O enigma do capital e a crise desta vez, de David Harvey

02/10/2011 22:26

O enigma do capital e a crise desta vez

 

 

 

David Harvey (*)

 

 

 

Há muitas explicações para a crise do capital que começou em 2007. Mas o que falta é uma compreensão dos "riscos sistémicos". Fui alertado para isso quando Sua Majestade a Rainha de Inglaterra visitou a London School of Economics e perguntou aos prestigiados economistas presentes como é que eles não se tinham apercebido da crise que se aproximava. Sendo um monarca feudal ao invés de um mortal comum, os economistas sentiram-se compelidos a responder. Após seis meses de reflexão, os gurus económicos da Academia Britânica apresentaram as suas conclusões. No fundo, muitos economistas inteligentes e dedicados tinham trabalhado assídua e arduamente para a compreensão dos micro-processos. Mas, de uma forma ou de outra, nenhum se apercebeu do "risco sistémico". Um ano mais tarde, um ex-economista-chefe do Fundo Monetário Internacional disse que "nós sabemos vagamente o que é o risco sistémico e que fatores se poderiam relacionar com ele. Mas dizer que é uma ciência bem desenvolvida neste momento seria exagerar". Em um trabalho formal, o FMI descreveu o estudo do risco sistémico como estando "em sua infância" (1). Na teoria marxista (ao contrário da míope teoria neoclássica ou financeira) "risco sistémico" traduz as contradições fundamentais da acumulação de capital. O FMI poderia poupar-se a si mesmo imensos problemas estudando-as. Como poderemos, então, colocar a teorização de Marx sobre as contradições internas do capitalismo em uso para entender as raízes dos nossos dilemas contemporâneos?

 

Esta foi a tarefa que estabeleci para mim mesmo ao escrever ‘O Enigma do Capital: E as crises do Capitalismo’ (2). Ao escrever o livro, no entanto, descobri que as versões convencionais da teoria marxista da formação das crises eram insuficientes e que era necessário lançar um novo olhar aos argumentos sobre as crises expostos em ‘O Capital’ e, mais importante ainda, nos ‘Grundrisse’. Nesta última obra, Marx argumenta que a circulação e a acumulação de capital não podem tolerar limites. Quando elas encontram limites, trabalham assiduamente para convertê-los em barreiras que possam ser superadas ou contornadas. Isto focaliza pois a nossa atenção sobre os pontos na circulação do capital onde os potenciais limites, bloqueios e obstáculos possam surgir, uma vez que estes podem produzir crises de um tipo ou de outro.

 

O capital, como Marx insistiu, é um processo de circulação e não uma coisa. Trata-se, fundamentalmente, de colocar dinheiro em circulação para ganhar mais dinheiro. Existem várias maneiras de fazer isto. Financiadores emprestam dinheiro a troco de juros, os comerciantes compram barato para vender caro e rentistas compram terras, recursos, patentes, etc., que entregam a outros em troca de uma renda. Mesmo o Estado capitalista pode investir em infraestruturas em busca de uma base de impostos mais eficaz, que produza maiores receitas. Mas a principal forma de circulação do capital, na visão de Marx, era a de capital de produção. Esse capital começa com o dinheiro que é usado para comprar força de trabalho e meios de produção que são então reunidos em um processo de trabalho, sob uma determinada forma tecnológica e organizacional, do qual resulta uma nova mercadoria a ser vendida no mercado pelo dinheiro inicial acrescido de um lucro.

 

Uma parte do lucro, por motivos que retomaremos mais tarde, tem de ser capitalizada e lançada em circulação, em busca de cada vez mais lucros. O capital está, assim, comprometido com uma adequada taxa de crescimento. A quantidade de bens e serviços globais negociados através do mercado (que agora está em cerca de US$ 55 triliões de dólares) tem crescido a uma taxa média de cerca de 2,25 por cento desde 1750 ou por aí (3). Em alguns lugares e tempos tem sido muito maior e noutros lugares muito inferior. Isto se encaixa com a sabedoria convencional de que uma taxa de crescimento de três por cento é o nível mínimo aceitável em que um capitalismo "saudável" pode operar. A taxa média de crescimento global de 2000-2008 foi exatamente três por cento (com muitas variações locais). Qualquer coisa menos do que três por cento é problemático, enquanto o crescimento zero ou negativo define uma crise que, se prolongada, como na década de 1930, define uma depressão. Portanto, o problema para o capital é encontrar o caminho para um mínimo agregado de três por cento de crescimento para sempre.

 

Há abundantes sinais, porém, de que a acumulação de capital está em um ponto histórico de inflexão, no qual sustentar uma taxa agregada de crescimento está se tornando cada vez mais problemático. Em 1970, isso significava encontrar novas oportunidades rentáveis de investimento global para US$ 0,4 triliões de dólares. Uma retoma imediata de três por cento de crescimento significaria hoje encontrar oportunidades de investimento rentáveis para US$ 1,5 triliões de dólares. Se esse ritmo de crescimento se mantivesse, por alturas de 2030 estaríamos procurando por US$ 3 triliões. Colocada a questão em termos físicos, enquanto o capitalismo em 1750 foi sobretudo o que estava acontecendo em torno de Manchester, Birmingham e poucos outros pontos importantes na economia global, três por cento de crescimento agregado não representava nenhum problema. Mas agora estamos olhando para a agregação do crescimento em tudo o que acontece na América do Norte, Europa, grande parte do Leste da Ásia, América Latina e cada vez mais o Sul da Ásia, Médio Oriente e África... As implicações sociais, políticas e ambientais são nada menos do que gigantescas.

 

Note-se que o termo operativo aqui é oportunidades de investimento lucrativo, por oposição às oportunidades de investimento socialmente necessário e socialmente valioso. Onde estão, então, os limites potenciais para essa lucratividade? Como o capital é um processo e não uma coisa, então a continuidade do processo (juntamente com sua velocidade, capacidade de adaptação e mobilidade geográfica) torna-se um recurso fundamental para sustentar o crescimento. Qualquer bloqueio ou travagem no fluxo de capitais irá produzir uma crise. Se o nosso fluxo sangüíneo é interrompido morremos. Se o fluxo do capital para, então o corpo político da sociedade capitalista morre. Esta regra simples foi demonstrada da forma mais dramática, na sequência dos acontecimentos de 11/09/2001. Processos normais de circulação foram paralisados em Nova Iorque e seus arredores, com enormes ramificações para a economia global. No prazo de cinco dias, o então prefeito Giuliani estava a pedir a toda a gente que pegasse nos seus cartões de crédito e fosse fazer compras, jantar aos restaurantes e assistir aos espetáculos da Broadway (lugares estão agora disponíveis!). E logo em seguida, o Presidente dos Estados Unidos da América fez uma coisa sem precedentes: ele apareceu num reclame comercial coletivo para as companhias aéreas, exortando as pessoas a começarem a viajar novamente de avião. Quando os bancos pararam de emprestar e o crédito congelou, na esteira do colapso do Lehman Brothers em 15 de setembro de 2008, a sobrevivência do capitalismo estava ameaçada e o poder político tomou medidas extraordinárias para afrouxar as constrições. Era uma questão de vida ou morte para o capital, como toda a gente no poder reconheceu.

 

A inspeção da circulação do capital revela, no entanto, uma série de pontos potenciais de bloqueio, qualquer um dos quais poderia induzir uma crise pela constrição do fluxo de capitais. Vamos considerar cada um deles.

 

1. A reunião do capital inicial

 

A acumulação de capital pressupõe que um montante adequado de dinheiro pode ser reunido no lugar certo, na hora certa e na quantidade certa, de forma a lançar-se esse dinheiro em circulação como capital. Marx tratou quase sempre este problema do capital inicial em termos de acumulação primitiva (o roubo de dinheiros oriundos do resto do mundo). Isso é inadequado, pois, como Saint-Simon já havia apontado, a associação de vários capitais (alcançada porventura através da forma corporativa, bolsas, etc.) é necessária para realizar projetos de grande porte, tais como ferrovias, canais e até mesmo empresas industriais em grande escala. É trabalho próprio do sistema financeiro - quase sempre incorporando os poderes do Estado - reunir as poupanças e os excedentes de pequena escala e redistribuir as verbas assim reunidas por uma série de projetos potencialmente rentáveis. Os irmãos Pereire, por exemplo, educados no pensamento de Saint-Simon, criaram novas instituições de crédito para facilitar a reconstrução de Paris, chupando os excedentes, quer do capital quer do trabalho, deixados pendentes na sequência da crise económica de 1848. Eles logo descobriram que não precisavam de se envolver eles próprios com a produção, que a sua alavancagem (tomando de empréstimo a 3 por cento e emprestando a 5 por cento) lhes poderia render lucros consideráveis (4). A criação de um moderno sistema de crédito hipotecário nos Estados Unidos remonta à década de 1930 (quando um terço da taxa de desemprego foi atribuído à depressão nos ofícios da construção civil), e isso lançou as bases para a expansão suburbana do pós-guerra, que desempenhou um papel crucial para impedir que os EUA mergulhassem novamente na depressão.

 

A inovação financeira contínua tem sido crucial para a sobrevivência do capitalismo. Mas os capitalistas financeiros e do dinheiro também reclamam a sua fatia do valor excedente produzido. Um excesso de poder dentro do sistema financeiro pode então tornar-se um problema, gerando um conflito entre capital financeiro e de produção. As instituições financeiras, além disso, sempre estiveram congraçadas com o aparelho do Estado, formando aquilo que eu chamo de um "nexo financeiro-estatal" (5). Isso geralmente fica em segundo plano, exceto em situações de crise, como aconteceu nos Estados Unidos, na esteira do colapso do Lehman: o secretário do Tesouro (Henry Paulson) e o presidente do Federal Reserve (Ben Bernanke) foram tomando todas as decisões-chave (o presidente Bush raramente foi visto). Da mesma forma que o poder do Estado favoreceu a grande finança da City de Londres em relação ao capital produtivo na Grã-Bretanha, após a Primeira Guerra Mundial, tendo por isso contribuído para o mal-estar da produção industrial, assim as finanças de Wall Street são coniventes com a desindustrialização dos Estados Unidos após a segunda metade da década de 1970. As crises têm-se centrado com freqüência no setor financeiro - e associados poderes do Estado - quer por a finança estar sobre-regulada e não ser suficientemente inovadora (produzindo o que é chamado de "repressão financeira" (6) - um termo usado frequentemente na década de 1970), quer por ser demasiado poderosa e incontrolável para o bem do sistema (como é dito agora frequentemente).

 

Em vários pontos Marx contempla, como devemos também fazer, a possibilidade de se formarem crises financeiras ou monetárias autónomas dentro do sistema financeiro, espalhando-se depois para o resto da economia. A inovação financeira é absolutamente fundamental para alcançar um crescimento agregado e o capital não pode passar sem ela. Mas esta inovação pode facilmente ficar fora de controlo, tornar-se insanamente especulativa ou, simplesmente, fortalecer excessivamente os financistas, os quais, muitas vezes, olham apenas para seus próprios interesses e não para a estabilidade do capitalismo. A desregulamentação do sistema financeiro, vista como um passo necessário na década de 1970, a fim de superar a barreira da repressão financeira, tem desempenhado um papel crucial na crise neste momento. Mas porque houve necessidade dessa inovação e dessa desregulamentação financeira dos anos 1970 em diante?

 

2. O mercado de trabalho

 

Quando o trabalho é escasso ou está muito bem organizado, então isso pode colocar limites à livre circulação de capitais. Os salários sobem à custa dos lucros. A longa história da luta de classes sobre os salários, as condições do contrato (duração da jornada de trabalho, da semana de trabalho e da vida no trabalho), juntamente com as lutas em relação aos níveis de prestações sociais (o salário social) é um testemunho da importância desse limite potencial à acumulação de capital. Esta constrição foi muito marcante nas regiões centrais do capitalismo no final dos anos 1960 e início de 1970. Este foi, então, o principal bloqueio que tinha de ser superado.

 

Os mercados de trabalho (sempre geograficamente fragmentados) foram amplamente organizados numa base nacional, no período 1945-1980, e foram isolados da competição internacional por constrangimentos no fluxo internacional de capitais. Os Estados-nação podiam desenhar as suas próprias políticas fiscais e estas podiam ser influenciadas politicamente por sindicatos e partidos políticos da esquerda. O salário social tendeu a aumentar em detrimento do capital. A resposta a este problema residiu, parcialmente, no assalto político bem sucedido (liderado por Reagan, Thatcher e os líderes militares na América Latina) sobre o trabalho organizado e suas instituições políticas. Mas outros instrumentos de ataque foram a mobilização dos excedentes de trabalho global através dos “paraísos fiscais”. Após o colapso do sistema financeiro de Bretton Woods, no início de 1970, e a subseqüente desregulamentação da finança, as restrições ao fluxo internacional de capitais foram aliviadas e o capital começou a exercer uma maior disciplina sobre as políticas fiscais dos Estados-nação. O Estado Providência (“Welfare State”) foi desmontado, os salários reais estagnaram ou diminuíram e a participação dos salários no PIB total dos países da OCDE caíu. O capital teve acesso a uma vasta reserva disponível de trabalho descartável, vivendo em condições marginais. Em meados da década de 1980, o problema do trabalho (no mercado, na fábrica e, politicamente, nas social-democracias) tinha desaparecido. A repressão salarial foi vivida quase por toda a parte. Note-se bem, porém, que o problema do trabalho não poderia ter sido superado sem a desregulamentação financeira e as inovações que desmantelaram as barreiras aos fluxos transfronteiriços de capitais. O problema do trabalho foi resolvido à custa da abertura da possibilidade de crises no sistema financeiro (das quais houve muitas depois de 1975). Mas o que é que converteu essa possibilidade em certeza?

 

3. A disponibilidade dos meios de produção e a escassez na Natureza

 

Vários problemas técnicos surgem em torno do acesso aos meios de produção adequados. Estrangulamentos de fornecimento podem ocorrer facilmente, às vezes por razões sistémicas que não podem ser aqui desenvolvidas. Mas subjacente a isso está a possibilidade dos chamados limites "naturais" para o fornecimento de matérias-primas e à capacidade do ambiente para absorver resíduos. A história do capitalismo está repleta de muitas fases em que a "natureza" é considerado um limite último para o crescimento. Mas o cenário malthusiano nunca realmente tomou forma. Esta história é um bom exemplo de como o capital, quando encontra limites, apresenta considerável engenhosidade, transformando-os em barreiras que podem ser superadas ou contornadas (por mudanças tecnológicas, pela exploração de recursos em novas regiões e outros métodos similares). Porque o capital tem feito isso com sucesso no passado, não significa necessariamente, é claro, que está destinado a fazê-lo perpetuamente. Também não implica que os episódios passados de supostos limites naturais tenham sido abordados de forma suave e sem crises. Seja ou não este um momento em que vem à tona aquilo que O'Connor chama de "segunda contradição do capitalismo" (a sua relação com a natureza, em oposição à relação capital-trabalho que os marxistas normalmente privilegiam) como o principal obstáculo à acumulação sustentada, é uma questão de debate (7).

 

Mas, exactamente da mesma maneira que os financistas, por vezes, ganharam muito poder e produziram uma crise geral prosseguindo seus interesses mesquinhos, também os senhorios e rendeiros podem fazer a mesma coisa, como aconteceu quando o cartel do petróleo, a OPEP, acrescentou o combustível (na verdade subtraíu-o!) à crise da década de 1970 ou quando os especuladores elevaram o preço do petróleo e de outras matérias-primas, como os grãos alimentares, no verão de 2008. Uma excessiva manipulação política dos preços nos mercados de matérias-primas, nas rendas de direitos de propriedade intelectual ou nas infraestruturas urbanas, podem ameaçar a acumulação contínua de capital. Quando o rentista é o Estado (como frequentemente acontece no caso do petróleo), então lutas geopolíticas podem também produzir barreiras e limites no fornecimento dos chamados recursos "naturais" à circulação de capitais. Escrevo aqui "chamados" porque os recursos são sempre valorizações tecnológicas, culturais e econômicas, na forma de artefactos - por vezes referidos como uma "segunda natureza" - sendo activamente produzidos como uma nova paisagem para a acumulação. Escassezes que ameaçam o crescimento agregado são em grande parte socialmente produzidas.

 

A importância e o poder das classes rentistas tem sido subestimada. Há provas de que as classes altas britânicas (a aristocracia rural, em particular) acumularam muito mais riqueza com rendas crescentes, a partir da metade do século XVII, do que fizeram a partir da exploração do trabalho de fábrica em Manchester. O poder dos rentistas tem sido crescente nos últimos tempos, como o temos visto nos mercados de terras, na busca dos direitos de propriedade intelectual e patentes, na especulação bolsista com “futuros”. É significativo também que, durante esta crise, os bem providos, assim como os poderes estatais (o chinês, em particular) estão comprando terras e recursos em abundância, na América Latina e África. Terrenos e valores de propriedade, em combinação com o capital financeiro, estiveram no epicentro da atual crise e continuam a constituir um potencial obstáculo perigoso para a recuperação do crescimento agregado no longo prazo.

 

4. Formas tecnológicas e de organização

 

Como são reunidos a força de trabalho e os meios de produção depende das formas tecnológicas e organizacionais disponíveis para os capitalistas, em um determinado tempo e lugar. A história do capitalismo tem sido profundamente afetada pela maneira como os ganhos de produtividade são alcançados. Novas formas organizacionais, tais como os sistemas just-in-time, a subcontratação, a utilização de escalonamento ótimo e outras semelhantes têm sido tão importantes como as novas máquinas, a robotização e a automação para alcançar aumentos na produtividade e na disciplina do trabalho nas fábricas. Dois pontos gerais são importantes para tomar nota. Inovação em excesso pode gerar crises, deslocando o trabalho de forma demasiado rápida ou tornando obsoletos sistemas de produção muito antes de os respetivos investimentos terem sido amortizados. A inovação pode, por outro lado, ser paralisada, quando "as leis coercitivas da competição" afrouxam por causa da monopolização (8). O equilíbrio entre o monopólio e a concorrência é aqui crucial. Excesso de monopolização e centralização do capital pode produzir uma estagnação (como aconteceu no período de "estagflação" na década de 1970), enquanto que a concorrência, por sua vez, pode ser "desastrosa" para muitos capitalistas, quando se torna demasiado feroz (como se tornou evidente na desindustrialização dos anos 1980) (9).

 

Um regime de baixa margem de lucro surgiu em quase todas as linhas de produção convencional, nos anos 1980, mesmo tendo os salários reais estagnado. Com o desmantelamento dos controles sobre o movimento internacional de capitais, o desenvolvimento geográfico desigual e a competição inter-territorial tornaram-se as principais características do desenvolvimento capitalista, minando ainda mais a autonomia fiscal dos Estados-nação. Isso marcou também o começo de uma mudança de poder em direção a Ásia oriental. Mas também levou o capital a investir mais e mais no controle sobre os ativos - capturar rendas e ganhos de capital – em detrimento da produção. As bolhas especulativas que se formaram a partir da década de 1980 foram o preço pago pela libertação ao nível mundial das leis coercitivas da competição como uma força repressiva sobre o poder do trabalho e sobre os poderes anteriormente autónomos que o Estado-nação detinha com respeito a políticas sociais e fiscais.

 

Desregulamentando e fortalecendo a forma mais fluída e altamente móvel de capital – o capital monetário - para realocar globalmente os recursos de capital (eventualmente através de mercados eletrônicos e de um sistema bancário "sombra" não regulamentado) facilitou-se a desindustrialização em regiões centrais tradicionais. O capital, em seguida, acelerou a sua dependência de uma série de "ajustes espaciais" para absorver a sobreacumulação de capital. Padrões de investimentos diretos estrangeiros em cascata generalizaram-se ao redor do mundo, mudando radicalmente a geografia da produção capitalista, facilitando novas formas (ultra-opressivas) de industrialização, de extração de recursos naturais e de produtos agrícolas primários nos mercados emergentes. A transferência de poder econômico hegemônico para a Ásia oriental - uma mudança que Giovanni Arrighi tinha há muito prescientemente antecipado - começou a ser mais e mais evidente (10).

 

Dois corolários seguiram-se então. Um deles foi a melhoria da rentabilidade das empresas financeiras em relação ao capital industrial e o encontro de novas formas de globalizar - e supostamente absorver - riscos através da criação de mercados de capitais fictícios (a rácio média de activos para dívida nos bancos dos E.U.A. passou de cerca de 1:3 para 1:30). Sociedades não financeiras (tais como fabricantes de automóveis) muitas vezes ganhavam mais dinheiro com as manipulações financeiras do que a produzir os seus artigos. O outro impacto foi uma intensificada dependência em relação à "acumulação por espoliação" como meio para aumentar o poder da classe capitalista. Aos novos ciclos de acumulação primitiva contra as populações indígenas e camponesas (principalmente na Ásia e América Latina) juntaram-se as perdas de ativos das classes mais baixas nas economias centrais, como testemunhado pelas perdas nas pensões e prestações sociais, bem como as enormes perdas no mercado imobiliário de risco (subprime) nos E.U.A.. A intensificação da concorrência global traduziu-se em menores lucros corporativos não financeiros.

 

5. O processo de trabalho

 

O processo de trabalho é onde se origina o lucro e o capital é produzido. O que acontece na fábrica, nos campos ou nos locais de construção é, portanto, crucial. A disciplina e a cooperação do trabalhador é aqui essencial para a acumulação. Indisciplina e falta de cooperação por parte do trabalho é uma ameaça permanente que precisa ser superada, quer pela cooptação e pela persuasão (a criação de círculos de qualidade, o apelo à lealdade de empresa e ao orgulho no trabalho), quer pela coerção (ameaças de perda de emprego ou mesmo, em alguns casos, a violência física). Os movimentos de delegados dos trabalhadores, os conselhos de fábrica e toda a espécie de outras formas de organização conferem poder ao trabalho, fazendo com que os capitalistas tenham de negociar ou abrir caminho à força para alcançar um mínimo de disciplina no trabalho. O capital aqui usa diferenças de gênero, etnia, raça, e até mesmo de religião para dividir e reinar no local de trabalho, se for possível. Embora tais diferenças tenham, obviamente, desempenhado um papel crucial no próprio mercado de trabalho, é aqui, no ponto de produção, onde eles se tornam mais importantes. No final da década de 1960 e em boa parte da década de 1970, o problema da disciplina do trabalho teve grande importância em regiões centrais do capitalismo. A deslocalização para paragens com trabalho mais dócil provou ser útil para o capital, como o é a disponibilidade de imigrantes e trabalhadores em situação irregular. Tal como nos mercados de trabalho, o equilíbrio de poder dentro do processo de trabalho mudou significativamente a favor do capital e grande parte da resistência fabril desmoronou-se a partir de 1980. Mas, como insistem os marxistas autonomistas, a disciplina do trabalho nunca pode ser totalmente garantida. É sempre um potencial ponto de resistência revolucionária (11).

 

6. Procura e procura efetiva

 

A nova mercadoria produzida tem que ser vendido pelo dinheiro adiantado mais um lucro. Alguém, em algum lugar, deve necessitar, querer ou desejar o produto e ter dinheiro suficiente para pagar por ele. O capitalismo tem uma história espantosa de produção de novas necessidades, vontades e desejos, em parte através da produção de novos estilos de vida (considere o que é necessário para manter uma família suburbana), mas também por intermédio de uma incessante barragem de anúncios e outros meios subliminares para manipular a psique humana por razões comerciais. Nem todas essas tentativas são bem sucedidas (a história está repleta de novos produtos que nunca encontraram um mercado), mas num mundo onde o consumo concorre com mais de dois terços da força motriz para a acumulação de capital, pelo menos nas regiões centrais da acumulação de capital, então os limites humanos aos desejos, necessidades e caprichos constituem um obstáculo potencial que o capital deve perpetuamente superar na busca de crescimento agregado.

 

Mas a outra questão, aqui, é encontrar consumidores com dinheiro suficiente para pagar. O crescimento agregado supõe que haverá mais dinheiro disponível no final do dia do que havia no início e a grande questão é: de onde vem esse dinheiro extra? Há três respostas básicas. Em primeiro lugar, os dinheiros detidos por facções não-capitalistas podem ser atraídos para o sistema. As "reservas de ouro" das classes feudais desempenharam um papel muito importante nos primeiros anos do capitalismo. Sugada pela usura e por outras formas de endividamento, bem como pelas práticas normais de comercialização, esta fonte de procura efetiva está hoje muito diminuída (embora a Igreja Católica possa ainda ter que derreter muitas das suas baixelas de ouro para pagar pelos pecados dos seus padres). A segunda opção, que Rosa Luxemburgo destacou, é constituída pelas reservas de ouro e prata dos países em grande parte situados fora da órbita do desenvolvimento capitalista. O imperialismo e o colonialismo aqui desempenharam um papel geralmente violento na abertura de novos mercados (por exemplo, as guerras do ópio na China no século XIX), assim procedendo à drenagem de riqueza das regiões outrora ricas como a China, a Índia, África e América Latina (12). Mas com a integração de muitas dessas regiões na circulação total do capital, estas formas de procura efetiva são agora insuficientes para sustentar o crescimento agregado da acumulação de capital. A terceira opção é a produção de procura efetiva a partir da dinâmica capitalista. A massa salarial é insuficiente e tem, em qualquer caso, vindo a cair em relação ao PIB nos últimos 30 anos. O consumo capitalista, por mais ostensivo que se torne, não pode fazê-lo também. A resposta é que o dinheiro a gastar com a expansão de investimento amanhã constitua a procura efetiva para escoar o produto expandido criado ontem. O crescimento de amanhã cria a procura efetiva para a produção expandida de ontem. O problema da procura efetiva de hoje é, assim, convertido no problema de encontrar novas oportunidades de investimentos rentáveis amanhã. Isso explica porque o crescimento agregado é tão essencial para a perpetuação do capitalismo.

 

Três questões surgem então. Em primeiro lugar, o intervalo de tempo entre o produto de ontem e o reinvestimento de amanhã tem de ser superado e isso implica o uso de dinheiro como moeda de conta. Os capitalistas financeiros voltam como agentes cruciais, que não operam apenas no início da seqüência de circulação do capital, mas também no seu final. Por exemplo, os financistas emprestam aos promotores imobiliários que contratam trabalhadores para construir casas que são adquiridas pelos trabalhadores com um empréstimo hipotecário, muitas vezes dos próprios financiadores iniciais. Esse sistema é inerentemente especulativo e propenso a produzir bolhas de habitação do tipo já assinalado.

 

Mas não são apenas os financistas que fazem isso. Capitalistas comerciais e mercadores compram dos produtores e se especializam em promover o artigo junto dos consumidores. Os capitalistas comerciais, como os financistas e os rentistas, extraem uma taxa de retorno pelos seus próprios esforços e podem vir a exercer um poder independente, como facção de classe, que tem muitas vezes desempenhado um papel significativo na formação das crises. As pressões colocadas sobre os produtores por organizações comerciais capitalistas como Walmart, Carrefour e toda uma série de cadeias de supermercados, juntamente com organizações comerciais, como Benetton, Gap, Nike e outras do género, realçam bem o que é a circulação de capital, tanto suavizando potenciais barreiras como criando concentrações de poder econômico potencialmente perigosas. Tal como acontece com os latifundiários e rentistas, o interesse do comerciante capitalista não é necessariamente concordante com o de toda a classe capitalista. Quando acompanhamos o que acontece com o preço do açúcar, por exemplo, enquanto se move a partir dos campos da República Dominicana até aos supermercados dos E.U.A., vemos que os verdadeiros produtores recebem menos de 5 por cento do preço final. A maior parte do lucro é tomado por intermediários comerciais.

 

A terceira questão é menos fácil de identificar, apesar de parecer estar a assumir cada vez mais importância na forma de funcionamento da circulação de capital. Quando o capital produzia principalmente coisas duradouras, estava sempre em perigo de saturar os mercados. Eu ainda estou usando os garfos prateado feitos em Sheffield que enfeitavam a mesa da minha avó. A vida útil dos produtos de consumo tem, portanto, de ser reduzida, de forma a que o capital possa sobreviver. Isso acontece, em alguma medida, com recurso às imposições da moda, por obsolescência planejada, fabricando coisas que quebram facilmente, através da inovação contínua (de i-pods para i-pads) e assim por diante. Esta pressão tem, nos últimos anos, conduzido a uma mudança da produção de coisas para a produção do espetáculo - uma mudança que Guy Debord prescientemente entendeu quando escreveu ‘A Sociedade do Espetáculo’, em 1967 (13). Considere-se, tão só, os meios empregues na produção dos Jogos Olímpicos, não só em novas infra-estruturas físicas, mas também os vastos recursos necessariamente usados numa cerimônia de abertura (lembre-se o espetáculo de Barcelona e, posteriormente, o espetáculo espantoso de Pequim). Mais e mais capital, portanto, circula na produção de eventos espetaculares e efêmeros, com todos os tipos de conseqüências daí decorrentes para o consumismo, assim como para a vida urbana. Mas produções deste tipo são, invariavelmente, financiadas através da dívida e, como a história das Olimpíadas demonstra claramente, encontrar o dinheiro para pagar depois as dívidas acumuladas é muitas vezes problemático. Talvez não seja por acaso que a Grécia, tendo encenado os Jogos Olímpicos em 2004, esteja agora em destaque na crise internacional, por causa da sua dívida soberana.

 

Com os salários reais estagnados ou em queda desde 1980, o défice da procura efetiva foi superado, em larga medida, pelo recurso ao sistema de crédito. Nos Estados Unidos, em particular, a dívida das famílias triplicou de 1980 a 2005 e muita dessa dívida foi acumulada em torno do mercado de habitação, especialmente a partir de 2001. Todos os tipos de inovações financeiras, juntamente com políticas de Estado que muitas vezes tiveram o efeito de subsidiar ou mesmo pagar às pessoas e corporações para se endividarem, manteve a taxa de crescimento agregado em andamento. Esta foi a bolha fictícia que estourou em 2008. Mas, novamente, observe-se a sequência. A repressão salarial produz um défice de procura efetiva, que é coberto por um crescente endividamento, que acaba por conduzir a uma crise financeira, que se resolve por meio de intervenções estatais, que se traduzem em crises fiscais dos respectivos estados, as quais, segundo a sabedoria econômica convencional, serão resolvidas de forma mais eficaz através de maiores reduções no salário social.

 

 7. A circulação do capital como um todo

 

Quando considerada no seu todo, vemos uma série de pontos potenciais de bloqueio na circulação de capital, qualquer um deles com potencialidade para ser a fonte de uma crise. Não há, portanto, nenhuma teoria causal única da formação das crises, como muitos economistas marxistas gostam de afirmar. Não adianta, por exemplo, tentar ensacar toda esta fluidez e complexidade em uma teoria unitária como, por exemplo, a da queda da taxa de lucro. Na verdade, as taxas de lucro podem cair por causa da incapacidade em superar qualquer um dos bloqueios identificados aqui. É tarefa própria da análise materialista histórica lidar com a questão de saber onde estão os bloqueios principais desta vez. Mas as soluções encontradas em um ponto têm implicações para o que acontece em outros lugares. O problema do trabalho (tanto no respectivo mercado como na fábrica), que foi central no final da década de 1960, nas regiões centrais, não poderia ser superado a não ser pela abertura de um espaço global às leis coercitivas da competição. Isso exigiu uma revolução na arquitetura do sistema financeiro mundial, que aumentou a probabilidade da occorrência de "exuberância irracional" no sistema financeiro. A consequente repressão salarial contraíu a procura efetiva, o que poderia apenas ser superado pelo recurso ao sistema de crédito. E assim por diante.

 

A conclusão teórica fundamental é: o capital nunca resolve suas tendências de crise, ele simplesmente as move em redor. Isto é o que a análise de Marx nos diz e é à volta disso que a história dos últimos quarenta anos tem girado. Ninguém sustenta agora que o poder excessivo do trabalho é a fonte do problema atual, como o faziam na década de 1970. Se qualquer coisa, o problema é que o capital em geral e as finanças em particular, são muito poderosas e que o Estado não pode intervir para reequilibrar as coisas, porque está cativo - política e economicamente – dos interesses de classe capitalistas, financeiros, rentistas, produtores e comerciais. A mutação dinâmica de uma crise no sistema financeiro, centrada nos bancos, para uma crise fiscal dos Estados, está produzindo um novo assalto aos direitos do trabalho, especialmente no setor público, bem como sobre o salário social. Mas se o poder de compra e a confiança dos consumidores, em seguida, se afundam, então onde estará o mercado? A grande incógnita aqui, no entanto, é saber se surgirá ou não uma resistência de massa para contestar a austeridade necessária para reduzir os défices do Estado.

 

O desenvolvimento geograficamente desigual da crise

 

Sabemos que a crise do capital (ao contrário do que sucedia com muitos proprietários de casas e trabalhadores, que estavam angustiados há já bastante tempo) começou no mercado imobiliário do sul da Califórnia, Arizona, Nevada e Flórida, em 2007. Este foi o epicentro preliminar da crise (14). Mas porquê lá e porquê então? A crise, então, se espalhou rapidamente através das empresas de financiamento hipotecário (como a Countrywide, dos E.U.A.) para as principais instituições financeiras (como o Bear Stearns), que ainda mantinham uma boa quantidade do que se tornaram activos "tóxicos" da dívida hipotecária securizada. Em seguida, ela se espalhou para outras instituições que, ou detinham a dívida (como a Fannie Mae e o Freddie Mac), investiram na dívida (todos os que investiram em obrigações de dívida garantidas), seguraram o pagamento a dívida ou praticaram sobre ela outras operações financeiras (como a AIG). A falência paralela do Northern Rock, na Grã-Bretanha, indicou que havia problemas ocultos nos mercados imobiliários doutros lugares (como ultimamente se tornou evidente, em Espanha e na Irlanda em particular). As instituições financeiras sedeadas em Nova Iorque e Londres tornaram-se depois o epicentro da crise. Coube, pela maior parte, aos governos norte-americano e britânico, juntamente com a Reserva Federal e o Banco da Inglaterra, estabilizar a situação.

 

A queda do Lehman Brothers, em setembro de 2008, enviou um sinal de contágio global (foi isso apenas um erro enorme, uma cedência ao apelo populista para castigar os pecadores de Wall Street ou um manobra deliberada para transpor a crise, de local, para uma escala global?). A crise, provavelmente, tornar-se-ia global de qualquer maneira, dada a interdependência existente nas redes financeiras globais. Bancos em outros lugares (por exemplo, na Alemanha e na França) tinham comprado dívidas tóxicas, como o tinham feito governos, municípios e fundos de pensões, da Flórida à Noruega. Todos eles sentiram o perigo. Não importa onde estivessem sedeados, os titulares das dívidas tóxicas estavam em dificuldades. As instituições financeiras canadianas e da Ásia Oriental, por outro lado, mantiveram-se inafetadas, porque tinham pouca exposição a estes produtos.

 

Mas depois do Lehman, todo o sistema de crédito global (em que o crédito interbancário é crucial) congelou e isso formou um bloqueio primário imediato para a continuidade dos fluxos de capital. Empresas perfeitamente sãs, de repente se viram em dificuldade porque não podiam reciclar sua dívida. Muitas empresas resgataram-se demitindo funcionários em massa e intensificando a repressão salarial. O consumismo alimentado pela dívida e a procura efectiva foram paralisados, a confiança do consumidor caiu abruptamente e o desemprego aumentou, embora a taxas radicalmente diferenciadas, tanto entre países como no seio de alguns deles: compare, por exemplo, o Minnesota e o Ohio, nos E.U.A., ou a Espanha (20 por cento) e a Holanda (6 por cento), na Europa em 2009. As principais economias de exportação, em seguida, foram atingidas, pois que o comércio mundial se contraíu em cerca de vinte por cento no início de 2009, provocando enormes dificuldades para as empresas e enfáticas ondas de desemprego na Ásia oriental, bem como na Alemanha, no Brasil e em outros lugares. Uma escalada inicial dos preços das matérias-primas (petróleo, em particular), que acabou por se revelar altamente especulativa, entrou em colapso face ao declínio das taxas de crescimento. Os produtores de matérias-primas ficaram em apuros. A economia global estava claramente se dirigindo para uma enorme depressão, a menos que o governo agisse.

 

O que, então, se seguiu dependeu crucialmente dos imperativos, da capacidade e da vontade dos diferentes governos utilizarem as suas diferentes competências (individual ou coletivamente) para enfrentar a crise. Diante da ameaça de uma depressão na escala da dos anos 1930, houve um crescente clamor inicial para ressuscitar soluções de estilo keynesiano. A resposta imediata, após a derrocada do Lehman, era resgatar, estabilizar e, eventualmente, reformar a arquitetura financeira (tanto local como globalmente), construindo um estímulo financiado pela dívida para lidar com o colapso da procura efetiva. Os E.U.A. não poderiam, no entanto, agir sozinhos, e por isso o G8 foi substituído pelo G20, uma coalizão de estados liderantes que representavam a maioria da atividade econômica no mundo do mercado. A busca de uma saída sistêmica da crise foi impedida, no entanto, por uma série de dificuldades esmagadoras, entre as quais avultavam as muito diversas ideologias políticas, necessidades e configurações das forças de classe e de interesses especiais, nos vários Estados do G20.

 

Os Estados Unidos, por exemplo, já estavam profundamente mergulhados em dívida para com o resto do mundo (15). Uma questão era saber se o "refúgio seguro" dos activos denominados em dólares atrairia influxos de dólares para apoiar a dívida e manter as taxas de juro de longo prazo baixas no futuro previsível. O fato de que as taxas de juro de longo prazo terem até diminuído, desde 2008, parece sugerir que não há qualquer problema. Mas, no primeiro semestre de 2010, os governos estrangeiros foram vendedores líquidos de títulos dos E.U.A.. Foram precisos o aumento das taxas de poupança nos E.U.A., a perda de confiança no mercado de ações e a fuga das poupanças internas para os títulos do tesouro dos E.U.A. para manter os juros baixos. Era sempre perigoso para os E.U.A. tentar um estímulo numa escala grande o suficiente (digamos US$ 2 triliões de dólares em vez dos US$ 800 biliões) para resultar internamente, quanto mais arrastar o resto do mundo de volta a um caminho de crescimento agregado (como o fizera já, após 1945). Nos E.U.A. houve também fortes objecções políticas do Partido Republicano, que aproveitou a onda de histeria populista de direita contra uma intervenção governamental excessiva e viu na oposição a mais financiamentos do défice um meio de impedir qualquer recuperação que pudesse redundar em vantagem eleitoral para Obama e o Partido Democrata. O estímulo criado foi dirigido, por razões ideológicas, no sentido de cortes nos impostos para uma classe que pode bem passar sem gastar, em oposição aos grupos carentes da população, que certamente o fariam. Finalmente, as melhores formas de estímulo residiam na prestação de serviços sociais e na criação de infra-estruturas físicas que aumentassem a produtividade e melhorassem a eficiência dentro do espaço nacional. Mas os E.U.A. não tinham em mente nenhuns projetos claros de qualquer destes tipos.

 

A recusa inicial dos republicanos em apoiar ajuda às finanças de Estado e locais indicava uma vontade de cortar nos serviços sociais, em vez de expandi-los (uma determinação parcialmente compensada por fundos de estímulo de curto prazo para a educação e, posteriormente, por uma infusão tardia e fraca de apoio aos governos estaduais e municipais). E as infra-estruturas físicas tinham que ser "prontas a construir", o que significava que eram, na sua maior parte, uma continuação dos investimentos em desenvolvimento urbano e suburbano que tinha levado à crise, em vez de um movimento inovador no sentido de uma política nacional de desenvolvimento urbano que ajudasse a sair da crise no longo prazo (por exemplo, poupança de energia, ao invés de expansão da sua procura). A única inovação foi um fraco apoio para fontes alternativas de energia. Finalmente, muitos aspectos-chave de um programa completo keynesiano foram mantidos fora da discussão. Em primeiro lugar, uma maior afirmação social do trabalho, como uma forma de reverter as desigualdades de renda crônicas. Atenuar as enormes desigualdades sociais que surgiram na década de 1920 era visto, na década de 1930, como uma forma de estimular a procura efetiva. A política neoliberal dos anos 1980 e 1990 produziu desigualdades de riqueza e renda que não eram vistas desde os anos 1920, precisando de uma reversão similar. Mas o desequilíbrio de poder entre capital e trabalho não poderia ser enfrentado, por medo de se ser chamado e amaldiçoado como "socialista" ou "comunista" por uma poderosa máquina de propaganda da extrema direita. As forças da classe dominante (o "Partido de Wall Street"), com forte influência dentro de ambos os partidos políticos, recusaram liminarmente aceitar uma recalibração dos poderes relativos de capital e trabalho operada pelo Estado. O desequilíbrio de poder que esteve na raiz da crise deveria permanecer intocável.

 

Após uma fase inicial da recuperação, na qual sinais auspiciosos foram procurados ansiosamente em todo o cenário econômico, a economia dos E.U.A. resvalou novamente para baixo crescimento e alto desemprego na Primavera de 2010, com poucas perspectivas de um renascimento dramático. Os lucros das empresas e o mercado acionário começaram a reviver, mas sob condições de menor volume de negócios e selváticas reduções de custos, nomeadamente no que respeita aos salários. O renascimento dos lucros veio à custa do aumento do desemprego, em vez de aliviar a repressão salarial, com efeitos negativos sobre a confiança dos consumidores e sobre a procura efectiva interna (as concessões salariais extraídos dos trabalhadores da indústria automóvel no salvamento GM são um exemplo). Este não foi um caminho feito em direcção a um crescimento sustentável. Se ele apontou para algo, foi para a deflação. Um renascimento de uma espécie mais robusta teria de vir de outro lugar.

 

Dona de excedentes enormes e de um sistema bancário desafogado, facilmente manipulado pelo governo central, a China tinha os meios para agir de uma forma mais completa e caracterizadamente keynesiana. A quebra das indústrias orientadas para a exportação e a ameaça de desemprego em massa e de instabilidade, no início de 2009, forçaram a mão do governo. O pacote de estímulo desenvolvido teve duas vertentes. Perto de US $ 600 biliões foram colocados em grande parte em projetos de infra-estruturas - construção de estradas a uma escala que supera a do sistema de rodovias interestaduais dos E.U.A. nos anos 1960, novos aeroportos, grandes projetos de água, as linhas ferroviárias de alta velocidade e até mesmo cidades inteiramente novas. Em segundo lugar, o governo central forçou os bancos a alargar o crédito para projetos locais, tanto públicos como privados.

 

A grande questão é se esses investimentos vão aumentar a produtividade nacional. Dado que a integração espacial da economia chinesa está longe de estar completada, não há razões para acreditar que vão fazê-lo. Mas se estas dívidas poderão ser pagas no seu vencimento ou se a China se tornará, mais tarde, no epicentro de mais uma crise capitalista mundial, é uma questão em aberto. Um efeito negativo foi a renovação da especulação nos mercados de habitação, com uma duplicação do preço do imobiliário em Xangai em 2009. Há outros sinais preocupantes de excesso de capacidade na indústria e de infra-estruturas. Muitos bancos estarão, ao que se diz, sobreexpostos. Há sinais do surgimento de um sistema descontrolado de banca sombra (“shadow banking") que está a repetir alguns dos erros que ocorreram nos E.U.A. a partir da década de 1990. Mas os chineses têm já lidado anteriormente com empréstimos incobráveis, em dimensão tão elevada quanto 40 % dos activos, no final de 1990. Eles então usaram suas reservas cambiais para liquidar os empréstimos incobráveis. Diferentemente do que se passou com o programa TARP, nos E.U.A., que foi aprovada por um Congresso relutante e que promoveu muito ressentimento público, os chineses podem tomar medidas imediatas para recapitalizar o sistema bancário. Uma questão aparentemente mais em aberto será saber se eles podem ou não reprimir e controlar comportamentos de banca sombra.

 

Os chineses, finalmente, abraçaram outros aspectos de um programa keynesiano: estimulando o mercado interno, promovendo a afirmação social do trabalho e tratando da desigualdade social. O governo central, de repente, pareceu disposto a tolerar ou incapaz de resistir a greves espontâneas (não organizadas pelos sindicatos oficiais controlados pelo Partido Comunista) em alguns grandes produtores como a Toyota, Honda e a Foxconn, no verão de 2010. Estas greves resultaram em aumentos salariais significativos (na faixa de 20 a 30 %, ou por aí). A política de repressão salarial estava sendo revertida. O governo aumentou os investimentos em saúde e nos serviços sociais, apostando forte no desenvolvimento de tecnologias ambientais, ao ponto de a China ser agora um líder global nesse campo. O pavor de se ser apelidado de socialista ou comunista, que atormenta a ação política nos Estados Unidos, soa obviamente cômico para os chineses. Mas há sinais perigosos de inflação e pressões graves (tanto internas como externas) para revalorizar o remnimbi. O sistema bancário pode não ser tão saudável quanto parece. Como os salários sobem, o capital está se movendo para o exterior, para locais de baixos salários no Bangladesh, Camboja e outras partes do Sudeste da Ásia.

 

A China emergiu da crise mais rápido e com mais sucesso do que qualquer outro país, com as taxas de crescimento a ressurgir rapidamente para os 8 ou até 10 por cento. O aumento da procura interna efectiva não ocorreu só na China, mas arrastou outras economias, especialmente as produtoras de matérias-primas. A Austrália floresceu, por exemplo. A General Motors faz mais carros e lucros na China do que em qualquer outro lugar no mundo. A China havia estimulado um reavivar parcial no comércio internacional e na procura por seus produtos de exportação típicos (o comércio com a América Latina aumentou dez vezes desde 2000, por exemplo). As economias orientadas para a exportação, em geral, particularmente as situadas na maior parte do Leste e do Sudeste Asiático, juntamente com as da América Latina, têm-se reavivado mais rapidamente do que outras. Os investimentos da China na dívida dos E.U.A. ajudaram a sustentar aí a procura efectiva por seus produtos de baixo custo, mas há sinais de que ela está gradualmente a diversificar a sua carteira de investimentos. O efeito tem sido o de alterar o equilíbrio do poder econômico, para produzir uma mudança hegemônica dentro da economia global.

 

A revitalização das economias orientadas para a exportação chegou também à Alemanha. Mas isto leva-nos para o problema das respostas desencontradas para a crise em toda a União Europeia. Após uma explosão inicial de políticas de estímulo, a Alemanha assumiu a liderança, arrastando com ela uma França mais relutante, para converter a Zona Euro a uma política monetária de redução do défice, através da redução drástica das despesas públicas. Esta política é agora secundada pela nova coligação governamental liderada pelos conservadores na Grã-Bretanha. Essa política coincidiu com a súbita deterioração das finanças públicas em outros lugares. O conjunto de países conhecido pelo acrónimo inglês PIGS (Portugal, Irlanda, Grécia e Espanha), encontrou-se em grandes apertos financeiros, em parte por culpa da sua própria má gestão, mas ainda mais significativamente porque as suas economias eram particularmente vulneráveis ao colapso do crédito e à queda brusca nos mercados imobiliário e de turismo. Faltando-lhes a base industrial de países como a Alemanha, eles não puderam responder adequadamente à crise fiscal que os ameaçava.

 

A grande questão era então: a crise financeira tem sido estabilizada à custa da criação de uma crise fiscal nos estados capitalistas (com a Califórnia assemelhando-se cada vez mais a um dos maiores estados falhados do mundo)? Rumores que correram sobre o estado das finanças da Grã-Bretanha e o fato de que muitos outros países mais fracos, como a Letónia e a Hungria, já estarem encostados às cordas, sugeriu sérios problemas subjacentes nas finanças dos Estados, que poderiam até mesmo, em algum ponto, focalizar-se sobre a sustentabilidade do défice dos E.U.A.. Foi nesse clima que a maior parte do mundo capitalista mudou a sua preocupação para a redução do défice, em vez de prover estímulos do tipo keynesiano financiados por défice. Assim que a crise deixou de ser uma crise financeira no sector bancário para passar a ser uma crise fiscal do Estado, então imediatamente surgiu a oportunidade política para efetuar novos cortes selvagens no que restava do Estado Providência. Os bancos foram salvos. Isso feito, em clássico estilo neoliberal, foi altura, evidentemente, de passar a conta para o povo, pela tomada de medidas de austeridade draconianas, ao invés de medidas de estímulo.

 

Como resultado disto, a paisagem política mudou, em muitos lugares, evidenciando de novo as formas mais clássicas da luta de classes, com os sindicatos (sobretudo no sector público) e as populações afetadas (estudantes, aposentados, etc.) a lutarem contra esta austeridade, da Califórnia à Grécia. Porque tem o povo de pagar pelos erros e pela corrupção de uma classe capitalista que continua a consolidar a sua riqueza e poder?

 

Mas houve e há variações abundantes, tanto em termos de impacto como de respostas. O Líbano estava tão ocupado reconstruindo-se, a partir do bombardeamento israelense de 2006, que mal notou o início da crise financeira mundial (apesar de ter crises políticas próprias suas em abundância). O Brasil se recuperou rapidamente, em parte a reboque do comércio da China, mas também por causa do aumento da procura interna, induzido pelas políticas de redistribuição de Lula para com os pobres (o Bolsa Família). A Índia foi relativamente isolada da crise, uma vez que o seu principal produto de exportação, em serviços, foi menos afetado e o seu sistema financeiro é relativamente sólido. Alguns estados, como Kerala, sofreram com a perda de remessas dos Estados do Golfo, mas em outros lugares deu-se um começo de expansão, embora de solidez questionável, particularmente com base na construção, sustentando altas taxas de crescimento. O número de bilionários indianos duplicou, só no ano de 2009. O Haiti, por outro lado, sofreu uma grave perda de remessas dos E.U.A. e, em seguida, entrou em colapso integral, na sequência do sismo e de suas terríveis conseqüências.

 

O deslocamento da crise em redor do mundo, tanto na sua forma como na sua intensidade, criou uma dinâmica de efeitos geográficos em cascata até ao ponto em que já nada poderia ser facilmente previsto. A partir de um epicentro no Sudoeste dos E.U.A. e Flórida até ao colapso da Dubai World e à crise grega da dívida soberana, ninguém poderia facilmente prever ou antecipar onde se sentiria o próximo tremor, quão severo seria o choque ou quais seriam as respostas políticas. Da mesma forma, a rápida recuperação da China, da Índia e do Brasil tem sido surpreendente. A geografia do tudo isto pode, com muito esforço, ser rastreada, mas não é facilmente previsível. No entanto, as vulnerabilidades existentes dentro do sistema global são claras. Um colapso do mercado imobiliário e inflação galopante na China, uma queda dos preços do petróleo que atinja a Rússia de forma muito dura, juntamente com a Venezuela e os Estados do Golfo, uma onda de protestos políticos partindo da Grécia para a Espanha, França, Grã-Bretanha e a Califórnia, ou, simplesmente, uma súbita deterioração da confiança dos consumidores nos Estados Unidos ou de investidores estrangeiros na viabilidade da dívida dos E.U.A.. Qualquer um destes acontecimentos provavelmente irá submeter todo o sistema a uma espiral negativa ou a uma guinada em direção a uma diferente configuração de poder mundial que veja uma metade do mundo (quase certamente a Ásia) crescer rapidamente, em detrimento da outra metade.

 

A alternativa da esquerda

 

Muitos sonham, há longo tempo, que uma alternativa para a (ir)racionalidade capitalista pode ser encontrada racionalmente através da mobilização das paixões humanas na busca coletiva de uma vida melhor para todos. Essas alternativas - historicamente chamado de socialismo ou comunismo – têm sido tentadas, em várias épocas e lugares. Em épocas anteriores, como na década de 1930, a visão de uma ou outra delas forneceu um farol de esperança. As práticas que fluiram a partir dessa fonte melhoraram, sem dúvida, a vida de muitos e salvaram o capitalismo da auto-destruição depois de 1945. Mas, nos últimos tempos, tais alternativas perderam o seu brilho, em parte devido ao fracasso das experiências históricas com o comunismo em fazer jus às suas promessas. Protestos políticos contra a situação de crise têm sido irregulares, mas em alguns casos vociferantes (tanto da esquerda como da direita), em resposta ao colapso de 2008.

 

Pode vir a verificar-se que 2009 tenha marcado o início de uma prolongada reforma mental, na qual a questão de achar alternativas compreensivas e de grande alcance para o capitalismo comece paulativamente a borbulhar à superfície, em uma parte do mundo ou outra. Quanto mais a incerteza e a miséria forem prolongadas, mais questionada será a legitimidade da forma actual de fazer negócios e a exigência de construir algo de diferente irá fazer-se sentir cada vez mais.

 

O problema central a ser abordado é bastante claro: o crescimento agregado para sempre não é possível: a acumulação de capital não pode mais ser a força central impulsionadora da evolução social. Os problemas que afligem o mundo, nestes últimos 30 anos, assinalam que está se aproximando um limite que não pode ser superado. Adicione a isso o fato de que tantas pessoas no mundo vivem em condições de abjecta pobreza, que a degradação ambiental está a ficar fora de controle, que a dignidade humana em todos os lugares está sendo ofendida, enquanto os ricos vão açambarcando cada vez mais riqueza à custa de toda a gente. Enquanto isso, na maioria dos lugares, as alavancas do poder ideológico, político, institucional, judicial, militar e os meios de comunicação estão sob o um forte controle político. Isso serve para perpetuar o status quo político e frustrar a oposição, mesmo que a economia e os níveis de vida se deteriorem. A "liberdade", então, torna-se apenas uma outra palavra para justificar a repressão.

 

Uma política revolucionária que possa enfrentar o problema da acumulação ilimitada de capital e, eventualmente, neutralizar o poder de classe que a impulsiona para a frente, exige uma adequada teoria da mudança social. A exposição de Marx sobre como o capitalismo surgiu a partir do feudalismo encarna, na verdade, uma tal "teoria co-revolucionária" (16). Uma mudança social surge, argumenta ele, através do desdobramento dialético de relações entre sete momentos dentro do corpo social e político:

 

a) Formas tecnológicas e organizacionais de produção, troca e consumo.

 

b) As relações com a natureza.

 

c) As relações sociais entre as pessoas.

 

d) As concepções mentais do mundo, abrangendo conhecimentos, entendimentos culturais e crenças.

 

e) Os processos de trabalho e de produção de determinados bens, geografias, serviços ou afetos.

 

f) Mecanismos institucionais, legais e governamentais.

 

g) A conduta da vida diária e as atividades de reprodução social.

 

Cada um desses momentos é internamente dinâmico, marcado por tensões e contradições (basta pensar em nossas diversas e contrastadas concepções mentais do mundo), mas todos eles são co-dependentes e co-evoluem em relação com cada um dos outros, dentro de uma totalidade, entendida como um conjunto (“ensemble”) gramsciano ou lefèbvriano ou mais como uma montagem ("assemblage") deleuziana de momentos. A transição para o capitalismo implicou um movimento de apoio mútuo entre todos os sete momentos da totalidade. As novas tecnologias não poderiam ser identificadas e aplicadas sem novas concepções mentais do mundo (incluindo a da relação com a natureza, os novos processos de trabalho e as novas relações sociais).

 

Os teóricos sociais, muitas vezes, tomam apenas um desses momentos e vêm-no como a "bala de prata" que dá causa a todas as mudanças. Temos deterministas tecnológicos (Tom Friedman), deterministas ambientais (Jared Diamond), deterministas da vida diária (Paul Hawken), deterministas do processo de trabalho (os marxistas “autonomistas”), deterministas da luta de classes (a maioria dos partidos políticos marxistas), os institucionalistas, e assim por diante (17). Do ponto de vista de Marx, estão todos errados. É o movimento dialético entre os vários momentos que realmente conta, mesmo que haja um desenvolvimento desigual nesse movimento.

 

Quando o próprio capitalismo passa por uma de suas fases de renovação, fá-lo precisamente co-envolvendo todos os momentos, não sem tensões, choques, lutas e contradições, obviamente. Pense-se em como estes sete momentos foram configuradas por volta de 1970, antes do surgimento do neoliberalismo, e considere-se como eles aparecem agora; todos eles mudaram em relação uns com os outros e, assim, mudou o funcionamento do capitalismo como um todo.

 

Esta teoria nos diz que um movimento político anticapitalista pode começar em qualquer lugar: nos processos de trabalho, em torno de concepções mentais, na relação com a natureza, nas classes ou em torno de outras relações sociais, na concepção de tecnologias e formas de organização revolucionárias, a partir da vida diária ou através de tentativas de reformar as estruturas institucionais e administrativas, incluindo a reconfiguração dos poderes do Estado. O truque é manter o movimento político em deslocação de um momento para outro, de forma a que estes se reforcem mutuamente (18). Foi assim que surgiu o capitalismo a partir do feudalismo e é assim que uma alternativa radicalmente diferente pode surgir a partir do capitalismo. As tentativas anteriores de criar uma alternativa comunista ou socialista fatalmente não conseguiram manter em movimento a dialética entre os diferentes momentos e não conseguiram trilhar os caminhos imprevisíveis e incertos no movimento dialético entre eles.

 

O problema para a esquerda anticapitalista é construir formas organizativas e desencadear uma dinâmica co-revolucionária que possa substituir o actual sistema de acumulação de capital por outras formas de coordenação social, troca e controle, que permitam proporcionar um estilo e padrão adequado de vida para os 6,8 biliões de pessoas vivendo no planeta Terra. Esta não é uma tarefa fácil e eu não pretendo ter qualquer resposta imediata (apesar de ter algumas idéias) de como isso poderia ser feito. Mas penso que é imperativo que as formas de organização e estratégias políticas coincidam com o diagnóstico e as descrições de como o capitalismo contemporâneo está realmente funcionando. Infelizmente, o apego feroz de muitos movimentos para com o que podemos chamar de "fetichismo da forma organizativa" obstaculiza que qualquer grande movimento revolucionário possa resolver este problema. Os anarquistas, autonomistas, ambientalistas, grupos de economia solidária, partidos de esquerda revolucionária tradicionais, ONG's reformistas e social democratas, os sindicatos, institucionalistas, movimentos sociais de tipos muito diversos, todos têm suas regras de organização favoritas e exclusivistas, muitas vezes derivadas de princípios abstratos e, por vezes, opiniões excludentes quanto a quem poderá ser o agente principal desencadeador de uma revolução social. Há sérios obstáculos à criação de uma organização abrangente da esquerda que possa internalizar as diferenças mas assumir, ainda assim, o tratamento dos problemas globais que nos confrontam. Alguns grupos, por exemplo, renunciam a qualquer forma de organização que cheire a hierarquia. Mas o estudo de Elinor Ostrom sobre as práticas de propriedade comum mostra que a única forma de gestão democrática que funciona, quando estão envolvidas populações de mais de algumas centenas de pessoas, é uma rede hierarquizada de tomada de decisões. Grupos que excluam todas as formas de hierarquia, deste modo, desistem de ter qualquer perspectiva de resposta democrática, não apenas para o problema dos bens comuns globais, mas também para o problema da contínua acumulação de capital (19). A forte ligação entre o diagnóstico e a ação política não pode ser ignorada (20). Este é um bom momento, portanto, para que todos os movimentos dêm um passo atrás e analisem como os seus métodos e formas organizacionais preferidos se relacionam com as tarefas revolucionárias colocados na conjuntura atual do desenvolvimento capitalista.

 

 

 

 

(*) David Harvey (n. 1935), geógrafo marxista inglês, formado na Universidade de Cambridge e atualmente professor na City University de Nova Iorque (CUNY), é um autor internacionalmente muitíssimo reconhecido na área das ciências sociais. Algumas das suas obras mais influentes são The Limits to Capital (1982),The Condition of Postmodernity (1989), Justice, Nature and the Geography of Difference (1996), Spaces of Capital: Towards a Critical Geography (2001), The New Imperialism (2003), A Brief History of Neoliberalism (2005). Este documento foi preparado para as reuniões da Associação Americana de Sociologia em Atlanta, 16 de Agosto, 2010. Tradução de José de Almada e Ângelo Novo.

 

 

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Notas:

 

(1) Schneider, H., 2010, “’Systemic risk’ is the new buzz word as officials try to prevent another bubble,”, Washington Post, 26 de Julho de 2010.

 

(2) Harvey, D., 2010, ‘The Enigma of Capital: And the Crises of Capitalism’, London, Profile Books.

 

(3) Maddison, A., 2007, ‘Contours of the World Economy, 1-2030 AD: Essays in Macro-Economic History’, Oxford: Oxford University Press.

 

(4) Harvey, D., 2003, Paris: Capital of Modernity, New York: Routledge.

 

(5) Bonney, R. (ed), ‘The Rise of the Fiscal State in Europe, c.1200-1815’, Oxford: Oxford University Press, 1999.

 

(6) McKinnon, R., 1973, ‘Money and Capital in Economic Development’, Washington D.D.: Brookings Institution Press.

 

(7) O'Connor, J., 1997, ‘Natural Causes: Essays in Ecological Marxism’, New York: Guilford Press.

 

(8) Arrighi, G., 1978, ‘Towards a theory of capitalist crisis’, New Left Review, 1/111, Setembro-Outubro, 1978, 3-24.

 

(9) Bellamy Foster, J e Magdoff, F., 2009, ‘The Great Financial Crisis: Causes and Consequences’, New York, Monthly Review Press.

 

(10) Arrighi, G., 1994, ‘The Long Twentieth Century: Money, Power and the Origins of Our Times’, London: Verso.

 

(11) Cleaver, H., 1979, ‘Reading Capital Politically’, Austin: University of Texas Press.

 

(12) Luxemburgo, R., 2003, ‘The Accumulation of Capital’, New York, Routledge, Second Edition.

 

(13) Debord, G., 2000, ‘The Society of the Spectacle’, Detroit: Black and Red Books edition.

 

(14) Bardhan, A. and Walker, R. 2010, ‘California, Pivot of the Great Recession’, Working Paper Series, Institute for Research on Labor and Employment, UC Berkeley.

 

(15) O argumento a seguir exposto, agora atualizado, foi primeiro colocado no início de 2009 em Harvey, D., ‘Why the Stimulus Package is Bound to Fail’.

 

(16) O que se segue é baseado em Harvey, D., ‘The Enigma of Capital’, op.cit., Capítulo 8.

 

(17) Friedman, T. edição de 2006, ‘The World is Flat: A Brief History of the Twenty-First Century’, New York, Farrar, Strauss and Giroux; Diamond, J. op.cit.; Hawken, P., 2007, ‘Blessed Unrest: How the Largest Movement in the World Came into Being and Why No One Saw It Coming’, New York: Viking; Holloway, J. 2005, ‘Change the World Without Taking Power’, London: Pluto Press; Held, D., 1995, ‘Democracy and the Global Order: From the Modern State to Cosmopolitan Governance’, London: Polity Press.

 

(18) Harvey, D., 2010, ‘Organizing for the Anti-Capitalist Transition'.

 

(19) Ostrom, E., 1990, Governing the Commons: The Evolution of Institutions for Collective Action, Cambridge: Cambridge University Press.

 

(20) Num recente apanhado critico de algumas das minhas teses, vários comentadores aceitaram de bom grado os meus diagnósticos mas disputaram ferozmente os meus comentários sobre formas organizativas. Veja-se ‘Debating David Harvey’, Interface, Volume 2, Nº 1 (Maio 2010), ‘Crises, Social Movements and Revolutionary Transformations’.

 

Fonte: ocomuneiro.com