Renato Nucci Jr.: Os médicos cubanos e o PSTU

OS MÉDICOS CUBANOS E O PSTU

Renato Nucci Jr.
Organização Comunista Arma da Crítica

Em resposta às manifestações populares de junho, cuja demanda principal é por mais e melhores serviços públicos, o governo federal decidiu acelerar o projeto de “importação” de médicos. Em 21 de junho, quando a temperatura dos protestos atingia seu clímax, a presidente Dilma Roussef usou cadeia nacional de rádio e tevê para anunciar, entre outras medidas, a contratação de médicos estrangeiros para atuarem no país.

Como tudo nesse governo, trata-se de um projeto que não visa resolver o problema da saúde pública através de maciços investimentos do Estado. Fazer isso contrariaria o pacto de governabilidade firmado entre o PT e as expressões partidárias da burguesia brasileira, pelo qual não se admite a ampliação de direitos sociais que elevem os gastos do Estado. A prioridade orçamentária é com os interesses do capital, especialmente dos credores da dívida pública, para quem o investimento social é um gasto inútil. Importa-lhes abocanhar parcela do Orçamento Geral da União, como meio de garantirem seus lucros. Ao mesmo tempo, fortaleceu-se uma burguesia ligada à oferta de serviços na área da saúde, a quem não interessa um SUS eficiente e prestando um serviço de "padrão Fifa". Trata-se de empresas e cooperativas médicas que apostam no desmonte da saúde pública para justificar a privatização e terceirização dos serviços médico-hospitalares.

Nesse contexto se insere o Programa Mais Médicos. Ele não representa a solução do grave problema da saúde pública em nosso país. Trata-se de medida paliativa. Uma solução real reside em maiores investimentos do Estado para em solucionar a falta de saneamento básico, responsável pela maioria das mortes por doenças infectocontagiosas no país, bem como a ampliação de uma rede pública capaz de atender a população com qualidade. Também passa pela substituição de enfoque de uma medicina preventiva ao invés de uma medicina meramente curativa. Enfim, o acesso à saúde teria de ser visto como um direito e não como uma mercadoria.

Sem ignorar os seus limites, o Programa só saiu do papel por causa das mobilizações populares ocorridas em junho. Representam, portanto, uma vitória alcançada pelas massas populares, no mesmo nível da suspensão dos reajustes das tarifas de transporte público. A reivindicação inicial das mobilizações era pela suspensão dos reajustes, tarifa zero e estatização do transporte público. As mobilizações alcançaram uma vitória parcial, a suspensão dos reajustes, em muitos casos ao custo de aumento dos subsídios repassados pelos municípios às concessionárias. De qualquer maneira, foram as mobilizações de junho as responsáveis por dobrar os governos, fazendo-os recuar.

Mas se em ambos os casos se tratou de vitória parcial do movimento de massa, por que o Mais Médicos é alvo de tanta fúria?

Primeiramente, deve-se considerar que o problema da saúde pública no Brasil não é apenas orçamentário. Trata-se de um problema essencialmente político. É um problema de classe. O exercício profissional da medicina é encarado como um meio de se ganhar muito dinheiro e obter status social. O problema da saúde pública se torna um problema de classe, porque os estudantes de medicina são filhos das camadas médias e altas da sociedade. Poucos são os médicos formados cuja visão é a de usar seu diploma para atender a grande massa da população carente de assistência médica básica. Contam-se nos dedos das mãos os filhos de trabalhadores que cursam medicina nas universidades brasileiras, mesmo as públicas. Sentem-se os médicos, por sua origem de classe e o status social conferido pela profissão, como uma casta superior.

Pequenos e médios municípios sofrem com a falta de profissionais, mesmo oferecendo altíssimos salários. E o problema não são os baixos salários. A prefeitura de Chorrochó, no interior da Bahia, oferece salário líquido de 12 mil reais por três dias de trabalho por semana. Em outro município do estado, Mucugê, o salário oferecido é de 25 mil. E mesmo assim os interessados são poucos. Isso ocorre, porque a prática médica no Brasil, com as exceções de praxe, submete-se a uma lógica mercantil. Ela visa formar jovens cujo objetivo é o de se especializar e medicar nos grandes centros, normalmente em clínicas privadas, longe da rede pública de saúde. Muitos destes profissionais obtêm seus diplomas em universidades públicas, mantidas com o imposto de todos, inclusive das parcelas mais empobrecidas da população trabalhadora, mas que ficam sem acesso a qualquer tipo de atendimento médico decente.

Portanto, mesmo com o Programa Mais Médicos não solucionando os problemas da saúde pública no Brasil, assim como foi o caso da redução das tarifas, deve-se considerá-lo como uma vitória da mobilização popular. Também representará para uma população pobre e desassistida a possibilidade de acesso a um atendimento básico de saúde. As críticas ao Programa, assim como o do reajuste das tarifas, deveriam estar centradas em suas insuficiências e na necessidade de fazer avançar as conquistas. Todavia, não foi o que vimos, mesmo de parcela da esquerda brasileira.

A gritaria contra o Programa aumentou de volume com o anúncio da vinda de milhares de médicos cubanos. Expôs-se claramente a opinião de que a presença de médicos estrangeiros não representaria um problema, se estes viessem de algum país europeu ou dos Estados Unidos. O anúncio da chegada de médicos cubanos adicionou aos interesses corporativos e de classe envolvidos na rejeição à vinda de médicos estrangeiros, preconceitos ideológicos e étnicos. Argumentos dos mais bisonhos foram esgrimidos em protesto contra a presença dos profissionais cubanos. Estes viriam em condições análogas à escravidão, apesar do programa cubano ter por base, trabalhadores voluntários. A medicina cubana seria atrasada, apesar de inúmeros dados demonstrarem os avanços alcançados pela Ilha na área, inclusive superiores aos do Brasil. E o cúmulo foi a observação feita por uma jornalista potiguar, refletindo um pensamento muito comum nas camadas médias brasileiras, de que os médicos cubanos teriam cara e jeito de empregados domésticos, pelo contingente ser formado em sua maioria por negros. Cena emblemática desse preconceito foi a “recepção” dada em Fortaleza por estudantes e médicos aos profissionais cubanos, chamando-os de escravos. Um instantâneo dessa reação flagra o momento em que duas jovens brancas vestindo jaleco vaiam o médico cubano Juan Delgado, de 49 anos. Demonstrando profunda dignidade pessoal e profissional, Delgado respondeu que estava no Brasil “para ser escravo da saúde e dos pacientes doentes, pelo tempo que for necessário”.

Mas as críticas ao Programa Mais Médicos não vieram apenas da direita bisonha e dos interesses corporativos de algumas associações médicas. Parcelas da esquerda também criticaram-no, principalmente no que tange a presença dos médicos cubanos. Foi o caso dos companheiros do PSTU. Texto publicado no site do partido (A polêmica importação de médicos estrangeiros e a chegada de médicos cubanos) rejeita a “importação” de profissionais da área médica, com destaque especial para os cubanos. Para tanto, tentam matar dois coelhos com uma só cajadada. Sem qualquer relação entre os assuntos, criticam o Programa e aproveitam para desfiar um rosário de acusações a Cuba. Afirmam já ter havido na Ilha Rebelde uma restauração capitalista em setores chaves da economia, sem, contudo, indicar quais deles teria passado ao comando de proprietários privados. Acusam o Estado cubano, também, de utilizar esses profissionais para fazer uma terceirização (!) em escala inédita. Com isso, fazem coro com o discurso da direita bisonha e das associações médicas, para quem o Programa representará uma precarização e um rebaixamento no custo da mão-de-obra, quando na verdade o que se pretende com as críticas à importação de médicos, é a de manter uma reserva de mercado de trabalho, mas que os próprios médicos brasileiros não querem ocupar. Ainda acusam Cuba de utilizar a exportação de médicos como meio de obtenção de recursos, não tendo o seu projeto nada de humanitário. Porém, em alguns casos, como o do Haiti, assolado por um terrível terremoto em 2010, Cuba enviou equipes médicas e medicamentos, sem receber nada em troca.

Por fim, afirmam que com a restauração capitalista está se perdendo as conquistas da Revolução, inclusive na saúde. Contudo, uma enxurrada de dados revela justamente o contrário. A pequena ilha caribenha apresenta resultados magníficos na área, mesmo com o bloqueio econômico criminoso praticado pelos Estados Unidos. Cuba tem uma das menores taxas de mortalidade infantil do mundo, 4,9 por mil nascidos vivos. A expectativa de vida, de 78,8 anos, está próxima das principais potências capitalistas e acima dos países latino-americanos. Dados da Organização Mundial da Saúde apontam Cuba como uma das nações onde existe a melhor proporção de médicos por habitante, atualmente de 1 para cada 148. O Estado cubano mantém a Elam (Escola Latino-Americana de Medicina), que todos os anos forma gratuitamente milhares de jovens de países pobres que voltarão ao seu povo para clinicar em áreas pelas quais a medicina comercial não se interessa. E nesse ano Cuba recebeu o título de melhor país da América Latina para ser mãe, atribuído pela ONG inglesa Save the Children. Apenas 5% dos bebês nascem abaixo do peso.

Na ânsia de se colocarem sempre com uma posição diferenciada na conjuntura, criticando tudo e todos, os companheiros do PSTU cometem erros grosseiros de análise. No caso do Programa Mais Médicos, desconsideram, primeiramente, o fato de que se trata de uma vitória, ainda que parcial e incompleta, das mobilizações de junho. Outra questão é a de ignorar os interesses corporativos e de classe envolvidos na questão. Desse modo, não compreendem que o problema da saúde pública não é exclusivamente salarial. Mesmo a oferta de altíssimos salários não atrai profissionais para trabalhar em certas regiões do país. Uma das causas para isso está em uma lógica que vincula a prática da medicina a um viés marcadamente mercantil e para a qual as associações médicas, por seu caráter de classe, ajudam a sedimentar.

Por esses motivos, uma saída popular para o problema da saúde, passaria por ampliar os cursos de medicina oferecidos por universidades públicas pelo país e tirar as profissões da área da saúde, dada a sua importância social, do exercício privado para colocá-las como carreira de Estado. Topariam as entidades médicas mudanças tão profundas? Gostariam os jovens das camadas médias e altas de fazerem medicina para terem de clinicar fora de hospitais privados? Como afirmam os médicos cubanos achacados por profissionais brasileiros, eles vão para lugares onde os nacionais não querem ir: interiorzão do país e as periferias dos grandes centros urbanos.

No caso da vinda dos médicos cubanos, não se sustenta a tese defendida pelos companheiros do PSTU, de uma possível precarização trabalhista. Eles farão o serviço que a maioria dos médicos brasileiros não quer fazer. Assim, podem representar uma profunda mudança de enfoque na visão que se tem hoje da medicina no Brasil, onde a saúde não é vista como um direito, mas como mercadoria de luxo. A vinda de profissionais com “cara de doméstica” pode desbancar a visão predominante em nosso país que incensa a profissão de médico, reservando-a a uma casta social privilegiada. E também pode, enfim, demonstrar aos trabalhadores brasileiros a superioridade política e moral do socialismo. Primeiramente porque fica demonstrado, na prática, que se em um pequeno país, carente de recursos naturais e vítima de um embargo econômico que dura há 50 anos, os trabalhadores no poder foram capazes de garantir tantos avanços sociais, poderemos em um país como o nosso, rico em recursos humanos e naturais, fazer muito mais. Por fim, e ao contrário do defendido pelo PSTU, prova-se que em Cuba não existe um acelerado processo de restauração capitalista, mas de reafirmação do socialismo, mesmo em meio a tantas dificuldades.

Campinas, setembro de 2013.