DESRESPEITO AO ESTATUTO, DESRESPEITO À AUTONOMIA: UFRJ NA MARCHA DA INSENSATEZ, DA HETERONOMIA E DO ARBÍTRIO?

DESRESPEITO AO ESTATUTO, DESRESPEITO À AUTONOMIA: UFRJ NA MARCHA DA INSENSATEZ, DA HETERONOMIA E DO ARBÍTRIO?

Roberto Leher

O atributo da autonomia universitária, concebido de modo sistemático na criação da universidade de Berlim, 1809, por Humboldt, objetivava garantir que a universidade pudesse ser um espaço ilimitado de liberdade e do uso crítico da razão. A autonomia deveria proteger a universidade de interesses particularistas indevidos, inclusive dos governos. Daí o seu caráter de instituição autárquica, estatal, mas dotada de forte proteção diante das paixões por governos e das ingerências voluntaristas destes na vida universitária e dos constrangimentos econômicos das empresas que querem converter a universidade em um espaço de serviço. A existência de carreira, regida pelo direito público, capaz de assegurar estabilidade diante de conflitos advindos de divergências teóricas e de valorizar a dedicação ao ensino, à pesquisa e à extensão passou a ser um pilar axial da instituição universitária.

Lutas seculares das comunidades universitárias possibilitaram que a autonomia fosse alçada ao ordenamento maior das Nações. No Brasil, tardiamente, foi possível insculpir a autonomia universitária na Constituição de 1988. Nela, foi concebida de modo completo – autonomia quanto aos fins (didático-científicos) e quanto aos meios (administrativo e de gestão financeira e patrimonial) – e como norma bastante em si que não pode ter seu alcance limitado por qualquer lei infraconstitucional.

O dispositivo constitucional, conforme sustenta o brilhante trabalho da jurista Anna Candida Ferraz[1], é operacionalizado pelo Estatuto da universidade. Com efeito, a “inclusão, na Constituição Federal, do princípio da autonomia universitária em seu artigo 207, conferindo proteção reforçada ao instituto, reafirma a força normativa dos estatutos e dos regimentos universitários, cujo fundamento, agora, já não deriva apenas da lei, mas decorre do próprio ordenamento jurídico-constitucional”. Assim, conclui a jurista, “os Estatutos e os Regimentos universitários, (...) constituem legítima expressão da autonomia universitária, consagrada como garantia institucional em nossa Lei Maior”.

A UFRJ na marcha da insensatez

Destarte, quando um Estatuto, um Regimento ou uma Resolução são expedidos pela Universidade para concretizar o exercício de sua autonomia, desdobrando matérias de sua competência, tais atos se conformam com o princípio da legalidade[2].

A UFRJ é livre para decidir sobre assuntos pertinentes ao alcance da autonomia garantida pela Constituição. A primeira dimensão de um ato legal e legítimo é estar em conformidade com os seus dispositivos estatutários e regimentais. É irrefutável que a contratualização de quatro unidades hospitalares da UFRJ com a EBSERH altera o escopo, a natureza e o caráter do Complexo Hospitalar. Para dirimir dúvidas é necessário examinar diretamente o Estatuto:

Art. 17. A Estrutura Média é constituída por um conjunto de Centros, órgãos de coordenação das atividades universitárias nas suas grandes áreas de ensino, pesquisa e extensão, pelo Fórum de Ciência e Cultura e pelo Complexo Hospitalar da UFRJ. (Redação dada pela Resolução CONSUNI nº 15/2008).

O Complexo Hospitalar, conforme o caput do Art. 17 do Estatuto constitui, obviamente, a Estrutura Média da UFRJ. A definição de que Unidades e Órgãos Suplementares compõem o Complexo foi estabelecida pelo § 4° do referido artigo. A redação é precisa:

§ 4° O Complexo Hospitalar é constituído por todas as Unidades Universitárias ou Órgãos Suplementares que prestam assistência de saúde a pacientes internados e/ou ambulatoriais. As Unidades que compõem o Complexo Hospitalar serão objeto de Resolução específica do Conselho Universitário. (Redação dada pela Resolução nº 28/2010) (destaques nossos).

No ato de criação do Complexo Hospitalar o conjunto “todas as Unidades ou Órgãos Suplementares...” compreendia: Hospital Universitário Clementino Fraga Filho – HUCFF; Hospital Escola São Francisco de Assis – HESFA; Instituto de Puericultura e Pediatria Martagão Gesteira – IPPMG; Maternidade Escola –ME; Instituto de Ginecologia –IG; Instituto de Neurologia Deolindo Couto – INDC; Instituto de Psiquiatria da Universidade do Brasil –IPUB; Instituto de Doenças do Tórax – IDT, e Instituto do Coração Edson Saad - IC.

O exame do processo de constituição dessas unidades confirma uma tendência de criação de unidades especializadas, a última delas o Instituto do Coração (2003). Após a Resolução n. 28/2010, aprovada em sessão especial, a composição de novas unidades no Complexo Hospitalar (exceto as que constituíram originalmente o CH e que compunham na época todas as unidades...) deve ser objeto de “resolução específica”, especificação que o CONSUNI realizou por compreender que a UFRJ ainda pode criar, desativar ou fundir unidades ou órgãos suplementares que prestam assistência de saúde a pacientes internados e/ ou ambulatoriais”, alterando o universo de “todas as unidades ou órgãos suplementares”.

É importante salientar que o CONSUNI, ao alterar o Estatuto por meio da Res. 28/10, indicando que “as Unidades que compõem o Complexo Hospitalar serão objeto de Resolução específica do Conselho Universitário”, não excluiu a exigência de que todas elas devem estar ligadas ao Complexo Hospitalar (CH), pois essa é a essência do modelo de gestão integrada. Com o desmembramento do CH, este obviamente deixará de existir como totalidade de todas as unidades e órgãos suplementares hospitalares o que somente pode ser feito, evidentemente, em sessão especial, na forma do art. 33, parágrafo 2o. do Regimento do CONSUNI.

A questão estatutária em discussão não é só referente a quais unidades compõem o Complexo Hospitalar (como pretende fazer crer o Reitor), mas sim a garantia do Estatuto de que todas as unidades hospitalares de ensino da UFRJ devem compor essa estrutura integrada, que garante a indissociabilidade do ensino, pesquisa e extensão realizadas. Para permitir que uma empresa tome o lugar do CH na gestão de quatro de suas unidades hospitalares, há que se excluir o modelo do CH do Estatuto em prol da adoção do modelo EBSERH, que desmembra os hospitais e os coloca sob a direta administração de uma empresa cuja sede é em Brasília. Por alterar a estrutura da universidade, portanto, há que ser realizada em sessão especial, com quórum qualificado necessário para sua aprovação. Ainda assim, corre-se o risco de que tal eventual decisão venha a ser declarada inconstitucional (vide a ADIN no STF), por claramente violar a autonomia universitária. Nesse caso, a discussão passaria a ser: pode uma universidade autônoma, ainda que por maioria absoluta de seu Conselho Universitário, abrir mão de sua própria autonomia? Cremos que não.

A preocupação com a legalidade dos atos universitários, o respeito ao Estatuto, é uma obrigação constitucional da universidade. Para isso, aliás, existe a exigência de quórum qualificado, de forma que só se altere a estrutura da universidade (e seu Estatuto) com ampla maioria qualificada, uma maneira de se garantir que eventuais alterações propostas sejam, de fato, benéficas à instituição, o que precisará ser julgado por um número maior de votos, blindando a UFRJ contra interesses particulares de pequenas maiorias eventuais. Não pode estar a mercê de interesses particularistas, paixões partidárias, como em argumentos correntes, ‘se a EBSERH é do MEC e o ministro é nosso aliado, qual o problema da contratualização?’. Justo para evitar medidas voluntaristas e ilegais, todos os processos são examinados na Comissão de Legislação e Normas, uma das Comissões Permanentes do CONSUNI. No caso do contrato leonino em questão (EBSERH), a conclusão da Comissão, referenciada em rigoroso e sistemático Parecer, foi de que a sessão deveria ser especial, por alterar o Estatuto, exigindo quórum qualificado.

A Lei, ora, a Lei

O que se espera de qualquer mandatário de cargo executivo é o firme cumprimento das leis que regem o escopo de seu mandato. Não cabe ao Executivo inovar legislação e, tampouco, assumir o papel de verdadeiro intérprete da legislação e das normas legais. Na exótica e incompreensível formulação do Reitor da UFRJ, professor Carlos Levy, na sessão do dia 05/09/2013, o gestor apresentou o incrível silogismo: SE a Resolução n. 28/10 (estabelecida em sessão especial) pode definir o conjunto de todas as unidades ou órgãos suplementares, LOGO a resolução que altera o universo de todas as unidades (de modo que o Complexo Hospitalar passaria a ser composto por parte das unidades...) pode ser deliberada em sessão ordinária, alterando o caput do Art. 17 do Estatuto! Aos incrédulos, sugiro examinar a TV CONSUNI da sessão.

A inovação interpretativa pretendida pelo Sr. Reitor, se abrigada pelo CONSUNI, certamente repercutirá no estudo da teoria do direito, se mostrando típica de sistemas jurídicos autoritários, eis que definiria que uma norma inferior poderia, segundo o seu raciocínio, alterar o ordenamento maior. Seguindo o seu pensamento, decretos e atos do executivo poderiam alterar leis, e leis ordinárias poderiam alterar a Constituição.

Somente as paixões partidárias, de grupos de poder, interesses particularistas ou, o que é crível, mas condenável, o cansaço com o tema, e a convicção íntima de alguns conselheiros de que não existe outra alternativa à EBSERH, pode explicar que tal questão tenha dividido o Conselho. É compreensível que o mérito (cessão do patrimônio, gestão e pessoal para uma Empresa privada) da questão divida o Conselho Superior da UFRJ, mas nunca o respeito ao Estatuto e ao Regimento do CONSUNI.

A UFRJ pode estar trilhando um caminho perigoso, de alinhamento circunstancial a uma política de governo que propõe um enorme aparato de poder, todo ele de livre nomeação para gerir, agora sim, TODOS os hospitais universitários federais e, também, TODOS os hospitais federais, abrindo centenas de cargos de confiança a gestores estranhos a vida universitária. Mas ao desconsiderar o Estatuto e o Regimento, o rumo ganhará novos contornos, mais perigosos, pois afastados da legalidade que deve reger todos os atos de uma universidade pública federal.

A última crise institucional na UFRJ, provocada com o protagonismo de muitos apoiadores da EBSERH, o apoio a um reitor (o melancolicamente célebre Vilhena) não legitimado nas urnas, repercutiu severamente na vida acadêmica da instituição, provocando crises graves na graduação, na pós-graduação, na pesquisa, e triste onda de aposentadorias de servidores que não suportaram ver a decadência, o mandonismo e a negação do ethos acadêmico na instituição. A sociedade brasileira conta com a UFRJ para contribuir com melhor porvir para o povo, em particular para os explorados, os expropriados, bem como instituição pública capaz de contribuir para melhor pensar prospectivamente os dilemas diante dos problemas socioambientais, culturais, energéticos, educacionais e da saúde pública. A crise anunciada não pode ditar o futuro da UFRJ.

Rio de Janeiro, 7/9/13.

(*) Agradeço a Luciana Boiteux as contribuições sobre aspectos jurídicos da questão do Estatuto.
[1] Anna Candida da Cunha Ferraz. A Autonomia Universitária na Constituição de 05.10.1998, disponível em: https://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/revistaspge/revista/tes5.htm.

[2] Idem.