Seminário Neoliberalismo e direitos sociais: os impactos na política de saúde (1)

07/10/2011 18:36

Neoliberalismo e Saúde

Maria Lúcia Frizon Rizzotto

A emergência ou o reaparecimento de dado pressuposto teórico-político, que carrega consigo um conjunto de diretrizes, conformadas por uma visão de mundo, de homem e de sociedade, deve ser contextualizado para uma melhor compreensão dos determinantes que contribuíram para o seu surgimento, bem como da vitalidade que tais determinantes comportam.

O pensamento liberal do final do século XX, comumente denominado de ‘neoliberalismo’, reapareceu logo após a Segunda Guerra Mundial, em contraposição às políticas keynesianas e sociais-democratas, que estavam sendo implementadas nos países centrais. Inicialmente surgiu de forma tímida por meio da divulgação de textos como “O caminho da servidão” de Frederich Hayek, de 1944, e “A sociedade aberta e seus inimigos”, de Popper, em 1945. Na década de 1960 outras publicações se seguiram, dando sustentação a essa perspectiva, como “Os fundamentos da liberdade” de Frederich Hayek, em 1960, e “Capitalismo e liberdade” de Milton Friedman, publicado em 1962.

Contudo, foi a crise global, iniciada com a crise do petróleo, em 1973, e a onda inflacionária que se seguiu na década de 1980, levando ao declínio do Estado de Bem-Estar Social, associado ao colapso do socialismo real, simbolizado pela queda do muro de Berlim em 1989, que permitiu uma ampla ofensiva do pensamento liberal, traduzido no projeto neoliberal deste final de século. 

 

O neoliberalismo consiste em uma reação teórica e política contra o Estado intervencionista, opondo-se fortemente a qualquer forma de planejamento da economia. Condena toda ação do Estado que limite os mecanismos de mercado, denunciando-as como ameaças à liberdade, não somente econômica, mas também política.

Para os teóricos neoliberais, tanto os vinculados à escola econômica austríaca que emergiu no final do século XIX e teve como principal discípulo, no século XX, Frederich Hayek, como os vinculados à escola de Chicago, cujo representante mais emblemático é Milton Friedman, a razão é incapaz de reconstruir a ordem social, portanto, o uso de qualquer forma de planejamento, na economia, seria conseqüência de um equívoco teórico, devendo-se permitir que a ordem espontânea do mercado se manifeste livremente.

Como para esses teóricos a conduta humana é determinada pelo conhecimento prático, por normas sociais advindas dos costumes e das crenças e pelo sistema de comunicação do mercado, a melhor sociedade seria aquela que funcionasse a partir das escolhas espontâneas dos indivíduos, na qual a existência de normas deve estar limitada à segurança pública e à manutenção da propriedade privada. Portanto, a essência do pensamento neoliberal baseia-se na defesa do livre curso do mercado, colocando-o como mediador fundamental das relações societárias e no Estado mínimo como alternativa e pressuposto para a democracia. 

 

Para os defensores do ‘neoliberalismo’, da mesma forma que a partir da década de 1940 determinados acontecimentos na economia global tinham alterado o contexto em que os Estados nacionais atuavam, exigindo uma ampliação das suas atribuições; a partir da década de 1970, os parâmetros de uma economia mundial globalizada estariam requerendo um novo Estado, mais eficiente e ágil, que se concentrasse nas tarefas básicas, necessárias à manutenção da ordem na sociedade. A mudança experimentada a partir da década de 1940 teria ocorrido, nos países centrais, para fazer frente às demandas do Estado de Bem-Estar Social e, nos países periféricos, para criar as condições estruturais e induzir o desenvolvimento econômico, necessário à expansão do capitalismo mundial.

O pensamento neoliberal foi singularizado no denominado receituário do Consenso de Washington, expressão que emergiu a partir do encontro realizado em novembro de 1989, na cidade de Washington, quando se reuniram funcionários do governo americano, especialistas em assuntos latino-americanos, representantes dos organismos internacionais como o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial, o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e alguns economistas liberais, com o objetivo de realizar uma avaliação das reformas econômicas empreendidas, nas décadas anteriores, nos países da América Latina. Neste encontro foram definidas as linhas de política macroeconômica, que iriam inspirar as reformas, denominadas neoliberais, as quais foram implementadas em grande número de países periféricos, como o Brasil, nas décadas de 1980 e 1990. As linhas básicas formuladas, no referido encontro, consistiam na defesa da desregulamentação dos mercados, na abertura comercial e financeira, no equilíbrio das contas públicas, na privatização das empresas estatais, na flexibilização das formas de vínculo entre capital e trabalho e no estabelecimento de uma taxa cambial realista.

Esse pensamento se constituiu em referência para governos que assumiram o poder em países centrais, como Margareth Tatcher, na Inglaterra, em 1979, e Ronald Reagan, nos EUA, em 1980, locais onde este pensamento se originou e de onde foi difundido. Contudo, o que se observou foi uma assimilação diferenciada dos pressupostos neoliberais, com radicalidade dos enunciados nos países periféricos, sem a mesma correspondência nos países centrais.

No Brasil, o ‘neoliberalismo’ foi introduzido associado ao discurso da necessidade de modernização do país, que se iniciou no governo de Fernando Collor de Mello, em 1989, e se aprofundou nas décadas de 1990 e 2000. No primeiro caso, com ênfase nas reformas econômicas, na privatização das empresas estatais e nas políticas sociais focalizadas; no segundo, aprofundando esses aspectos e modificando substancialmente a estrutura do Estado por meio de ampla reforma, consubstanciada em documento denominado Plano Diretor de Reforma do Aparelho do Estado (1995). No referido documento foram definidas as diretrizes da reforma e a nova configuração que o Estado brasileiro deveria assumir a partir de então. 

 

O movimento neoliberal defendia a tese de que a crise das décadas de 1970 e 1980 decorria do mau funcionamento do Estado, evidenciado na falta de efetividade, no crescimento distorcido, nos altos custos operacionais, no excesso de endividamento público e na incapacidade de se adequar ao processo de globalização em curso, que teria reduzido a autonomia e a capacidade dos Estados Nacionais para gerirem suas próprias políticas econômicas e sociais. Portanto, seria necessário que as sociedades aceitassem uma redefinição das responsabilidades do Estado, selecionando estrategicamente as ações que o Estado iria desenvolver e as que deixaria de executar. Esperava-se com isso reduzir as atribuições impostas ao Estado e fazer com que os cidadãos se envolvessem mais na solução dos problemas da comunidade.

O novo Estado, denominado ‘social liberal’, teria como principal função a regulação, a representatividade política, a justiça e a solidariedade, devendo- se afastar do campo da produção e se concentrar na função reguladora e na oferta de alguns serviços básicos, não realizados pelo mercado, tais como os serviços de educação, saúde, saneamento, entre outros. A implementação de reformas administrativas e gerenciais permitiria a focalização da ação estatal no atendimento das necessidades sociais básicas, reduzindo a área de atuação do Estado por meio de três mecanismos: a privatização (venda de empresas públicas), a publicização (transferência da gestão de serviços e atividades para o setor público não-estatal) e a terceirização (compra de serviços de terceiros). 

Para proceder às mudanças apregoadas no âmbito do projeto neoliberal, deveriam ser removidos os constrangimentos jurídico-legais, notadamente de ordem constitucional, que impediam a adoção de uma administração ágil, com maior grau de autonomia, capaz de enfrentar os desafios do Estado moderno.

No que tange às políticas sociais, para o pensamento neoliberal, estas não são compreendidas como direitos, mas como forma de assistir aos mais necessitados ou como ato de filantropia, daí que a ação do Estado deve ser focalizada nos pobres, e a sociedade, na figura das organizações não-governamentais e no voluntariado, deve ser estimulada a assumir responsabilidades pela resolução dos seus problemas, reduzindo a carga imposta ao Estado ao longo do tempo.

Nesse aspecto, a ofensiva às políticas sociais foi linear, atingindo tanto os países que conseguiram construir um Estado de Bem-Estar-Social como os países periféricos que só conseguiram realizar um esboço de proteção social aos seus cidadãos. Contudo, a forma de assimilação e os resultados foram distintos em um e noutro contexto, com maior desmonte dos sistemas de proteção social nos países periféricos, tanto pela fragilidade desses sistemas como pela pouca capacidade de resistência dos segmentos afetados.

No campo da saúde, no Brasil, a assimilação dos pressupostos neoliberais, a partir do início da década de 1990, momento em que também se iniciava o processo de implementação do Sistema Único de Saúde (SUS), resultou num quadro que pode ser caracterizado da seguinte forma: ampliação do acesso aos serviços de atenção básica; mercantilização dos serviços de nível secundário e terciário (cerca de 70% da oferta estão na iniciativa privada); grande precarização dos vínculos de trabalho no setor público; terceirização de grande parte dos serviços assistenciais e terapêuticos; conformação de um sistema de saúde complementar, regulamentado; e institucionalização da participação, por meio dos conselhos e conferências de saúde nas três esferas de governo.   

 

Para saber mais

ANDERSON, P. Balanço do neoliberalismo. In: SADER, E. &  GENTILI, P. (Orgs.) Pós-neoliberalismo: as políticas sociais e o Estado democrático. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995. 

BATISTA Jr., P. N. O Consenso de Washington: a visão neoliberal dos problemas latino-americanos. São Paulo: Paz e Terra. 1994. (Cadernos da Dívida Externa, n. 6) 

BRASIL/MINISTÉRIO DA SAÚDE. Plano de Ação do Ministério da Saúde 1995-1999. Brasília, 1995. 

BRASIL. Presidência da República. Câmara da Reforma do Estado. Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado. Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado. Brasília, 1995. 

FIORI, J. L. Ajuste, transição e governabilidade: o enigma brasileiro. In: 

TAVARES, M. C. & FIORI, J. L. (Orgs.) (Des)Ajuste Global e Modernização Conservadora. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993. 

MORAES, R. Neoliberalismo: o que é e para onde leva. Cadernos em Tempo. Texto de apoio da edição n. 300/301. s.d. 

NETO, J. P. Crise global contemporânea e barbárie. In: LOUREIRO, I. M. &  VIGEVANI, T. (Orgs.) Liberalismo e Socialismo: velhos e novos paradigmas. São Paulo: Editora da Unesp, 1995. (Seminários e debates) 

PEREIRA. L. C. B. A Reforma do Estado nos anos 90: lógica e mecanismos de controle. Brasília, 1997. (Cadernos MARE da Reforma do Estado, Cad 1.) 

PEREIRA. L. C. B. Reforma Administrativa do Sistema de Saúde. In: Colóquio Técnico prévio à XXV Reunião do Conselho Diretivo do CLAD. Buenos Aires, out. 1995. 

SADER, E. & GENTILI, P. (Orgs.) Pósneoliberalismo: as políticas sociais e o Estado democrático. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995. 

SOARES, L. T. R Ajuste Neoliberal e Desajuste Social na América Latina. Rio de Janeiro: UFRJ, 1999.

 

Fonte: www.epsjv.fiocruz.br/dicionario/verbetes/neosau.html