Sérgio Lessa: Quem é o vândalo?

Quem é o vândalo?

Tome uma sociedade na qual duas em cada 20 pessoas ficam com mais riqueza do que as restantes 18. Faça com que, dessas 18 pessoas, pelo menos 12 ou 13 vivam em favelas ou bairros e moradias muito piores do que os canis dos cachorros das 2 pessoas que ficam com toda a riqueza. Faça com que, dessas 18 pessoas, 16 tenham que enfrentar enormes filas de ônibus, metrôs e/ou que gastem quase metade das horas que trabalham no trânsito. Enquanto os filhos daqueles dois cidadãos têm as melhores escolas, quase sempre no exterior, os filhos de 4 das 18 pessoas tenham que pagar muito caro por uma educação privada e ruim; os filhos das 14 pessoas restantes são deixados para as escolas públicas, pouco mais do que depósito de crianças e adolescentes para que os pais e mães possam trabalhar. Quando chegarem à velhice ou ficarem doentes, faça com que 16 das 18 pessoas desejassem um atendimento médico semelhante aos dos animais de estimação das pessoas mais ricas e transforme a doença em enorme fonte de lucro para as pessoas que já ficam com mais da metade da riqueza.
Organize a economia do país de tal modo que 60% da força de trabalho sejam deslocadas para o trabalho informal, isto é, faça com que a maior parte das pessoas em idade de trabalhar não saibam de onde virá o sustento do próximo mês, vivendo literalmente da mão para a boca graças a pequenos bicos, empregos temporários ou pequenos furtos e malandragens. Organize a economia de tal modo que esta parcela da população tenha certeza de que as coisas ficarão piores no futuro do que já são hoje. Construa enormes shoppings centers que expõem todas as maravilhas que farão a falsa felicidade de não mais do que 4 ou 5 das 20 pessoas; construa lojas de carro, móveis e roupas de luxo que exibem o quanto os patrões desperdiçam da gigantesca fortuna que amealham todos os dias. Uma vez por ano, faça festas populares que em alguns poucos dias queimam centenas de milhões de reais (como o Carnaval carioca) apenas para enriquecer os donos do turismo, organize Olimpíadas, Copas e mais Copas de futebol, promova a sangria do dinheiro público, pela corrupção e não apenas pela corrupção, para engrossar a conta daqueles 2 cidadãos que já ficam com mais da metade da riqueza.
Caso seja um país com enormes riquezas naturais, terras ainda não ocupadas, reservas minerais ainda a serem exploradas e muito desemprego no campo, nada de promover uma agricultura que forneça alimentos saudáveis e gere emprego. Pelo contrário, destrua tudo: a água, o solo, a floresta, os animais, os peixes; persiga os indígenas e camponeses que moram no interior do país; adote toda tecnologia que fará os ricos ainda mais ricos e os pobres ainda mais pobres. Chegue ao absurdo de deixar plantar apenas as sementes cujos frutos são estéreis, para obrigar uma nova compra de sementes no plantio seguinte.
Construa muros entre os ricos e os pobres; coloque guardas armados nos muros contra os pobres e faça com que a polícia, dia sim e dia sim, massacre, amedronte, torture, brutalize, viole, escrache, achincalhe, chantageie e exiba indescritível arrogância contra os "de baixo". Gaste tudo o que for preciso para comprar armas, instrumentos de tortura, bombas e mais bombas para os
policiais "manterem o país sob controle (deles)" – e force a todos, dia sim e dia sim, a assistir na televisão como só é pobre quem é vadio, preguiçoso ou bandido.
Junte a tudo isso, um Estado corrupto, com políticos bandidos e salafrários, que não se cansam de roubar a todos e mesmo entre si. Cuja única ética é se locupletarem a todo o custo. Que não possuem limites no seu cinismo e na arte de embuste e que conhecem apenas um senhor, aqueles 2 cidadãos que fica com mais da metade de riqueza.
Faça tudo isso e, não se surpreenda caso, um dia em que a polícia não tem força para reprimir a todos porque as manifestações tomaram as ruas, alguns desses mais explorados vierem a se rebelar com uma guerra aberta à guerra encoberta que os 2 cidadãos que ficam com a riqueza lhes move de modo encoberto. Que quebrem as propriedades que lhe são negadas, que saqueiem o que o mercado lhes nega, que desrespeitem o direito à propriedade dos 2 cidadãos mais ricos. Também não se surpreendam se estes dois cidadãos mais ricos, que nunca vacilaram em organizar a violência cotidiana para se garantirem, agora assustados e amedrontados, vão à televisão dizer que os protestos são justos, mas dentro da ordem e da paz.
Ordem? Para quem? Para os 2 cidadãos continuarem com a maior parte da riqueza?
Paz? A polícia está a se desarmar? Os 2 cidadãos estão desarmando suas seguranças privadas, abrindo mão de seus carros blindados? Ou estão investindo ainda mais em armas e munições?
Por todos os lados, ordem é apenas outra palavra para defesa dos privilégios da burguesia contra os trabalhadores; paz apenas é pedida quando a burguesia corre o risco de perder o confronto.
Quem é, então, o vândalo?