistas.

O acesso realmente universal e definitivo à saúde, educação, habitação, previdência social e a outros bens da vida depende da derrocada do capital e da máquina estatal burguesa, sua parceira inseparável. Só assim a economia pode ser colocada a serviço da humanidade, invertendo-se a lógica social que estrutura a sociedade burguesa. A emancipação das massas não depende da melhora da sociedade existente; depende da sua superação, do rearranjo revolucionário de suas bases materiais organizativas.


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Notas:

[1] A classe trabalhadora na sociedade capitalista é uma classe “livre” em dois sentidos: (i) encontra-se despojada dos meios de produção (e dos vínculos com a gleba e o senhor); (ii) participa do processo produtivo por vontade própria, e não pela coerção política e direta que caracteriza, por exemplo, o trabalho servil e a escravatura. Em verdade, trata-se de uma coerção econômica pelo estado de necessidade, que se acoberta por um contrato celebrado entre dois indivíduos formalmente livres e iguais, ambos proprietários de mercadorias. O resultado é uma inovação na esfera mercantil, antes pautada apenas pela troca simples: “O antigo dono do dinheiro marcha agora à frente, como capitalista; segue-o o proprietário da força de trabalho, como seu trabalhador. O primeiro, com um ar importante, sorriso velhaco e ávido de negócios; o segundo, tímido, contrafeito, como alguém que vendeu sua própria pele e apenas espera ser esfolado” (MARX, Karl. O capital: crítica da economia política: livro I, vol. I, 26a. ed.. Traduzido por Reginaldo Sant’Anna. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008, p. 206).

[2] MARX, Karl. O capital: crítica da economia política: livro II, vol. I, 23a. ed.. Traduzido por Reginaldo Sant’Anna. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009, p. 827.

[3] MARX, Op. Cit., 2009, p. 828.

[4] “A Idade Média fornecera