Renato Nucci Jr.: NÃO É SÓ PELOS 20 CENTAVOS

NÃO É SÓ PELOS 20 CENTAVOS
Renato Nucci Jr.
Organização Comunista Arma da Crítica

Não é pelos 20 centavos de aumento na tarifa do transporte coletivo em São Paulo. O combustível que alimenta as manifestações contra o preço e a qualidade do transporte público em todo o país, mas particularmente na capital paulista, é outro. O preço da tarifa é o estopim de toda uma revolta acumulada e vivida muda e solitariamente, mas que agora se vivifica.
Quem está indo aos protestos não o faz apenas pelos 20 centavos acrescidos à tarifa. O faz porque está farto de injustiças, desigualdade social, de uma imobilidade urbana que não garante o sagrado direito burguês de ir e vir. Quem sai às ruas está farto de serviços públicos precarizados, de violência policial nas periferias, de racismo institucionalizado, de salários baixos, de exploração, de jornadas de trabalho esgotantes. Estão fartos de machismo, de assassinatos de mulheres, de homofobia, de tipos como Feliciano que nos quer impor seu obscurantismo religioso, de meandros legais que mandam para a cadeia o criminoso pobre e deixam em liberdade os criminosos ricos. Os jovens que tem aderido às manifestações estão fartos de reacionarismo hipócrita, de conservadorismo cínico, de falso bom mocismo. Estão fartos de impunidade concedida aos ladrões de dinheiro público, de banqueiros que assaltam o Orçamento da União, de capitalistas enriquecidos com apoio do BNDES. Questionam a farra feita com dinheiro público para bancar megaeventos esportivos que retiram dinheiro da saúde, educação e cultura. Quem marcha pelas ruas da capital paulista também carrega a indignação para com nossa classe dominante, com os políticos pusilânimes, com partidos montados para servir de balcão de negócios, de novas lideranças cujo brilho se apaga assim que são eleitos, de falsas polarizações partidárias. Estão fartos de uma mídia mentirosa, de uma tevê emburrecedora, de uma educação deseducadora, de professores tratados como lixo, de analfabetismo funcional. Indignam-se com os indígenas assassinados, com os sem terra massacrados, com quilombolas expropriados, tudo para atender a sanha do agronegócio. Não é apenas pelos vinte centavos que a cada manifestação convocada, o número de participantes cresce. Há uma raiva acumulada, engasgada, sofrida solitariamente, que agora explode em manifestações que há tempo não víamos.
Creio ser por isso que os protestos têm sido duramente reprimidos. O governo estadual paulista, associado ao municipal e federal, com apoio da classe dominante brasileira, sacou que a atividade sísmica que sacode a superfície expõe movimentações mais profundas e violentas. A terra lhes treme sob os pés. O importante para os governos, estadual e municipal, é não ceder às manifestações e reduzir a tarifa. Por isso a reprimem brutalmente. Caso as mobilizações conquistem a redução, ficaria o exemplo para todo o povo brasileiro, de que a luta, apesar das balas de borracha e das bombas de gás lacrimogêneo, vale a pena. Ficaria a lição, potencializada por ter sido alcançada na maior cidade do país, de que realmente o povo unido e em luta, jamais será vencido. Ao contrário, vencerá seus exploradores e opressores, estejam à esquerda ou à direita no espectro político. E mesmo com toda a violência policial, única resposta oferecida pelos diferentes governos, parcelas da população não mais se intimidam. Não é apenas pelos vinte centavos que a cada manifestação convocada, o número de confirmações pelo facebook cresce. Para a próxima, mesmo com toda a brutalidade policial, elas já ultrapassam a 100 mil. Lembro-me de um motorista de ônibus, militante sindical de base, ter-me dito certa vez, que o principal inimigo do trabalhador é o medo. Medo de perder o emprego, de ser perseguido, de ser preso, de apanhar da polícia. Mas parece que o povo está perdendo o medo, condição imprescindível para qualquer transformação social mais profunda.
Os protestos contra o aumento da tarifa que tem ocorrido em todo o Brasil estão expondo contradições sociais que por muitos anos foram engolidas a seco. O grito de protesto que não saía da garganta, silenciado pela apatia, devia-se à crença de que a solução para os problemas comuns, todos eles, era pessoal e não coletivo. Mas a situação parece estar mudando. Cansados de acreditar que estava deitado em berço esplêndido, o gigante adormecido parece estar acordando, pois não aguenta mais repousar em cama de prego, sonhando com promessas de um futuro melhor que nunca chega. É cedo para dizer se estamos assistindo o despertar de um novo ciclo de lutas sociais em nosso país, como a que assistimos na virada das décadas de 1970 e 1980. Tudo indica que sim. Primavera brasileira? Quem sabe, apesar das precauções de quem está um pouco escaldado com análises triunfalistas que não se cumprem. Mas não dá para negar que algo novo está surgindo. Para onde vai ainda é uma incógnita. Pode se esvaziar, caso se restrinja a lutas pontuais, mas tem potencial para indicar novos caminhos, caso toda essa energia social não se disperse, mas seja canalizada para um projeto político de poder mais consistente e articulado, onde se aponte para transformações profundas em nossa formação social. Condição que para se tornar realidade, exige que a classe operária brasileira entre em cena, uma vez que, estrategicamente situada no interior da produção capitalista, constitui-se em peça chave no funcionamento da acumulação de capital. Mas para tanto deve superar o caráter atualmente economicista de suas lutas.
Aspecto importante em todo esse processo é o modo como as máscaras de certos atores da cena política brasileira vão se revelando. Alckmin e PSDB se consolidam ainda mais como expressões de uma burguesia política e ideologicamente reacionária e fascista. Insistem em tratar o movimento social e as parcelas mais empobrecidas da classe trabalhadora, como potenciais inimigos do Estado. Para emplacar suas políticas de corte abertamente antipopular, recorrem permanentemente à violência, utilizando-se recorrentemente do aparelho policial militar para botar “ordem na casa”. Obstinam-se a manter a ordem pública pela força. Acumulam por esse motivo em seus currículos crimes como a violência policial contra a juventude pobre e negra, o massacre no Pinheirinho, e a expulsão de dependentes químicos da região conhecida na capital como cracolância, entre outros.
Mais uma vez a grande imprensa se posicionou contra os movimentos populares, ao exigir do governo paulista tratamento mais duro contra os “baderneiros” e “vândalos”. “Chegou a hora do basta”, clamou editorial do Estadão de 13 de junho, exigindo do governo paulista pulso firme no trato aos manifestantes. No mesmo dia a Folha de São Paulo exigia que se colocasse “um ponto final nisso”. Ambos foram prontamente atendidos horas depois, tornando-se responsáveis pelos acontecimentos de 13 de junho. A Folha, porém, para manter sua fachada liberal, mudou camaleonicamente de opinião, quando a polícia bateu indiscriminadamente em todos, inclusive em seus próprios funcionários encarregados de cobrir os protestos. Iludidos com sua condição profissional de jornalista, os repórteres pensavam que a apresentação do crachá funcional lhes daria imunidade frente à selvageria policial cometida contra os manifestantes. Ledo engano. Apanharam como qualquer um. A Folha repetiu nesse caso o mesmo padrão de comportamento quando da ditadura civil-militar: exige repressão policial e militar como forma de impedir a “baderna”, mas quando essa vem indiscriminadamente, atingindo seus pares, muda de lado e se porta como guardiã da democracia e da liberdade de manifestação.
Coube ao Partido dos Trabalhadores, porém, o pior papel. Revelou-se amplamente sua pusilanimidade, fruto de uma política de conciliação de classe que atende preferencialmente a burguesia, tornando-o a ala esquerda do capital na gestão do aparelho de Estado. Primeiro foi o fato de Haddad anunciar ao lado de Alckmin o reajuste conjunto nas tarifas de ônibus, trens e metrô. Depois, diante das primeiras manifestações de protesto, novamente ao lado de Alckmin, só que agora em Paris, fez coro com o governador paulista acusando os manifestantes de “baderneiros”, justificando as ações violentas da polícia. Aproveitaram a ocasião para defender o reajuste. Isso também torna Haddad responsável direto pelos acontecimentos da última quarta-feira. Porém, como todo político oportunista, começou a mudar de posição ao perceber que parcela da opinião pública não só refuta as barbaridades policiais cometidas contra os manifestantes, como apoia as reivindicações. Mas o pior ainda estava por vir. José Eduardo Cardozo, Ministro da Justiça e potencial candidato petista ao Palácio dos Bandeirantes, além de manter a mesma toada acusando os manifestantes de “vandalismo”, solicitou da Polícia Federal informações sobre os protestos que tem ocorrido em várias cidades brasileiras reivindicando redução no preço das tarifas de ônibus. Cogitou inclusive em enviar a Força Nacional de Segurança, caso os estados que estejam enfrentando as manifestações solicitem ajuda. O ministro Cardozo, no entanto, não acusou de vandalismo os latifundiários de Roraima, que em protesto contra a demarcação de terras indígenas, fecharam na sexta-feira por oito horas a única estrada do estado que o liga à Venezuela e ao resto do Brasil.
Revelam PT e governo Dilma o caráter conservador de seus governos em qualquer esfera, pois se transformaram de críticos da ordem social brasileira em defensores dessa mesma ordem. O descaramento petista lhe custará a perda de apoio e simpatia de uma parcela da população ainda maior, já insatisfeita com as alianças espúrias feitas pela legenda em nome da governabilidade. Revelam mais claramente também o lado escolhido pelo PT, o dos interesses do capital e a manutenção da ordem púbica capitalista, quando o conflito de classe se acirra. Mantém, apesar de tudo, relativa capilaridade social através de sua influência no movimento sindical e popular, ainda capaz de lhes garantir uma base social de apoio. Dificulta-se, por isso, o aparecimento de forças sociais e políticas concorrentes no plano sindical e popular. Explica-se porque as manifestações contra o aumento na tarifa de ônibus não foi puxada pelo movimento sindical mais organizado e ligado às parcelas mais bem pagas da classe trabalhadora, correndo por fora dos grandes aparelhos sindicais. Trata-se de pauta coletiva difusa, de interesse do conjunto do proletariado urbano, principalmente de suas camadas mais empobrecidas, cuja iniciativa coube aos estudantes e juventude.
O que sairá de todas essas mobilizações ainda é incerto. Pode-se concluir, todavia, que o vento está mudando e novos tempos parecem estar chegando. A insatisfação popular cresce e expressões organizadas, como a luta pela redução das tarifas de ônibus, já começam a surgir. De importância imediata, nesse momento, está a luta por garantir a vitória do movimento. Ainda que não se consiga o passe-livre e a tarifa zero, conquistar a redução no preço da passagem para os valores anteriores animam o movimento e educam o restante da população, ainda refratárias em apoiar os manifestantes por causa de preconceitos difundidos pelos grandes veículos de comunicação contra a “baderna”, de que sem luta não há conquista e que não se muda o mundo com bons modos. Trata-se também de conseguir a libertação imediata e sem pagamento de fiança de todos os presos. E por fim, ampliar sua articulação com as parcelas mais combativas e classistas do movimento sindical, no sentido de alargar sua base social de apoio.

Campinas/SP, junho de 2013.