Entrevista com Florestan Fernandes

 

 

ENTREVISTA FLORESTAN FERNANDES: Engraxate, balconista, vendedor, ele superou as dificuldades da origem humilde e se tornou um dos intelectuais mais respeitados do País. Neste depoimento, sua vida, opiniões e militância por PAULO DE TARSO VENCESLAU


Oito horas de gravação passaram como se fossem segundos. Foi o tempo que durou a entrevista com o mestre e companheiro Florestan Fernandes para Teoria & Debate. As respostas são sempre precedidas de explicações capazes de situar os mais leigos no contexto histórico ou teórico necessário para seu bom entendimento. Tudo feito com muita humildade e simplicidade. Pode-se discordar de sua opinião, mas ninguém é capaz de questionar o conteúdo de suas observações.

Trabalhador intelectual que estudava nas praças públicas e nos bondes de São Paulo, arrimo de família, o professor Florestan desenvolveu uma carreira brilhante. O menino de rua virou doutor respeitado internacionalmente pelas obras e pesquisas realizadas no campo das Ciências Sociais. O intelectual engajou-se na política, mas não permitiu que seu trabalho fosse desvirtuado por sua opção ideológica.

Militante trotskista, foi convidado a dirigir uma organização guerrilheira durante a ditadura militar. Recusou educadamente, após longa explanação sobre a inconveniência da proposta de se partir para a luta armada na conjuntura daquela época. Sua trincheira era a universidade onde resistiu à repressão, mesmo quando ameaçado e preso. Reeleito deputado federal no ano passado, Florestan expõe aqui dúvidas e críticas que certamente contribuirão para fortalecer o Partido dos Trabalhadores.


Professor, diante da crise que vive hoje o socialismo, o que precisaria ser revisto?

Florestan Fernandes — Os processos históricos precisam ser aceitos com objetividade. Não adianta nada nós pretendermos moldar a sociedade de acordo com as ideologias, com as utopias, e muito menos com aquilo que cada pessoa considera como sendo o mais importante, o mais desejado. Os agentes históricos, ao conquistarem sua auto-emancipação coletiva, escolherão os rumos e a forma da nova sociedade. Eu sou socialista, portanto acredito que nós vamos construir uma sociedade socialista, que deverá começar com uma democracia da maioria, atingir a igualdade com liberdade e desenvolver todos os elementos fundamentais da personalidade humana. Trata-se de um socialismo que defende um humanismo — uma síntese, uma superação de todas as outras formas de humanismo anteriores. Isto, nos anos 60, foi polêmico: os agrupamentos marxistas-leninistas refutavam qualquer vinculação do marxismo com o humanismo. Essa polêmica não passou por Marx, Engels e nem pelos principais teóricos do marxismo, até Gramsci. Basta ler os Ensaios econômicos e filosóficos de Marx para ver qual é o nível de profundidade do marxismo. Se o movimento comunista é visto como um movimento social que visa alterar o atual estado de coisas e extinguir a alienação, a brutalização, a objetificação dos trabalhadores, então ele é um movimento por um novo humanismo. Não um humanismo espiritualista ou retórico, mas daqueles que acreditam que os trabalhadores podem ser agentes históricos; construir os padrões de vida e moralidade dentro dos quais vão viver, gerir a sociedade de uma maneira igualitária. Isso define um humanismo em um nível profundo, liga o indivíduo à sua personalidade, cultura, sociedade e história. Não é apenas uma manifestação filosófica, metafísica e muito menos religiosa: é um humanismo que pretende extinguir os fatores que impedem o total desenvolvimento da pessoa.


O senhor teve alguma formação religiosa?

Tive. A minha família é de origem portuguesa e é difícil divorciar o português do catolicismo, especialmente portugueses do Norte. Essa área de Portugal ficou vinculada à dominação católica mais conservadora que se possa imaginar. O clero daquela região é muito conservador.


Sua mãe era portuguesa?

Ela é portuguesa. Está viva, com mais de 92 anos. Apesar de não ir à missa com freqüência, ela sempre cumpria as obrigações religiosas e me forçou a fazer o catecismo na igreja do Cambuci e a primeira comunhão. Mas, na medida em que fui aprofundando o estudo de ciências sociais, fui me afastando da religião. Além disso, minha vida não facilitava o crescimento da fé, porque sofri muitas privações na infância. Tive de começar a trabalhar com 6 anos e ficava afastado de casa de oito até dez horas por dia.


Que trabalhos eram esses?

Com 6 anos, eu só podia fazer pequenas tarefas, como, por exemplo, limpar as costas de fregueses em barbearias para ganhar gorjetas. Uma vez uma senhora me pediu para transportar uma caixa de mangas da Estação da Luz até a rua Treze de Maio. Imagine se há humanidade ou sentido cristão nesse tipo de trabalho! Ganhei quatrocentos réis para fazer isso. Eu fazia todo tipo de coisa até descobrir que ser engraxate era uma coisa boa para mim. Trabalhei em açougue, marcenaria, alfaiataria, padaria, restaurante, bar, até que fui trabalhar na Novoterápica. Nesse ínterim consegui acabar o curso de madureza — não havia terminado o primário. O curso primário eu fiz um pouco em uma escola privada na avenida Celso Garcia, perto da casa da minha madrinha. Depois minha mãe me tirou de lá e fui para o Grupo Escolar Maria José, onde estudei até o 3º ano.


O senhor era arrimo de família?

Digamos que no início eu repartia com minha mãe a obrigação de sustentar o lar. Ela tinha dois filhos: eu e uma menina, que morreu com 5 anos. Costumo dizer que nós vivíamos ao léu, pois podíamos estar na Bela Vista, no Bosque da Saúde, na Penha ou no Brás. Nós morávamos em pequenos cortiços ou em porões e quando o aluguel subia éramos obrigados a abandonar o lugar em que estávamos. Nós éramos tocados pela vida, de uma maneira dura. Minha mãe trabalhou como doméstica e depois como lavadeira. Mais tarde, quando tinha 14 anos, me tornei arrimo. A nossa vida era difícil. Depois de algum tempo, fui morar com um amigo da enteada de minha madrinha: a dona da casa chamava-se dona Vilma de Castro. O marido dela, José de Castro Manso Preto. Quando souberam que eu só comia sanduíches e tomava leite, ou então ia comer em restaurante de comida chinesa, que naquela época era a mais barata que havia em São Paulo, me chamaram para jantar e exigiram que comesse na casa deles. Eles moravam na avenida Celso Garcia, no antigo número 141. Para mim era fácil, porque ali pegava o bonde para o Bom Retiro. Eu descia numa rua que dava direto na alameda Nothmann e dali seguia para o Ginásio Riachuelo, onde em três anos fiz o equivalente a sete anos de estudos. Nessa época, fui vender artigos dentários. Passei, então, a ter liberdade para freqüentar o curso de ciências sociais da Faculdade de Filosofia, na praça da República.


O senhor tinha quantos anos?

Dezessete anos e meio. Com o madureza, eliminei todo o atraso e fui o quinto colocado entre os estudantes aprovados no exame para a faculdade.


A que o senhor atribui esta performance?

Eu nunca parei de estudar. A minha mãe teve um companheiro que se chamava João de Carvalho, que tinha vários livros. E eu, na casa da minha madrinha, aprendi a valorizar a cultura. Juntando essas duas coisas à minha curiosidade, acabei me tornando um autodidata.


Mas em que hora o senhor se dedicava ao estudo?

Quando podia: em casa, no bonde... Às vezes, eu acabava de vender artigos dentários nas imediações da rua Barão de Itapetininga e aproveitava para ir à praça da República, onde ficava uma biblioteca ambulante da prefeitura. Quando comecei o madureza, já possuía uma base intelectual suficiente para ser um bom aluno. O Ginásio Riachuelo, graças ao professor Benedito de Oliveira, que era um grande educador, era nossa casa. Nós tínhamos a chave e continuávamos a estudar depois que as aulas terminavam, durante uma hora ou mais, dependendo do horário do bonde. Além dos livros do curso, nós líamos também volumes de filosofia, matéria que não fazia parte do currículo, e discutíamos os romancistas da década de 1930 e os autores modernistas.


Por que o senhor foi estudar sociologia?

Eu queria fazer engenharia química. Não pude porque não tinha recursos para me manter na escola o dia inteiro. Por isso, tive de escolher entre os cursos de meio período. Destes, o que me atraiu mais foi o de ciências sociais. Foi uma boa escolha, porque a minha ambição era ser professor. Quando acabei o curso, tive dois convites para ser assistente na Faculdade de Filosofia.


Em que ano o senhor terminou?

Comecei em 1941 e terminei em 1943. Fiz licenciatura em 1944. E comecei a trabalhar na faculdade em 1945.


O seu pensamento progressista começou a ser formulado antes da sua entrada na faculdade?

Durante todo o período em que trabalhei como aprendiz em marcenaria, alfaiataria etc., havia uma certa inquietação social de caráter populista. Em 1930, por exemplo, eu corri pelas ruas gritando "queremos Getúlio". Porque o sentimento de oposição era muito forte nas massas populares. Eu era um autêntico condenado da terra. Descalço, corria pelas ruas com aquela multidão. E encontrei, nos meus locais de trabalho, pessoas que tinham vínculos com os anarquistas, com os socialistas, com os comunistas. Eu recebi alguma influência deles. Quando fui para a Faculdade de Filosofia, a escolha de ciências sociais estava nebulosamente imbricada à idéia de que eu teria um conhecimento que seria útil para transformar a sociedade. Depois vi que, ao contrário, a estrutura do curso estava voltada para estudar a sociedade de uma maneira científica, não havia polarização ideológica. Na faculdade, a maioria dos professores era composta por franceses, um deles era alemão, poucos eram brasileiros. Comecei, então, eventualmente, a freqüentar conferências sobre Marx, Engels e Rosa Luxemburgo, promovidas pelo Partido Comunista, que apesar de ilegal organizava atividades de divulgação teórica.


O senhor disse que trabalhou em um bar?

Sim, na copa e na cozinha do bar Bidu. Fazia um sanduíche com aliche e salsa picada (eu tenho habilidade para lidar com a faca) que o Manuel Lopes Teixeira, da Novaterápica, adorava. Eu colocava um pozinho verde e azeite português e fazia um pacotinho para ele levar. Um dia, o Maneco ficou esperando que o bar fechasse, saiu comigo e me perguntou o que pretendia fazer na vida. Respondi que gostaria de estudar. "E por que você não sai desse emprego e estuda?" Eu disse: "Já tentei mas não consegui." Naquela época, as pessoas mais estigmatizadas socialmente eram as prostitutas, os negros e as pessoas que trabalhavam em bares e restaurantes. Ninguém dava outro emprego para nós. Aí ele falou: "Você vai poder estudar, porque vou arrumar um outro emprego para você. Mas você precisa fazer o tiro-de-guerra, senão vai ter de interromper os estudos. E também precisa aprender datilografia. Quando estiver tudo pronto, você me avisa." Eu tive uma conversa com os donos do bar, que eram muito meus amigos. Para eles era ruim que eu saísse três vezes por semana na hora de pico do movimento. Mas como eu era considerado um funcionário exemplar, eles cederam. Aí eu ia ao tiro-de-guerra 546, que funcionava na rua do Carmo; e fiz o curso de datilografia na praça da Sé. Quando terminei, avisei o Maneco e ele me colocou na Novoterápica como entregador de amostras. Depois, passei a cuidar do estoque e mais tarde fui promovido a chefe da seção de dentes. Era capaz de separar dentes por cor e por tipo. Daí a facilidade com que me transferi para a área de artigos dentários do Boticão Universal. Quando fiz os exames e entrei para a faculdade, passei a vender artigos recebendo ajuda de custo e comissão. Passado algum tempo, o Maneco descobriu que a Pio Miranda e Cia. ia precisar de um propagandista. Fiz um concurso e consegui o cargo. O pessoal do laboratório acreditava que eu gastava oito horas por dia para fazer oito visitas. Mas, na verdade, eu gastava muito menos. Era o posto ideal para eu poder estudar. Sobrava tempo para ir à escola e estudar à noite. Com isso, consegui me formar. Eu me casei em 1944 e, como o salário de professor-assistente não era suficiente para nos mantermos, ainda trabalhei por dois anos como propagandista. Os médicos, meus clientes, ficavam constrangidos, porque achavam que eu, professor-assistente, era hierarquicamente superior a eles.


Onde o senhor conheceu sua esposa?

Eu conheci a Míriam na casa de um amigo meu que namorava sua irmã. Ele se chamava Coríntio Palma e trabalhava na Novoterápica. O namoro foi longo, uns cinco, seis anos. Depois me casei.


O senhor já era socialista?

Na Novoterápica conheci o Scalla, principal auxiliar do Maneco. A família dele era vinculada ao socialismo. E havia um italiano, que depois se casou com uma irmã dele, recém-chegada da Itália, com idéias muito frescas sobre o movimento socialista europeu. Eu tinha lido muitos livros, mas sem sistematização. O contato com essa família serviu para tornar as coisas mais claras para mim. E comecei a freqüentar as redações de O Estado de São Paulo, e principalmente da Folha da Manhã, onde conheci o Hermínio Sacchetta, que era líder do movimento trotskista, ligado à IV Internacional. Assim, em 1943 me tornei militante do Partido Socialista Revolucionário na célula a que pertenciam o Sacchetta, Rocha Barros, Plínio Gomes de Mello, Vítor de Azevedo e José Stacchini.


Quer dizer que o senhor começou a militar sem passar pelo Partido Comunista?

A minha aspiração era ir para o Partido Comunista. Mas as circunstâncias me levaram ao movimento trotskista. Ademais, não gostei do tipo de disciplina do PC.


O senhor chegou a ter contatos com o PC?

Tive diversos. Os comunistas levavam as pessoas para reuniões, festas, conferências, mas havia um elemento autoritário que eu repelia. Com a filiação ao PSR, seção brasileira da IV Internacional, minha militância se tornou sistemática. Nessa época, fiz a tradução da Crítica da Economia Política, de Marx. O livro saiu em 1946. Eu estudava alemão, mas não sabia o suficiente para traduzir. Então, usei uma edição em inglês, emprestada pelo advogado Alberto da Rocha Barros. Havia uma outra edição espanhola, boa, e uma edição francesa. A pior era a francesa, a melhor era a espanhola. A minha tradução é montada sobre os três textos. Eu cometi alguns erros porque, como eu estudava ciências sociais, usei a terminologia sociológica para alguns conceitos marxistas.


Quando o senhor saiu do movimento trotskista?

Eu me mantive nele até o início dos anos 50. Aí os próprios companheiros acharam que não seria conveniente que eu desperdiçasse o tempo em um movimento de pequeno alcance, quando podia me dedicar a trabalhos de maior envergadura na universidade. O Sacchetta, que era um homem esclarecido, me aconselhou: "É melhor você se afastar da organização e se dedicar à universidade, que vai ser mais importante para nós."


Foi na Universidade que o senhor aprofundou sua formação marxista?

Descobri o marxismo com a tradução da Crítica... Para mim, foi uma revelação. Ao escrever a introdução da Crítica..., eu não tinha competência para fazer um estudo profundo. Era muito mais uma homenagem, uma defesa de Marx. Apesar de tudo, coloquei problemas que entrariam em efervescência na Europa pouco depois. Dei grande destaque ao pensamento do que mais tarde se chamou na Europa de "o jovem Marx". Situaram-me como enfant terrible da sociologia brasileira por causa disso. Eu sentia uma grande afinidade com esse jovem Marx. Nele, o homem era visto como parte da natureza, portador de cultura e criador da história.


O que seria exatamente ultrapassar Marx?

Bem, isto é algo que não depende propriamente de nós, porque Marx se vincula à dinâmica da classe trabalhadora. Hoje, para superá-lo, nós teríamos de ter uma relação dialética com as classes que ocupam uma posição revolucionária na história. O proletariado interessava a Marx e Engels porque eles o viam como a única classe revolucionária. E, portanto, era por intermédio dela que eles absorviam o pensamento revolucionário de conteúdo histórico, ao mesmo tempo negador da ordem e capaz de promover uma síntese, e ultrapassar a situação existente.


Quais seriam essas classes hoje?

Esse é o grande dilema do cientista social: hoje você não tem como identificar uma classe que pareça vinculada à negação da ordem. Eu acredito que na periferia o problema é mais simples. São os trabalhadores e principalmente os excluídos, os que Frantz Fanon chamou de "condenados da terra". Eles contêm a radicalização maior, aquela que exige que a ordem existente seja virada de cabeça para baixo. Nos países centrais, ainda não surgiu uma classe que tenha a potencialidade de negação da ordem no plano histórico. Está no plano do vir-a-ser. O radicalismo da classe média é muito mais vinculado a frustrações, ao medo da proletarização, enquanto os trabalhadores e os excluídos acabam sendo trabalhados pelos meios de comunicação de massa e só percebem a realidade por meio de imagens que obscurecem o pensamento.


O conceito de "trabalhadores" não está muito fluido?

Ele não é fluido porque há um elemento comum. A grande novidade de nossa época é o aparecimento do trabalho intelectual em uma escala mais ampla. O trabalhador intelectual acabou tendo uma posição na produção que absorve uma porção de funções que antes sobrecarregavam o trabalhador manual. Atualmente, o trabalhador manual é muito mais um marginalizado do que um elemento que carrega uma concepção de mundo homogênea. A luta ideológica hoje é mediada por instrumentos de dominação muito potentes e isso confere às elites das classes dominantes a capacidade de se ocultarem como tal, e ao mesmo tempo de manipularem o comportamento coletivo das massas não só por intermédio do Estado e da empresa, mas também por meio da cultura. É possível que, no fundo, essas polarizações se alterem. O que o marxismo explica é a dinâmica do capitalismo e as contradições que vão destruí-lo. Isso não foi negado até hoje. Mas também não foi confirmado. Não foi confirmado. No entanto, o socialismo está mais vivo do que nunca, porque ele está livre das contingências e das limitações, das condições que eram obstáculos ao seu pleno desenvolvimento e realização.


O senhor está se referindo às mudanças no Leste Europeu?

Sim, às mudanças que estão ocorrendo. O socialismo volta a ser a promessa pura e completa que era no passado, enquanto o capitalismo não é mais promessa de nada. Qual é a promessa que há no capitalismo?


Mas essa sua opinião não é contraditória com o artigo que o senhor escreveu elogiando a Albânia?

Na Albânia, não existem as condições para que a explosão contra o regime seja violenta. Mas o regime está sob pressão. O ministro da Economia, o próprio presidente do país, foram muito claros: estão buscando novas saídas. Não querem fazer concessões ao capitalismo, mas, ao mesmo tempo, viam que não podiam ficar presos em uma ratoeira. Então, eu tinha de admitir a idéia experimental. Quem ler o artigo com cuidado vai ver que eu terminei dizendo que ainda não há uma alternativa. Tanto pode se repetir o que aconteceu no Leste Europeu como pode haver uma renovação produzida pelas próprias forças sociais internas. O que está subjacente no meu artigo não é a defesa da Albânia, mas sua localização no contexto de uma experiência crucial, o que é diferente. As pessoas não lêem direito! Lêem uma parte e depois concluem o que você não disse. Eu não tenho culpa. Existem hoje correntes de pensamento que criticam Marx e combatem o próprio pt, dizendo que o partido tem uma visão monoclassista. Mas um dos dilemas do pt é não ser monoclassista. Na verdade, esse reducionismo que tem sido imputado ao marxismo não existe. As pessoas não lêem Marx, lêem divulgadores e depois simplificam. O que ele afirma é que uma classe é portadora da condição de classe revolucionária. Mas ele sabia que existe um exército industrial de reserva, que na população excedente há uma variedade imensa de pessoas que não estão incluídas nem no exército ativo, nem no exército industrial de reserva. Ele sabia que existem as colônias, que há uma burguesia diferenciada, que há uma nobreza que ainda tem força na Inglaterra. Marx era um homem de uma imaginação fértil, muito vibrátil, capaz de apanhar a totalidade. Quando se esquece que uma pessoa tem a totalidade e depois se fala em reducionismo está se cometendo uma falsificação.


Uma boa parte dos intelectuais brasileiros estaria, então, reduzindo o pensamento de Marx?

Há marxistas e marxistas. Na universidade, conheci pouca gente que realmente havia lido Marx. Eu próprio não conheço Marx tanto quanto desejaria. Paul Singer, por exemplo, é uma pessoa que conhece Marx e o marxismo e, no entanto, tem posições moderadas. Há pessoas que conhecem Marx como Otávio Ianni, José Paulo Neto, Jacob Gorender. Agora, o problema é saber se o marxismo continua a ter atualidade ou não. Em O marxismo ocidental, Perry Anderson disse que o marxismo se empobreceu na medida em que intelectuais marxistas passaram a ser intelectuais não-ativistas. O intelectual não pode se dissociar da prática política, sob pena de perder a perspectiva de classe e cair no vício acadêmico do pensamento abstrato. Aí, queira ou não, nós acabamos num Althusser. Com todo respeito que merece, ele fez uma metafísica do marxismo. Agora, ser ativista não significa necessariamente filiar-se a um partido. No Manifesto Comunista, Marx e Engels não falam em partido comunista. Eles falam que a função dos comunistas é servir a todos os partidos operários. E que o comunista devia levar a eles a visão de conjunto, a totalidade das grandes transformações que ocorrem e o que elas vão gerar. Seriam elementos fermentadores no processo político e de produção intelectual. O senhor diz que o marxismo se empobreceu porque os intelectuais se desvincularam da prática.


E como o professor Florestan Fernandes, um intelectual, vinculou teoria e prática?

Em 1964, a minha inclusão em uma lista de professores a serem inquiridos pelos policiais militares estava ligada à minha própria vida intelectual. Quando eu cheguei à universidade, eu era o Florestan de origem proletária, o que nunca neguei. Eu não procurei na universidade um meio de ascender socialmente e me confundir com as elites. Sempre tive um papel ativo: me tornei assistente na Faculdade de Filosofia, e a primeira coisa que comecei a fazer foi combater a cátedra, uma forma arcaica de autoridade do professor, e a lutar para a autogestão coletiva do departamento. Inclusive, defendi a gestão paritária. Fiz parte das campanhas de defesa da escola pública, pelas reformas estruturais de base e pela reforma universitária. Em 1964, puniu-se esse padrão intelectual, indesejável em uma sociedade na qual as elites querem manter a sua ordem de qualquer maneira.


Depois de 1964, o senhor continuou na universidade?

Todos continuamos. De 1964 a 1969 assumi um papel ainda mais ativo. Já havia a Junta Militar, e eu ainda estava lutando. Percorri todo o Brasil, fiz conferências, cheguei a fazer quatro conferências em um dia em Porto Alegre. Houve uma tentativa de me arrastarem para a guerrilha. Enquanto um dos grupos se constituía, me foi oferecida a sua chefia. Aí eu disse: "Olha, devido à minha visão marxista da luta de classes eu não posso aceitar fazer parte da guerrilha."


Que grupo era esse, professor?

Eu não posso dizer, mas essas pessoas me procuraram por duas vezes na Faculdade de Filosofia. Formavam um grupo novo, que se aglutinava em termos radicais. Recusei dizendo que, como marxista, eu não podia aceitar, porque se a guerrilha não existisse, a ditadura precisaria criá-la para aprofundar a repressão e a contra-revolução. Não havia condições para uma ruptura no plano político, suficientemente profunda, para que a guerrilha pudesse ser o detonador de uma rebelião das classes trabalhadoras e das massas populares. Então, eu disse: "Não, eu não entro nessa." Eu respeito muito os companheiros que morreram na guerrilha, porque deram demonstração de valor e altruísmo, sacrificaram a própria vida. Acho que a guerrilha tem chance quando está associada a um movimento de inquietação, de revolta, e nós não tínhamos aquilo. No final de 1968, a ditadura tinha de fazer comigo o que ela fez, porque assim como fui implacável na luta eles tinham de ser implacáveis na repressão. Fui submetido a Inquérito Policial Militar, processado, julgado e inocentado pela Justiça Militar e, finalmente, cassado pelo AI-5 e afastado da universidade.


Como foi sua saída do Brasil?

Não foi uma saída legal, foi virulenta e difícil. Ela aconteceu por pressões externas. Houve protestos na Universidade de Toronto e do governo do Canadá. Mas houve algo ainda mais eficiente que eu só soube depois de ter cometido muitas injustiças contra companheiros norte-americanos do movimento dos Direitos Civis. O Magalhães Pinto, então ministro das Relações Exteriores, foi preso em Nova York, dentro de uma sala, por várias horas, até concordar em autorizar minha saída do Brasil. Eu devia estar no Canadá em fins de julho, início de agosto, o mais tardar, e só cheguei lá em novembro de 1969.


O senhor chegou a ser preso?

Eu fui preso em 1964.


Quanto tempo o senhor ficou preso?

Fiquei pouco tempo, porque houve um protesto muito grande. Eu escrevi uma carta ao coronel que presidia o Inquérito Policial Militar na Faculdade de Filosofia dizendo que a maior virtude do militar é a disciplina e a do intelectual é o espírito crítico... Publicada pela imprensa, ela causou grande comoção.


O que representou 1968 para o senhor?

Para mim, foi um pouco diferente do que talvez tenha sido para os meus colegas, porque já havia me engajado em atividades abertas de combate ao regime. Eu voltei dos Estados Unidos no início de 1966 e comecei a fazer conferências. Os dois anos seguintes foram de intensa atividade. No fim de 1968, apresentei no Rio um trabalho sobre a reforma universitária consentida, uma resposta violenta à tentativa do governo ditatorial de roubar a nossa bandeira de reformas, pela qual vínhamos lutando desde o início da década. Aquela foi uma das últimas manifestações cívicas contra a ditadura. Na Faculdade de Filosofia, em janeiro de 1969, ainda fiz um apelo aos colegas, dizendo que aquela era a última oportunidade que nós tínhamos de nos manifestarmos contra o regime vigente e em defesa de uma sociedade democrática. Aí se estabeleceu um debate na Congregação e descobri com tristeza que o setor de esquerda havia recuado. Prevaleceu na Congregação uma atitude de recolhimento, de autoproteção. Acho que 1968 foi o auge da luta contra a ditadura. Foi o momento no qual surgiram os melhores trabalhos produzidos pela esquerda. Havia a revista Teoria e Prática e debates em vários grupos. Existia uma preocupação muito grande em ligar o combate à ditadura a processos que poderiam começar com bandeiras democráticas e levar a transformações radicais. Foi um ano em que o ardor cívico da população poderia ter sido trabalhado pela esquerda.


A luta guerrilheira, o desdobramento imediato deste período, foi inevitável diante da radicalização da direita, diante da falta de opções da militância?

Em 1962, aconteceram as primeiras manifestações repressivas. No interior de jornais, de empresas, elementos de esquerda foram sendo expurgados e em 1964 houve o golpe de Estado. A direita foi ganhando força gradativamente e, depois do golpe, ninguém a ameaçava. Por isso, acredito que a radicalização da direita era um jogo para açular os seus adversários e ampliar a reação conservadora. O governo ditatorial aproveitou a existência da guerrilha para intensificar a repressão e, ao mesmo tempo, "legitimar" a violência.


Como foram para o senhor os anos 70 e o começo dos anos 80?

Em 1969 fui para o exterior, onde desenvolvi uma campanha contra a ditadura. Fazia conferências em toda parte: no Canadá, Estados Unidos, Alemanha etc. Não levei muito tempo para descobrir que a maioria das sociedades norte-americana, canadense, européia, estava muito encantada com a ditadura militar, porque ela aparentemente mantinha a democracia com eleições, Parlamento funcionando etc., e estava unida aos civis "mais responsáveis" na defesa da ordem e da expansão do capitalismo no Brasil. Vi que era ilusão perder tempo lá. Porque eu podia falar de guerrilha em uma universidade, de fascismo em outra, falar contra o regime militar, mas tudo isso era muito limitado. Na verdade, eu não tinha muita probabilidade de exercer influência em qualquer movimento social, e resolvi voltar em fins de 1972. Em 1973 e 1974 não atuei muito, o espaço estava fechado. Foi a esquerda católica que me deu maior chance de manifestação. Fiquei praticamente aprisionado em minha casa, revendo coisas que tinha escrito. Retomei o livro A revolução burguesa no Brasil, que tinha posto de lado, e fiz conferências para padres e para a juventude católica de esquerda. Também contribuí para a elaboração das revistas Debate e Crítica e Argumento, logo inviabilizadas pela repressão policial. Em 1975 e 1976 dei dois ciclos de conferências no Sedes Sapientiae. No final de 1977, fui contratado como professor da PUC/SP. Eu não tinha um conhecimento muito profundo do que estava acontecendo entre os ativistas, cujo setor mais dinâmico era a esquerda católica. Quiseram me convidar para participar deste movimento, mas respondi que isto não era correto nem para mim, nem para eles — não sou católico, sou marxista, e eles eram revolucionários, mas não marxistas. Eu disse: "O melhor é nós cooperarmos; continuo a colaborar do jeito que estou colaborando e posso aumentar a minha contribuição."


E o surgimento do movimento operário e do PT?

Em vários setores da sociedade foram surgindo manifestações de repúdio ao regime. A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e a Associação Nacional dos Docentes do Ensino Superior (Andes), por exemplo, eram bastante combativas — não abertamente, mas usando como expediente a crítica do funcionamento das instituições. Muitos falavam na necessidade de restaurar a democracia, uma bandeira com a qual eu não convivia bem, porque, para mim, nunca houve democracia no país. Dos movimentos que tiveram maior significação é preciso dar relevo ao do operariado, que, em 1978, com a grande greve dos metalúrgicos do ABC, desferiu o primeiro golpe sério contra a ditadura. O novo sindicato que se formou a partir desta ruptura desatrelou-se do governo e dos dirigentes pelegos e procurou unir os demais sindicatos em uma frente de luta contra o capital, contra o governo. Nessa luta, os operários descobriram a sua força e a sua fraqueza — a necessidade do braço partidário. O sindicato precisa de um partido, assim como precisa de um sistema que organize as manifestações operárias nas bases. Nesse contexto é que surge o Partido dos Trabalhadores. Desde o início, senti uma grande simpatia pelo PT. Mas, ao mesmo tempo, tinha medo de entrar para o partido, porque o arco que ia desde movimentos de comunidades de base sem conotação política, de caráter humanitário, passando por um núcleo social-democrático que tinha servido e serve para fortalecer a reforma do capitalismo, até socialistas democráticos e comunistas e socialistas revolucionários, esse imenso arco me assustava. Eu preferia uma concentração mais nítida de valores políticos operários, dentro de uma tradição que teria de ser anarquista ou marxista. Como o anarquismo não tem condições de derrubar uma sociedade capitalista organizada, a única alternativa para mim era a marxista. Então, fiquei numa posição ambígua, com uma grande simpatia pelo PT uma grande admiração pelo Lula, mas não me decidia a entrar. Até que o Lula marcou um encontro no Sindicato dos Metalúrgicos. A Annez Andraus Troiano foi comigo. O Lula, nesse encontro, teve altos e baixos. Houve um momento em que ele quis usar a superioridade natural do operário diante do intelectual marxista, e perguntou: "Bom, afinal, você é nosso aliado ou inimigo?" E eu respondi: "Isso não pega comigo, porque eu tenho origem inferior à sua. Comecei a trabalhar com 6 anos. Para mim, um operário tanto pode aderir a um movimento fascista como a um movimento socialista, ou ficar indiferente. Eu não sou obrerista e não me ajoelho diante do deus operário. Para eu entrar no PT, quero que ele defina seu programa, esclarecendo melhor quais as opções que envolvem a sua presença como núcleo político da classe trabalhadora."Aí ele viu que a conversa não tinha saída. Passei a ser contribuinte e simpatizante do pt, mas sofria uma forte pressão dos estudantes que achavam que havia uma incongruência entre a minha posição política anterior e o fato de eu não ser militante do PT. Eu respondia que podia servir o PT dentro ou fora dele. Aí houve a morte daquele célebre revolucionário, o Gregório Bezerra. Eu tinha lido a sua bela autobiografia, que desmente as teses do Partido Comunista de impraticabilidade de um levante operário. Ele mostra a facilidade com que a massa camponesa se mobiliza. Escrevi um artigo sobre Gregório Bezerra e mandei para a Folha de S. Paulo. A Folha publicou e o impacto do artigo foi tremendo, no Brasil inteiro... A homenagem ao Bezerra comoveu a todos. A partir de então comecei a colaborar na Folha. Por intermédio da Folha, exercia uma atividade política confinada, pois não podia fazer um trabalho ideológico. Esses artigos estreitaram minhas relações com muitos militantes do PT. No Brasil inteiro havia petistas lendo os artigos, se comunicando comigo, me aplaudindo e me entusiasmando. Os laços foram se estreitando e eu fui sendo empurrado para o PT por essas pressões morais. O Antonio Candido, que é uma pessoa a qual eu dedico uma amizade profunda, uma espécie de irmão, pertencia ao PT. Vários dos meus amigos e pessoas que eu admirava pertenciam ao PT. Além disso, não via alternativas que se definissem dentro de uma linha mais ortodoxa, mais unificada. Porque eu continuava a ver a pluralidade de correntes como um fenômeno negativo. Até que com o curso que dei sobre a Revolução Cubana e a análise que fiz do caso chileno compreendi que na América Latina a fraqueza das classes subalternas acaba criando a necessidade de partidos que são frentes ideológicas e políticas que unem tendências diferentes. Um dia, em 1986, na saída da aula da USP, meu filho me disse que o Lula queria falar comigo. Ele me levou ao Diretório Nacional e o Lula estava lá, junto com o José Dirceu e mais algumas pessoas, e perguntou se eu queria ser candidato a deputado federal constituinte. Eu respondi: "Não sou político profissional, portanto não sei fazer campanha política. Não tenho recursos para financiar uma campanha. Também estou recém-saído do hospital e a campanha vai ser muito desgastante para mim."Apesar disso, ele insistiu. Eu perguntei: "O que o PT oferece para que eu seja candidato? Vocês me dão alguma coisa?" Ele disse: "Nada. Você é que vai dar 30% de tudo o que recolher para o partido." Caí na gargalhada e respondi: "Está bom, assim eu aceito." Preenchemos a ficha de inscrição, saí candidato do partido e fui eleito.


O professor Florestan se transformou no deputado Florestan. Como o senhor vê sua experiência no Congresso?

Na verdade, não me transformei em um deputado. Continuo o mesmo Florestan, exercendo atividades dentro do Parlamento. É claro que, pela minha origem e pela minha formação marxista, tendia a ver o Parlamento como uma instituição altamente conservadora, que buscava resolver os conflitos sociais tendo em vista a defesa da ordem existente. No entanto, há espaço para se exercer tarefas construtivas. A sociedade capitalista tem esta característica: possui uma possibilidade de transformação que não é eliminada pelas iniciativas das classes burguesas. Muito embora o Congresso brasileiro reflita inversamente a nossa sociedade: a minoria rica e poderosa é a maioria parlamentar, e a maioria da nação é representada por uma minoria que só pode conquistar pequenos avanços. Hoje, sem pretender me tornar um político profissional, compreendo que é possível utilizar o Parlamento de uma maneira criativa e inovadora. O PT e outros setores de esquerda tiveram um papel dinâmico na Constituinte. Se nós não estivéssemos lá, as conseqüências teriam sido piores.


Como o senhor analisa a atual situação do Partido dos Trabalhadores?

Como ingressei no partido com uma identidade política definida, como marxista, me sinto à vontade para dizer que, embora não pertença até agora a nenhuma tendência, defendo que o PT deva ser um partido no qual o socialismo marxista tenha uma certa consistência. Não se pode conceber um partido dos trabalhadores que seja meramente reformista, que pretenda realizar tarefas semelhantes às da social-democracia européia. Acho que o PT pode desempenhar um papel importante na consolidação da esquerda. Como existem várias tendências dentro do partido, ele pode assumir uma posição mais aberta diante de várias questões. É sabido que, quando aceita a representação política dentro da sociedade capitalista, o socialismo perde seu vigor revolucionário. Desenvolve-se uma burocracia partidária, surgem políticos profissionais e ambos se unem para impedir a revolução, porque têm interesse na reprodução da ordem, na medida em que a sobrevivência deles, como burocratas do partido ou políticos profissionais, depende da sobrevivência de partidos que fiquem na órbita da reforma e da transformação do capitalismo. Acho que há uma vantagem nessa multiplicidade de tendências dentro do PT: ela quebra o monolitismo teórico e impede que possa surgir uma oligarquia dentro do partido. É importante que dentro do PT nós lutemos por concepções proletárias de socialismo. No Brasil, não há solução possível sem que a classe trabalhadora se una com o setor mais miserável e espoliado da sociedade. Essa é a função que o PT pode exercer melhor que qualquer outro partido. A questão está em encontrar uma linguagem socialista que permita definir os objetivos finais e os objetivos imediatos de forma que seja aceitável por todos. Porque, se existem várias correntes, existem também expressões ideológicas e políticas em contraste e até em conflito. É preciso impedir que essas diferenças acabem explodindo e destruindo o partido. Mas isso não pode ser feito às custas de seu caráter proletário e revolucionário. No momento em que o PT renegar a sua função de servir de espinha dorsal à luta política dos trabalhadores, deixando de ser um partido de revolução contra a ordem, ele deixará de ter importância para a instauração da democracia com igualdade social no Brasil.


Professor, por ter uma posição independente dentro do partido, o senhor enfrentou alguma dificuldade?

Na primeira eleição não. Encontrei na segunda, devido ao caráter tortuoso que ela tomou em conseqüência das condições imperantes no partido. O partido acabou avançando mais na direção de modelos burgueses do que de modelos propriamente proletários e socialistas.


O que seriam estes modelos burgueses?

Na relação entre candidatos socialistas não deve prevalecer a disputa pelo voto. Dentro do PT, está crescendo uma técnica eleitoral competitiva. O objetivo pessoal de vencer eleitoralmente prepondera sobre a ideologia, a política, a cooperação entre companheiros. O companheirismo deve ser a regra fundamental entre pessoas que participam de tendências socialistas. O individualismo e a própria competição são símbolos fortes da sociedade capitalista. O que deve estar em primeiro lugar é a vitória do PT e não a eleição de determinado candidato. Mas é claro que quando um partido socialista escolhe a via parlamentar ele escolhe também a via eleitoral. E ambas as coisas deterioram um pouco o processo de identificação com o socialismo, porque a pessoa acaba sendo apanhada pelo umbigo por relações de classe burguesas. Para mim é coisa secundária se eu vou ser eleito ou não. Eu não estou concorrendo por mim e para mim. E o processo eleitoral não é o objetivo em si, é um processo político no qual está em jogo a conscientização do estudante, do trabalhador, a identidade socialista. O objetivo é desempenhar tarefas políticas do partido. É lamentável dizer que isto não ocorreu. E isso precisa ocorrer, senão os partidos de esquerda nunca chegarão a nada. Eles ficarão sempre rastejando em segundo plano. Só poderão "ocupar o poder", nunca terão capacidade de "conquistar o poder", e para o socialismo o que importa é a conquista do poder, para que ele possa transformar a sociedade. O partido é um meio para este fim.


O senhor faria tudo de novo?

A capacidade de se atingir certos fins, de realizar certas atividades, não depende só de você, depende de certas condições. Tive uma grande sorte de ter tido oportunidades e de ter sabido aproveitá-las. Quando era menino, vi companheiros que não lograram desenvolver seu potencial, porque morreram ou foram encaminhados para atividades que aprisionam as pessoas. De qualquer maneira, acho que a coisa mais difícil que fiz foi permanecer fiel à minha classe de origem.