Jorge Souto Maior: Um basta à brutalidade

Passe Livre à juventude e à democracia: um basta à brutalidade

Jorge Souto Maior

Sem querer entender por completo o momento presente, parte da grande mídia e os governantes do Estado e do Município de São Paulo insistiram na consideração preconceituosa e simplista de que os manifestantes do Movimento Passe Livre eram baderneiros e vândalos, tomando-se como parâmetro de análise o aspecto único de que alguns dos manifestantes teriam depredado o patrimônio público, com pichações em ônibus, muros e postes ou destruído catracas e vidros do metrô.

Alimentou-se, assim, a lógica reacionária, que se costuma produzir diante de todo movimento social na realidade brasileira. Para o reacionarismo irracional, este seria, meramente, mais um ato de perturbação da ordem, desta feita cometido por jovens de classe média, desprovidos de consciência ou propensos à delinqüência, até porque pleiteiam algo que seria inatingível, o cancelamento do aumento da tarifa do transporte público ou, pior, a gratuidade do transporte.

Seguindo a tradição de desconsideração da relevância das mobilizações sociais, como se tem verificado, historicamente, com relação aos movimentos grevistas de trabalhadores e de movimentos variados por reivindicações de direitos, a grande mídia só se preocupou, inicialmente, com a divulgação das imagens dos transtornos causados pela mobilização e dos efeitos das práticas de alguns com relação a bens materiais.

Essa irracionalidade foi, em certa medida, responsável pelo despertar e pela intensificação da ação repressiva e violenta da Polícia Militar. Longe de querer justificar a ação dos policiais, pois a ninguém é dado, mesmo sob o argumento de receber ordens, agredir uma pessoa, ainda mais em situação de total disparidade de armas, há de se compreender que, diante do clamor da “opinião pública”, forjado por parte da grande mídia, e em razão das manifestações dos governantes tanto do Estado quanto do Município, a violência da Polícia Militar foi impulsionada e até incentivada.

Resultado: para a mesma realidade, ou seja, para a mesma situação já verificada em três manifestações anteriores, o que se viu na 4ª. manifestação foi uma tragédia, fruto de uma atitude não apenas desproporcional da polícia, mas completamente despropositada, utilizando-se de métodos de guerra contra pessoas que buscavam exercer sua cidadania, pessoas que não praticavam ato outro que não fosse o de estarem participando de uma manifestação política, sendo que as agressões atingiram, inclusive, pessoas que estavam no local exercendo a sua profissão (jornalistas e fotógrafos, por exemplo).

Mas, o pior ainda estaria por vir com o aprofundamento da irracionalidade, como se verá adiante.

É momento, pois, de tentar compreender o que está ocorrendo. Não é uma tarefa fácil, há que se admitir, pois são vários os complicadores e não tenho a soberba de considerar que conseguirei vislumbrar todos os aspectos que envolvem a questão. Trata-se, apenas, de uma contribuição para o debate.

Antes, porém, é preciso deixar consignado que se há transgressão à ordem jurídica quando se perfaz uma depredação do patrimônio público, há uma transgressão ainda maior quando esse ato de destruição do alheio é dirigido, diretamente, ao ser humano. E essa violência pode ser tanto física quanto moral.

No primeiro aspecto, deve-se compreender, de uma vez por todas, que as pessoas são mais importantes que as coisas. Essa afirmação parece simplória e de fácil assimilação, mas não é. Em uma sociedade impregnada pelos valores liberais, a propriedade é vista como um direito sagrado e nosso ordenamento jurídico, da forma como é ensinado e aplicado, parece preservar com maior rigor o patrimônio material, punindo eficazmente os transgressores, do que a própria condição humana.

A título de exemplo: quando cidadãos, aos quais o Estado não garantiu de forma eficaz o direito fundamental à moradia, visualizam uma estratégia política de ação, ocupando uma propriedade pública ou privada que não esteja cumprindo a sua função social, que é, segundo a mesma Constituição, uma condição de legitimidade do direito à propriedade, são retirados do local à força por ato da polícia, seguindo decisão judicial, e o faz de forma abrupta e violenta, pondo em risco sobrevivência dessas pessoas, deixando-as ao relento e sem os seus pertences básicos, diz-se, apenas, que tudo está justificado para a defesa do direito à propriedade, o qual, portanto, nesta perspectiva, vale mais que o direito à vida!

No entanto, deve-se inverter essa ordem valorativa, pois em termos constitucionais o direito à vida, com dignidade, situa-se plano superior a qualquer outro.

Nas recentes manifestações em São Paulo, mais de 300 (trezentas) pessoas foram “detidas” e diante da acusação do cometimento de dano ao patrimônio, mais de 20 pessoas foram presas, com imputação dos crimes de dano ao patrimônio público e de formação de quadrilha. Os valores das fianças chegaram a ser fixados em até R$20.000,00 (vinte mil reais) e o Ministério Público anunciou que acionaria os presos para o ressarcimento do prejuízo gerado ao patrimônio público. O Movimento pagou mais de R$22.000,00 (vinte e dois mil reais) para alcançar a liberdade provisória dessas pessoas.

Já no que se refere aos danos sofridos por diversas pessoas durante a quarta manifestação, ocorrida na última quinta-feira, em virtude da atitude de policiais, os nossos governantes desferiram novas agressões às vítimas: um disse que a ação foi justificada para “preservar a população”, como se os manifestantes não fizessem parte dela, e o outro, simplesmente disse que a “ação foi truculenta”.

Truculenta? Foram agressões. Ação justificada? Foram violências. Várias pessoas tiveram sua integridade (física e moral) gravemente atingida e o Estado e o Município devem ser responsabilizados por essas violências cometidas, indenizando as vítimas, pois o dano ao ser humano não pode ser visto como um nada jurídico.

No aspecto moral, é importante fixar que também constituem agressões as tentativas de minimização dos fatos mediante explicações que ferem a inteligência humana, como dizer, por exemplo, que quase perder a visão de um olho em razão do ferimento por uma bala de borracha atirada pela polícia em direção aos manifestantes é “risco da profissão do jornalista” ou que o fato de uma criança vir a ser morta pelo mesmo tipo de projétil é um “efeito colateral indesejável”, justificado pelos fins almejados, conter uma mobilização política e proteger o patrimônio público, ou que a violência da polícia contra manifestantes é pertinente porque o movimento possui “conteúdo político”.

É violenta também a falta de esforço em compreender o alcance dos fatos, focando-o apenas dentro dos padrões políticos preexistentes. É agressiva à inteligência humana a tentativa de “bi-partidarizar” a questão que envolve a mobilização dos estudantes, vendo-a ora sob o ponto de vista do interesse de um Partido, o PSDB, ora sob o ponto de vista do interesse de outro Partido, o PT.

Assim, uns dizem que os estudantes estão querendo afrontar o governo do PSDB e outros que se trata de uma iniciativa de desestabilizar o governo do PT. Uns e outros, aliás, divergem quanto à posição assumida pela mídia. Para os primeiros, a mídia dá visibilidade distorcida dos fatos, para proteger o governo. Para os segundos, a mídia tem dado visibilidade demais aos fatos, como forma de incentivar a mobilização e, assim, desestabilizar o governo do PT.

No entanto, a inteligência desenvolvida por esses jovens não gira em torno das perspectivas pequenas, medíocres mesmo, e provincianas do PT e do PSDB. Além disso, não é porque alguém estabeleça um senso crítico a respeito da atuação do PT que esteja, necessariamente, defendendo o PSDB e vice-versa.

De fato, as avaliações de uns e outros sobre o momento presente são plenamente distorcidas, vez que buscam unicamente precários dividendos políticos.

Creio que se equivoca, também, parte de nossa elite intelectual, que, para manter coerência com as avaliações que vinham fazendo sobre a juventude do presente, que seria formada, na sua visão, por pessoas culturalmente despreparadas, desprovidas de ideologia, impregnadas pelo individualismo, pelo pragmatismo e pela preguiça, características da era da informática, primeiro, desprezou a importância do evento, tratando-o como mera circunstância, negando, pois, que houvesse algum conteúdo ou efeito maior nas manifestações, e, depois, se inseriu no contexto das manifestações acatando a racionalidade partidária.

É preciso, quero crer, imprimir um esforço maior de compreensão. Parece-me que o ponto inicial da análise é a constatação de que por motivos diversos, sobretudo por conta da estagnação, o mundo passa por um estágio severo de crise do modelo capitalista de produção e os jovens têm sentido, mais do que todos, os efeitos dessa crise.

Na Espanha, por exemplo, o desemprego entre os jovens (até 25 anos de idade) está na faixa dos 50%. Na Grécia, supera os 64%. Portugal, 44%; França, 25%. No total, em pelo menos 18 países europeus a taxa de jovens de 18 a 25 anos sem trabalho supera os 20% (a exceção fica por conta da Alemanha, 8,1%).

A situação atual do modelo de sociedade capitalista é bastante complexa e a solução, já se percebe, não está em apenas encontrar saídas para o desemprego, até porque cada vez mais se reconhece a impossibilidade concreta da inserção, no patamar prometido, de todas as pessoas que em número cada vez maior se qualificam para tanto.

Na busca da racionalidade, deixando as análises dicotômicas preconcebidas, é importante dizer que a constatação da crise não parte do pressuposto de ser contra o capitalismo, ou mesmo a favor. De fato, a intelectualidade humana já atingiu o nível necessário para entender que as caixinhas dos pensamentos prontos não servem mais sequer para conquistar a primeira namorada. Na busca do conhecimento, há de se reconhecer que o capitalismo representou uma evolução importante na história da humanidade. Não fossem o capitalismo e os valores nos quais se baseia (individualidade, competitividade, empreendedorismo e inventividade), ainda estaríamos na era medieval, no atraso das relações subjugadas, estamentais e subumanas.

No entanto, foram esses mesmos valores que conduziram o capitalismo à quase ruína da humanidade, gerando a necessidade, após duas guerras mundiais, da implementação de limites importantes aos seus fundamentos, patrocinados pela Constituição do Estado Social. O problema é que também a eficácia desse modelo de Estado Social se viu contestada pelo advento do neoliberalismo, até porque ao ser mantida, em nível internacional, a perspectiva da concorrência empresarial, com incentivo à luta dos trabalhadores e dos Estados para atração de investimentos do capital, a plena eficácia dos direitos sociais acabou se chocando, frontalmente, com a lógica do próprio modelo no qual foram inseridos.

Com a ausência de políticas públicas efetivas, que pudessem estabelecer limites aos interesses do capital, até porque os Estados, ainda que tivessem tentado, mantiveram uma lógica jurídica interna enquanto o capital se organizou internacionalmente, o capitalismo novamente se desorganizou e mais que isso acabou encontrando pontos de estagnação e esgotamento, principalmente quando caíram em descrédito os mecanismos de contenção trazidos no Estado Social.

Também a lógica de produção e consumo baseada na acumulação de capital e exploração do trabalho alheio foi encontrando os seus limites e isso se evidenciou, sobretudo, a partir de 2008. Não se trata apenas de um limite ecológico, como situam alguns. Trata-se mesmo de um problema intrínseco, baseado na própria racionalidade do sistema. Ora, os valores que fundam o capitalismo, referidos acima, estabelecem a lógica da concorrência, preconizando a luta individualizada pelo sucesso, ou seja, pela superação do concorrente.

O exercício dessa racionalidade, sem freios institucionais, tem conduzido à formação de monopólios e, consequentemente, à constituição de uma legião de perdedores, isto do ponto de vista daqueles que pretenderam se integrar ao sistema pela via do capital.

Para os trabalhadores, aos quais também se impregnou a mesma lógica, mesmo quando se ganha, conseguindo-se uma inserção pelo emprego, há uma derrota, pois o capital monopolizado, fortalecido, enfraqueceu os sindicatos e isto reforçou as estratégias de exploração, notadamente pela subcontratação e pela terceirização, que fornecem uma aparência de divisão do capital entre os tais “empreendedores”, pessoas ou “pequenas empresas” que estão, no fundo, integradas a uma forma de exploração horizontal (aliás, nem tão horizontal assim), e que do ponto de vista dos trabalhadores provocam a precarização da própria vida.

Esse modelo tem favorecido a maior acumulação do capital e a uma menor distribuição da renda, dificultando o consumo e inviabilizando, por conseguinte, maior investimento em produção, e fazendo sobressair o capitalismo financeiro. Ao mesmo tempo os Estados não produzem e precisam se submeter às políticas empresariais, pautadas, evidentemente, pelo lucro. Muitos Estados fornecem incentivos fiscais e se endividam.

No mesmo contexto, sem capital, as pessoas se endividam para consumir, favorecendo, novamente, ao capital especulativo. Os postos de trabalho diminuem, a população continua crescendo e o Estado não possui dinheiro para políticas públicas sociais, até para favorecer, de forma ilusória, a episódicas atividades produtivas, sobretudo na área da construção civil.

Como dito, esta análise é complexa e, por certo, há muitos outros fatores que a influenciam. Objetivamente, vivencia-se uma estagnação do capitalismo, que foi provocada, em certa medida, por alguns de seus próprios méritos, como o desenvolvimento tecnológico, o apelo à democracia e a produção do conhecimento, como se verá adiante, fazendo com que a questão vá muito além do desemprego estrutural.

O fato é que até como resultado da busca do conhecimento, incentivada por esse mesmo modelo de sociedade, os jovens, conectados com o mundo e entre si, adquiriram, muito rapidamente, uma capacidade de compreensão das coisas, uma compreensão que, ademais, não está comprometida com caixinhas prontas de raciocínios.

A revolução dos meios de comunicação (a internet e seus mecanismos), além disso, tem possibilitado aos jovens, mais afeitos a tais meios, o acesso a informações sobre fatos múltiplos, sem cortes ou censuras. Antes – e ainda hoje – meios de comunicação tentavam ocultar a verdade ou mesmo fabricavam uma “verdade”. Com a internet, no entanto, a mentira vem rapidamente à tona e os jovens, mais uma vez, compreendem o quanto são vítimas da violência das tentativas de produção da ignorância e de manipulação. Destaque-se, também, que a vivência democrática lhes tem permitido ter contato nas escolas com conhecimentos mais reveladores e críticos.

Assim, passaram a questionar abertamente, ainda que pela via virtual, as bases de um mundo no qual a maior potência econômica tenta se defender de agressões com agressões ainda maiores, ao ponto de negar o direito à privacidade, justamente onde a liberdade teria se consagrado como a pedra fundamental de todo um sistema.

Questionam, também, as ridículas figuras caricatas, ditatoriais, que utilizam as estruturas do poder instituído para se manterem no comando, sendo que para tanto tais ditadores tentam ou ludibriar as pessoas, furtando-lhes a consciência, ou suprimir, pela força, a ação política.

Questionam um sistema econômico que se baseia na violência de reclamar viabilidade por intermédio da retirada de direitos sociais e trabalhistas, que constituíram a sua sustentação, favorecendo, por consequência, à produção da injustiça social, que alimenta a violência urbana, da qual todos são vítimas.

Sem estarem plenamente envolvidos na mesma lógica, percebem, ademais, o quanto os apelos ao consumo, feitos em profusão, geram frustrações e angústias, que, igualmente, incentivam o acesso aos bens por meios violentos e percebem, também, o quanto é falaciosa a busca da subjetividade por esse meio, vez que os casos de corrupção e de desvio do dinheiro público são cometidos, exatamente, por pessoas providas de bens materiais em excesso.

Os jovens atuais são, portanto, pessoas muito mais esclarecidas que aquelas que foram “produzidas” até o final da década de 90/início dos anos 2000. Possuem acesso irrestrito a informações não censuradas, contam com enorme capacidade de raciocínio e não foram impregnados dos valores que impulsionaram, até aqui, o mundo herdado.

Além disso, na prática social da comunicação virtual, redescobriram os sentimentos de solidariedade e de igualdade, pois na internet todos são iguais e as causas de um interessam aos outros. Se solidarizam, inclusive, com lutas sociais, incluindo causas trabalhistas, que constituem exemplos de mobilização e de indignação.

Foi, ademais, nesse mesmo meio virtual, onde a repressão estatal ou paterna não tem eficácia, que a juventude tem experimentado, como nenhuma outra geração passada, a sensação de liberdade, sobretudo de expressão, tendo aprendido, também, por necessidade de inserção, a manifestar sentimentos e a conviver com a contrariedade.

Quando esses jovens se relacionam com mundo real conseguem perceber as armaduras e as repressões existentes e parecem não estar dispostos a se submeter a elas, pois, afinal, estão a serviço de um mundo que não lhes oferece perspectiva de futuro.

Todas essas mudanças foram muito rápidas. Talvez tenham se operado nos últimos cinco anos. Tanto intelectuais quanto órgãos de imprensa e políticos não tiveram tempo de identificá-las e estão partindo de pressupostos de análise do passado, ainda que este passado seja muito recente, é verdade. O problema é que para esses jovens não funcionam as estratégias de alienação, verificáveis no apelo à inserção pelo consumo e pela busca de “status” e menos ainda funcionam as ameaças do fatalismo e as repressões com violência, baseadas em total ausência de racionalidade, ou seja, na brutalidade.

Daí porque o ato de se postar diante das presentes mobilizações, acusando os jovens de vândalos e baderneiros, serve apenas para evidenciar o total despreparo da classe política e das estruturas de Estado para lidar com a realidade atual, que tende, inclusive, a se tornar mais complexa.

Presentemente, já se assiste o limiar de um novo momento, o momento em que esses jovens, com todo esse conhecimento, professando novos valores e com a eterna volúpia juvenil, saíram do mundo virtual e alcançaram as ruas. Nesse momento eles passam a se reconhecer ainda mais e tendem a adquirir, com maior clareza, a percepção da sua existência.

No passado recente, a busca da subjetividade se dava por intermédio dos apelos ao consumo e à participação em eventos festivos nos quais se prometia uma felicidade com hora marcada, que eram bastante frustrantes e angustiantes, ademais. Há mesmo de se questionar se essa geração passada conseguiu compreender, por completo, a sua condição humana ou se apenas se viu como gente na qualidade de consumidor.

Lembre-se que uma das maiores reivindicações de cidadania, incentivada midiaticamente, houvera sido nos últimos tempos a que decorria do denominado “direito do consumidor”, integrado por uma defesa despolitizada da ecologia, patrocinada por empresas “socialmente responsáveis” que, contraditoriamente, não medem esforços para superar a concorrência e para suprimir os direitos dos trabalhadores.

Essa nova juventude, desvinculada da lógica passada, está tendo a percepção da sua existência ao encontrarem nas ruas outras pessoas com as mesmas características e que são impulsionadas pelas mesmas reivindicações de liberdade e de moralidade administrativa, carregadas com o cunho social da solidariedade, na busca da construção da igualdade.

Os jovens nas ruas estão vivenciando, de fato, uma experiência emancipatória e aos poucos vão entendendo que a única forma de se manterem vivos, como seres humanos, é participando, ativamente, da superação das mazelas de um mundo doente, embriagado pelo poder, pelo dinheiro e pelo “status”, ditado por pessoas que já tendo tudo, querem mais, querem ser VIPs (política, econômica e socialmente) e que, assim, preconizam, ou ao mesmo justificam, pela inércia ou pela sensação de felicidade decorrente da “conquista”, a desigualdade social e a ignorância.

Essa juventude, portanto, ao contrário do que imaginam nossos intelectuais – que produzem para favorecimento de partidos ou para justificar o mundo tal qual ele é – tem conhecimento a respeito da realidade atual e a encara os desafios da vida de forma muito diferente do que nós, da geração “coca-cola”, uma geração que, primeiro, foi impedida de pensar, e que, segundo, até por consequência, foi facilmente envolvida nas aspirações burguesas-capitalistas. Nós ficávamos muito mais impressionados com bens de consumo em geral: carros, TVs, roupas, discos etc, do que a juventude atual. Mesmo uma roda de alumínio de um carro podia nos fascinar… Era um outro mundo, no qual problemas pareciam não existir e onde as inserções capitalistas, para quem era da classe média, eram muito mais atraentes.

Essa nova geração não é seduzida, tão facilmente, com bens de consumo inúteis e ao mesmo tempo tem a percepção da estagnação do modelo de sociedade que lhes foi transmitido. Assim, não professam os mesmos valores e já compreenderam que a única forma que possuem para almejarem uma situação melhor no futuro é mudando estruturalmente essa sociedade.

Há, por certo, muitas divergências entre os jovens quanto à forma de proceder essa alteração e, sobretudo, sobre qual é o alcance das mudanças. Aderem a diversas correntes políticas e ideológicas. Existe, também, evidentemente, uma grande parcela de jovens não envolvida com essas causas e que não preconiza mudança alguma na sociedade, muito pelo contrário. Mas, estes jovens não estão integrados aos movimentos sob exame e, portanto, não constituem objeto da análise.

Cumpre acrescentar que sequer possuo elementos científicos para afirmar se a maioria dos jovens, até 25 anos, situa-se na ala que poderíamos chamar de conservadora ou na que almeja mudanças na sociedade. A análise ora feita situa-se na morfologia dos que estão nas ruas, buscando mudanças. De todo modo, é interessante notar que as reivindicações atuais são tantas e tão diversas, que é mesmo difícil que um jovem não esteja engajado ou que não seja ao menos simpatizante de alguma dessas reivindicações, que possuem, cada uma ao seu modo, a sua relevância.

Essa diversidade decorre, ademais, dos vários desajustes de uma sociedade que dá toda mostra de não estar dando certo e é facilitada pelo acesso a padrões de análises mais amplos, de âmbito mundial. Como ponto comum, desenvolve-se a compreensão em torno da relevância da implementação da democracia, para que as lutas por mudanças possam ser conduzidas.

Na luta pela democracia, que está na base de outras diversas lutas, os jovens estão se organizando, passando por cima das divergências políticas, buscando, inclusive, alianças internacionais. Os movimentos dos jovens tendem a se interligar, mundialmente.

Estão no alvo dessa luta todas as ditaduras, de direita e de esquerda. Abaixo as ditaduras! Eis o lema, que inclui um enfrentamento a todos os resquícios dos antigos regimes ditatoriais, como se dá, no Brasil, com relação à Polícia Militar.

E vale retomar. Estamos falando de jovens que exigem respeito à sua capacidade intelectual e ao seu poder de reflexão e com relação aos quais, na perspectiva de desmobilização, não funcionam as estratégias de esvaziamento retórico do conteúdo de seus atos. Esses jovens não são seduzidos pela atração da inserção pelo consumo de bens fúteis e não se intimidam por discursos ameaçadores, pautados pela lógica do caos, da imobilidade ou da inexorabilidade.

No caso do Brasil, especificamente, são jovens dispostos a revelar todos os problemas que nos têm impedido, historicamente, de construir uma sociedade sem desigualdade social, sem preconceito, sem corrupção, sem sonegadores, sem desvio do dinheiro público, sem machismo, sem racismo, sem discriminação.

Por isso, estão, neste momento, lutando pela melhoria do transporte público e estão, também, denunciando os diversos problemas sociais, jurídicos e econômicos que decorrem do advento da Copa no Brasil. E gritam: “Copa do mundo, eu abro mão. Quero dinheiro para a saúde e a educação!” E não vão ceder diante de táticas antigas como a da repressão policial e do desgaste frente à opinião pública, incentivado por parte da grande mídia.

Aliás, muito bem ao contrário. Impulsionada pelo grito dos jovens pode ser que, finalmente, a parte excluída, oprimida e esclarecida da sociedade brasileira, tendente a professar os mesmos valores ora preconizados, acorde e trilhe o caminho que está sendo aberto e iluminado pelos estudantes.

Com isso, as pautas tendem aumentar: além de transporte público gratuito (por que não?), responsabilização pelos descalabros do advento da Copa no Brasil e reparação das vítimas da violência contra os manifestantes, também, educação pública (com fim do vestibular no nível superior); punição de corruptos e sonegadores; saúde pública etc.

Neste contexto, parece mesmo inevitável – e isto já se anuncia – uma unificação dos trabalhadores e demais movimentos sociais às pautas dos jovens, gerando como efeito reflexo a integração de novos temas de discussão e de enfrentamento como, por exemplo, os problemas da terceirização e da precarização do trabalho.

A mobilização dos estudantes, ademais, só vem crescendo e já atrai o apoio de professores, de vários setores da classe trabalhadora e de consideráveis segmentos da população em geral, dada a percepção quase inevitável da força de uma mobilização que pode, enfim, dar novos rumos à sociedade brasileira. A propósito, anuncia-se que uma multidão, composta de pessoas de diversas orientações políticas, estará presente na manifestação marcada para hoje, dia 17 de junho, em São Paulo.

Se estamos assistindo a apenas mais um momento episódico, de remodelação e adaptação do mesmo modelo, sem alterações substanciais, ou se, de fato, verificaremos o ponto de mudanças fundamentais no Brasil é cedo para dizer, mas também não demorará muito para sabermos. O que já é possível e necessário compreender é que não estamos lidando com vândalos e baderneiros, sendo de suma importância e urgente que os governantes e as estruturas arcaicas de poder entendam isso, para que não massacrem os nossos jovens e não neguem a todos nós a esperança concreta de que possamos atingir, em tempo curto, uma realidade bem melhor do que a atual.

De fato, estamos diante de um movimento de jovens, que tende a ampliar suas pautas e a acoplar outros segmentos sociais, para efetivação, em nossa realidade, de valores como a confiança, o respeito, a solidariedade, a alteridade e a responsabilidade, na busca concreta da liberdade e da igualdade.

As presentes mobilizações podem constituir grandes eventos para alterações importantes na realidade brasileira (e mundial), vez que estão fundadas em uma grande revolução silenciosa já operada, aliás, tão silenciosa que muitos não a perceberam: o advento dos jovens acima retratados. Alguém dirá, como já me disseram uma vez, quando falava a respeito de uma mobilização de estudantes, muito antes de tudo isso que estamos verificando começar a ocorrer: “Professor, você está romantizando o movimento”. Pode ser! Mas, é com esse olhar, talvez romântico, inebriado de admiração, que vejo os jovens que conheço na qualidade de professor, de amigo, de tio e de pai.

São Paulo, 17 de junho de 2013.

Jorge Luiz Souto Maior é professor livre-docente da Faculdade de Direito da USP.

Fonte: https://www.viomundo.com.br/politica/jorge-souto-maior-um-basta-a-brutalidade.html