Quando a luta eleitoral serve à farsa eleitoral – Gas-PA

Quando a luta eleitoral serve à farsa eleitoral – Gas-PA

 
A participação dos socialistas em processos eleitorais e a sua relação com o parlamento tem sido um divisor de águas no movimento socialista. Recentemente Mauro Iasi divulgou um texto intitulado Farsa eleitoral ou luta eleitoral: a prioridade das ruas e a disputa nas urnas, uma importante contribuição ao debate. O companheiro Gas-PA (citado no texto) apresenta sua visão, estabelecendo um diálogo crítico com o texto de  Mauro Iasi.
 

Quando a luta eleitoral serve à farsa eleitoral.

Gas-PA

O ano em que completei 16 anos coincidiu com a primeira eleição presidencial do país desde a década de 1960. A mística em torno desse evento foi enorme. Jovens da minha faixa etária votariam pela primeira vez, tanto quanto seus pais, pra escolher um presidente. Não vacilei em correr pro TRE e tirar o meu título para exercer o ato mais cidadão daquele momento. Depois de 20 anos de uma ditadura empresarial-militar, em fim a democracia. Meus candidatos de primeiro e segundo turno foram derrotados pelo candidato da grande burguesia. Precisei de mais três eleições para, enfim, ver ganhar o meu candidato desde o segundo turno da eleição de 1989.

Desde que o Brasil se tornou uma república a presidência passou pelas mãos dos militares, oligarquia leiteira, oligarquia cafeeira, pelos populistas, voltou pras mãos dos milicos, de coroné, de play boy lutador de arte marcial, teve sociólogo… mas, nada de trabalhador. Um operário, de um partido de trabalhadores, era o que nos faltava. Então, a partir de 2002 era nós no poder. Assim eu pensava!

Corrupção, privatização; socorro financeiro à empresas (que, socorridas, demitiam trabalhadores); envio de tropas pro Haiti pra reprimir as revoltas populares; reforma na previdência, com altíssimo ônus pros trabalhadores; precarização do trabalho; pagamento da dívida de 15 bi com o FMI; repressão sem precedentes às rádios e TVs comunitárias; eLula se vangloriando de ter sido o governo no qual a burguesia mais lucrou na história desse país. E um agravante, se compararmos com governos anteriores: capitulação dos movimentos sindical e popular. Acende um sinal de alerta na minha consciência política. Porém, a ingenuidade de um militante que se forjava nas lutas populares ainda tinha espaço pra mais uma experiência triste com um certo parlamentar. Começava a enxergar, ainda de forma muito embaçada que, pra muito além da discussão de quem exerce o mandato, o problema maior estava nos limites e armadilhas da via eleitoral pra nossa luta socialista.

A partir daí, com toda limitação do meu pouco acúmulo teórico, passei a dar minhas contribuições para o debate. Em 2010 publiquei o texto Luta negra x Institucionalidade.Ruas x Urnas. Ainda sob fortíssima influência da estratégia democrática popular, o texto procura mostrar o quanto foi nociva a democracia da classe dominante pra luta do povo preto no Brasil, além de chamar pra luta nas ruas, e para o abandono crítico à via eleitoral. Ainda no mesmo ano nós do Coletivo de Hip Hop Lutarmada divulgamos na internet nosso texto intitulado Lutarmada Hip Hop e as eleições, que amplia o leque de interlocutores pro debate.

2014, ano de eleição e, é lógico, o debate volta à tona. No dia 14 de maio, o blog da editora Boitempo publica o texto Farsa eleitoral ou luta eleitoral: a prioridade das ruas e a disputa nas urnas, de Mauro Iasi, no qual eu sou citado. Mauro, minha maior referência naeducação popular, membro do comitê central do PCB e candidato a presidente nas próximas eleições, fez a sua defesa da participação da esquerda no processo eleitoral, sem negar a prioridade das lutas das ruas. Para isso ele cita também passagens de obras de autores como Marx & Engels, Gramsci, Rosa e Che, além de polemizar com Ivo Tonet.

Lenin escreveu, em 1920, o famoso Esquerdismo. Doença infantil do comunismo. Talvez a base teórica mais acionada para a discussão desse tema. Sem dúvida uma contribuição ao debate, mas que vem servindo de escudo pra reformista, oportunista e pelego de toda espécie, que tem o título do livro na ponta da língua pra disparar contra o “oponente”, ainda que ele mesmo não tenha lido. Na obra o autor também defende a via eleitoral como um importante passo tático na luta revolucionária. Mas tem seus “poréns”.

Combinando bem as lutas das massas com as eleições, o Partido Bolchevique dirigiu a luta da classe trabalhadora ao poder na Rússia, em 1917. No ano seguinte abre-se um processo revolucionário na Alemanha, que, ao contrário da Rússia de 17, era um país já adiantado na sua industrialização. Lá a luta proletária era dirigida pelo Partido Social-democrata. Surgido em 1869 sob orientação socialista, pode-se dizer que foi em 1875 no congresso de Gotha que o Partido Social-democrata Alemão passa ao reformismo, traduzido num programa que mereceu atenção especial de Marx, como pode ser lido no seu texto Crítica ao programa de Ghota. Essa guinada ao reformismo, que tem nas figuras de Karl Kautsky e Eduardo Bernstein seus principais expoentes, leva o Partido à cisões importantes, que são origem de outras cisões. Até que em 1919 nasce o Partido Comunista dos Trabalhadores Alemães. Esse partido condenava tanto a participação em parlamentos burgueses quanto em “sindicatos reformistas”. E foi inspirado nessa gente que Lenin escreve o Esquerdismo.

O II Congresso da Internacional Comunista, no mesmo 1920, aprova as teses de Lenin e Bukarin (com introdução de Trotsky) que insistiam na importância de os comunistas participarem de eleições parlamentares. Porém, o documento intitulado O Partido Comunista e o parlamentarismo, é bem explícito no que diz:

“Por outro lado, admitir por princípio a ação parlamentar revolucionária não implica de modo algum que se participe efetivamente em todos os casos nas eleições e em determinadas assembleias parlamentares. Isso depende de uma série de condições específicas”.

E quais seriam algumas dessas condições?

“Esta ação parlamentar que consiste, essencialmente, em utilizar a tribuna parlamentar para fazer a agitação revolucionária, para denunciar as manobras do adversário, para agrupar em torno de certas ideias as massas prisioneiras de ilusões democráticas e que, sobretudo nos países atrasados, voltam ainda os seus olhares para a tribuna parlamentar, esta ação deve estar totalmente subordinada aos objetivos e às tarefas da luta extra-parlamentar das massas”.

Então, se a defesa da nossa participação nas eleições parlamentares no Esquerdismo se refere a um contexto com tempo e espaço bem definido (Alemanha, nos idos de 1920), esse ponto – de um documento que vem, de ponta a ponta, salientando a relevância tática da via eleitoral – dá pistas de que essa tática não pode ser apartada de certos critérios.

Se “esta ação parlamentar” deve servir para “utilizar a tribuna parlamentar para fazer a agitação revolucionária, para denunciar as manobras do adversário, para agrupar em torno de certas ideias as massas prisioneiras de ilusões democráticas”, que sentido faz adotar essa via num país que passa por um período em que as massas não voltam “os seus olhares para a tribuna”?

 

No Brasil, até agora, as massas são intimadas a votar de dois em dois anos, sob pena de multa e outras sanções a quem não cumpra com sua obrigação eleitoral. Revogue-se a imposição legal do voto que se explicitará com maior nitidez a repulsa que as massas têm do processo eleitoral desse quadro institucional. Vão até as massas e perguntem em quais parlamentares cada um votou nas últimas três eleições. Pergunte quais os compromissos de campanha dos parlamentares que por acaso forem lembrados e, acima de tudo, pergunte quem acompanha o dia-a-dia do mandato dos seus parlamentares eleitos, suas ações e suas falas “nas tribunas”.

As lutas de junho do ano passado são bem emblemáticas. Partidos de esquerda, unidos a movimentos populares, unificaram suas pautas na construção de atos que se agigantaram pra muito além das expectativas mais otimistas. Os atos começaram numa luta contra o aumento das passagens dos ônibus, mobilizando, quase que exclusivamente, militantes desses partidos e movimentos. Mas é justamente quando as massas aderem ao movimento, que a aversão delas aos partidos se manifesta em maior volume. Essasmassas (em nome das quais, e não com as quais lutam esses partidos) tanto não dão ouvidos e olhos ao que acontece nos parlamentos e na política institucional que não souberam distinguir os partidos que atuam contra seus interesses e vivem envolvidos em escândalos, dos que ali estavam organizando os atos públicos, nos quais elas participavam. Mesmo pautando demandas que eram unânimes – como saúde e educação e, o estopim, a redução das tarifas do transporte coletivo, acompanhada de melhoria na qualidade dos serviços prestados – militantes desses partidos eram obrigados a baixarem suas bandeiras ou se retirarem das passeatas, em alguns casos até debaixo de porrada, como mostrava alegre e exaustivamente os telejornais (no intuito de evitar tamanha desmoralização, houve uma tentativa de atribuir aos fascistas esses ataques, mas quem esteve nos atos conhece bem a verdade). Os partidos de esquerda só aparecem diante dos olhos das massas nos períodos eleitorais e junto com os de direita (já manchados, estes, pela infindável sequência de casos de corrupção). Há quem diga que no período eleitoral as massas estão mais abertas ao debate político, coisa que qualquer um que viva o cotidiano das massas, que, acima de tudo, seja parte das massas, sabe que não é verdade. O debate promovido pelo período eleitoral que chega até as massas é aquele filtrado no telejornal que tem entre uma novela e outra. E nesse filtro não passa o discurso dos nossos companheiros. O horário reservado para a propaganda dos partidos é aquele momento em que desligam-se os rádios e que as famílias dispersam da frente da TV. Se tivéssemos numa conjuntura onde as massas voltassem “seus olhares para a tribuna”, como consta nas teses dos camaradas bolcheviques, os partidos de esquerda não passariam pelo que passaram nas manifestações que eles mesmos chamaram, e nunca teríamos ouvido falar em um pequeno movimento que se formou nas eleições de 2012 em Porto Alegre, chamando voto no candidato (de direita) primeiro colocado nas pesquisas, para se evitar os transtornos impostos por um possível segundo turno.

Cabe ainda discutir se a ação dos parlamentares eleitos pelos partidos de esquerda estão de fato “totalmente subordinada aos objetivos e às tarefas da luta extra-parlamentar das massas” e se eles estão se colocando “à cabeça das massas proletárias, na primeira fila, bem à vista, nas manifestações”, como orienta o mesmo documento.

O Partido Social-democrata Alemão, nascido marxista, se rendeu ao reformismo e nele foi submergindo cada vez mais com o passar do tempo. Não ouso condicionar uma coisa a outra, mas me chama atenção o fato de seu recuo político ter seguido os passos de seus sucessos eleitorais, tal qual aconteceu no caso do PT. Caminho muito parecido percorreu o Partido dos Trabalhadores. Após sentir o gosto das primeiras conquistas de espaço no Estado burguês – não só no legislativo, como sugere os dois textos, mas, também no executivo – a tática eleitoral no PT ganha peso de estratégia. A elegibilidade vai aos poucos legitimando qualquer tipo de compromisso. Desde os melhores tempos do Partido Social-democrata Alemão, passando pelo PT e chegando aos partidos de esquerda já se aliando com a centro-direita, como PCdoB, e a clássica direita, como o DEM, até mesmo recebendo financiamento de empreiteira. Essa tendência a priorizar as lutas das urnas em detrimento das lutas das ruas também se evidencia na escolha dos candidatos. Ainda me atendo ao documento da Internacional Comunista:

“Em geral, os candidatos serão escolhidos entre os operários (…)

Os comitês centrais só devem aprovar as candidaturas de homens que durante longos anos tenham dado provas indiscutíveis de sua abnegação pela classe operária”.(grifo meu)

Ao invés disso, a escolha, que é restrita aos militantes dos respectivos partidos, as vezes contempla candidatos progressistas (e não socialistas) sem o menor acúmulo de lutas, mas com certo apelo em alguns setores da sociedade por gozar de alguma popularidade (devida, em alguns casos, a uma certa inserção na mídia burguesa por se tratar de alguma personalidade do mundo do entretenimento). É a eleição com fim nela mesma. Agora repare dentre os partidos marxistas e leninistas que disputam eleição, se o mais bem sucedido nas urnas não seria o que tem uma prática mais aproximada da social-democracia e do PT, e mais distanciada do marxismo e leninismo. A impressão que fica, pelo menos pra mim, é que a adesão à via eleitoral, assim, indiscriminada e descriteriosa, traz uma forte tendência à degeneração.

Assim como para o outro personagem do texto de Mauro Iasi, o Ivo Tonet, para mim o voto nulo não é um princípio. Só não vejo porque, numa conjuntura onde não temos forças para organizar trabalhadores na luta contra o patrão, dispor de boa parte dessa pouca força pra luta eleitoral. Ainda mais sob o pretexto de usar, tanto o período eleitoral quanto as tribunas parlamentares, para agitar e fazer propaganda revolucionária, pra uma classe trabalhadora totalmente avessa às discussões políticas promovidas nesses momentos e nesses espaços. A propaganda mais eficaz que nossos companheiros conseguem fazer, disputando eleições nessa conjuntura, é a que legitima um processo viciado que contribui enormemente pra fortalecer a hegemonia burguesa.

Esse texto foi uma necessidade que senti de qualificar minha posição pelo voto nulo, que aparece despolitizada no texto de Mauro Iasi. Sei que a responsabilidade é toda minha, por ter me colocado de maneira bizarra nos últimos tempos, via Face Book, me utilizando das formas mais rebaixadas que essa via permite. Mas, como não estou aqui pra apurar responsabilidades, espero que tenha conseguido contribuir mais para essa importante discussão, que diz respeito aos caminhos táticos das estratégias adotadas por quem se propõe a conduzir nossa luta contra a classe inimiga.

PretaSaudaçõeSocialistaS

Gas-PA

20-05-2014

Fonte: https://socialismosemfronteiras.net/2014/05/21/quando-a-luta-eleitoral-serve-a-farsa-eleitoral-gas-pa/