Seminário: Neoliberalismo e Direitos Sociai: impactos na política de educação (2)

07/10/2011 17:07

O Bird e as reformas neoliberais na educação
Roberto Leher

Um estudo de educação comparada dos sistemas de ensino dos países latino-ameri-canos feito em dois períodos – no início da década de 80 e em meados da presente década –, por exemplo, atestaria, sem sombra de dúvida, que as reformas edu-cacionais que vêm acontecendo nesse intervalo de tempo unifor-mizaram de modo inédito a edu-cação desses países, com conse-qüências negativas para o padrão unitário de qualidade. Para tornar pensáveis essas mudanças, esse estudo desenvolve uma dupla te-se: 1) as reformas convergentes resultam das determinações do Banco Mundial – Banco Interna-cional para a Reconstrução e o Desenvolvimento – para o setor, e 2) o leitmotiv dessas reformas é a ideologia da globalização (Limoeiro Cardoso, 1997). Apre-sentada como uma realidade ine-xorável, coloca os países periféricos em uma rua de mão única: a adesão incondicional aos seus imperativos. A recusa levaria à marginalidade econômica, política e cultural.
O anúncio de uma nova era é comum nos períodos de crise es-trutural. Todas as crises impor-tantes vêm acompanhadas por novas periodizações. O propósito, quase sempre, é impedir o olhar do Angelus Novus, de Klee, para o passado. A crise estrutural do capitalismo hodierno (Dúmenil & Lévy, 1996) é mostrada para nós como uma série de acontecimentos virtuosos que irão culminar com a globalização redentora. Entretanto, o Anjo da História, conforme Walter Benjamin, “tem o rosto voltado para o passado, ele vê uma catástrofe única, que sem cessar acumula escombros sobre escombros, arremessando-os diante dos seus pés. Ele bem que gostaria de poder parar, acordar os mortos e reconstruir o destruído. Mas uma tempestade sopra do Paraíso, aninhando-se em suas asas, e ela é tão forte que ele não consegue mais cerrá-la. Essa tempestade impele-o incessantemente para o futuro, ao qual ele dá as costas, enquanto o monte de escombros cresce ante ele até o céu. Aquilo que chamamos de Progresso é essa tempestade” (Benjamin, 1991).
A ideologia da globalização encobre uma catástrofe única, planetária, que arrasa regiões inteiras. Os mortos, vítimas dessa tragédia, se acumulam aos milhões. São Tutsis, Hutus, Curdos, Iraquianos, “Nordestinos”. Vastas regiões do globo estão submetidas a uma “desco-nexão forçada” que só faz au-mentar a violência da tempestade e o rastro da destruição. Mas a ideologia da globalização impele a humanidade, por meio da criação de disposições, a olhar para a frente, deixando para trás os efeitos do ajuste estrutural, em nome de um futuro “está-vel”, inalterável, auto-regulado pelo mercado.
Para investigar as grandes tendências que transtornam a educação dos países latino-ame-ricanos, a investigação científica tem de afrontar, como o Anjo da História, o olhar dominante que aponta para a glo-balização virtuosa. Um programa de investigação rigoroso não poderia deixar de examinar uma instituição situada no olho da tempestade que reduz a educação, de um direito social republicano e laico, a um “ser-viço” distribuído “a cada um, de acordo com seus recursos”, pro-movendo um verdadeiro apar-theid educacional planetário.

Como a agenda educacional é reconfigurada
Sistemas educacionais que até poucas décadas atrás possuíam significativa diversidade entre si, como os da Costa do Marfim, de Marrocos, de Mali, da Venezuela, do Brasil, da Argentina, do Chile etc., estão reconfigurando seus modelos por meio de reformas que obedecem a um plano de obra de uniformidade fastidiosa, como se resultante de um admirável “consenso” que teria se alastrado pelas regiões “em desenvolvi-mento” na década de 90. No Bra-sil, a exemplo dos demais países, as principais medidas do governo para o setor estão direcionadas para o ensino elementar (criação do Fundo para Manutenção e De-senvolvimento do Ensino Funda-mental e para a Valorização do Ma-gistério) e para a formação profis-sional (redefinindo os centros de formação profissional, como os CEFETs). Em comum, todos es-tão empreendendo reformas cur-riculares, construindo sistemas centralizados de avaliação e intro-duzindo novos recursos tecnoló-gicos nas escolas, assim como medidas para desobrigar o Estado dos demais níveis e modalidades. O caso das universidades fe-derais brasileiras é patente. Por meio de uma pre-tensa política de autonomia, o go-verno cria as condições para um aprofundamento da privatização.
O mesmo mo-vimento que leva o neoliberalismo à condição de teoria dominante faz a teoria do capital humano ser re-tomada. Com ela, o alto retorno econômico do ensino funda-mental é ressaltado e sua difusão é tida como o principal passaporte para uma melhor inserção do país na chamada globalização. Tornou-se um truísmo a tese de que o melhor antídoto contra o desemprego é a educação. O sr. Francis Fukuyama (apud Anderson, 1992) afirma que, a rigor, não existe desemprego estrutural, mas trabalhadores inadaptados culturalmente à globalização, especialmente os afro-americanos e hispânicos. Esse déficit cultural, em sua concepção, é passível de ser resolvido pela educação “corretamente orientada”.
Sob a égide do Banco Mundial, o debate da educação foi transformado em assunto de ho-mens de negócios, banqueiros e estrategistas políticos, compondo a pauta obrigatória das revistas e dos jornais do mundo dos negó-cios, como The Economist, Fo-reign Affairs, Financial Times, Gazeta Mercantil, Exame etc., que celebram a emergência da sociedade do conhecimento: os países podem ser divididos de acordo com o nível de escola-rização de seu povo; somente os de melhor nível de escolarização poderão pleitear um lugar de destaque no mundo globalizado. Nos termos do Financial Times, a educação é a verdadeira riqueza das nações.
Qual o propósito da extraordi-nária difusão das teses que con-ferem à educação lugar no núcleo sólido das formulações neolibe-rais? O que pretende o Bird ao eleger a educação como priori-dade? Esse estudo propõe que a educação cumpra a importante função ideológica de operar as contradições advindas da exclusão estrutural dos países periféricos que se aprofunda de modo inédito. A educação está inscrita nas po-líticas de “aliviamento” da pobre-za, como ideologia capaz de evitar a “explosão” dos países e das regiões periféricas e de prover o neoliberalismo de um porvir em que exista a possibilidade de algum tipo de inclusão social: todo aquele que se qualificar poderá disputar, com chance, um emprego no novo “capitalismo intelectual”, nos termos de um dos editores da Fortune, T. Stewart (1998).
Em um sentido lato, o Banco Mundial tem a atribuição de “organizar” os interesses representados pelo G-7 nos países em desenvolvimento. Poucos duvidam, nos dias de hoje, que os debates a propósito da governabilidade e das reformas estruturais estejam sob a direção dessa instituição. Por meio de seus projetos e programas, ela exerce mais influência sobre a educação do que a Unesco, sobre a saúde do que a OMS, sobre as condições dos trabalhadores do que a OIT, sobre a agricultura do que a FAO etc. (George & Sabelli, 1994: 160). De fato, o Banco representa uma estrutura material da ideologia da globalização com a função mediadora de organizar e difundir a “concepção de mundo” que os “Senhores do Mundo” querem consolidar e reproduzir, nesse contexto de crise estrutural.
As orientações do Bird para a reforma educativa da América Latina e da África, bem como de certos países asiáticos, não são apenas “receituários com suges-tões”, fazendo parte dos acordos de ajuste estrutural. Para uma compreensão corretamente obje-tiva do modo como esse organis-mo passa a atuar nos países periféricos a partir da década de 80, é preciso levar em conta o fato de que a crise da dívida de 1982 deixou os países latino-americanos reféns do aval do Banco Mundial e do FMI. E o preço do aval foi a aceitação dos programas de ajuste estrutural. Eles foram apresentados pelos meios de comu-nicação como o novo “consenso” latino-americano. A reforma do sistema educacional é uma das condicionalidades impostas no processo de ajuste.

Deslocamento das prerrogativas da Unesco para o Bird
Para compreender como o Banco Mundial redesenha o sistema educacional dos países periféricos, é preciso considerar a sua traje-tória e, também, o modo como essa instituição, desde a década de 60, vem solapando as funções da Unesco, no bojo do deslocamento da ideologia do desenvolvimento para a da globalização.
A Unesco e a ideologia do desenvolvimento
Em sua origem, a Unesco foi basicamente uma instituição norte-americana produzida no contexto da Guerra Fria e da ideologia do desenvolvimento (Preston Jr., et. al, 1989). Po-rém, contra todas as expecta-tivas, com o processo de desco-lonização e o deslocamento da Guerra Fria para os países peri-féricos, a Unesco foi transfor-mada pelo Movimento dos Países Não-Alinhados e pelos países socialistas em uma refe-rência significativa para o debate educacional, encorajando po-líticas que favoreceram a apren-dizagem e o acesso ao conheci-mento de populações até então submetidas à violência da domi-nação estrangeira, representando um símbolo de esperança para os países explorados e de economia deformada.
Todo um aparato foi montado no Departamento de Estado dos EUA, no pós-II Guerra, para ga-rantir a adesão dos governos lati-no-americanos ao desenvolvimen-tismo (Rist, 1996). A estratégia estava centrada nos acordos bila-terais, como a Aliança para o Progresso, em que a propaganda anticomunista era feroz (Voz da América, Usaid). Sob a ótica do Departamento de Estado dos EUA, a educação não poderia ser uma prioridade da Aliança para o Progresso. Nas proposições de Rostow, a Educação tem impor-tância como formadora da menta-lidade desenvolvimentista (ou melhor, anticomunista), mas não era tida como decisiva do ponto de vista ideológico. No calor dos acontecimentos de então, a difu-são da ideologia foi feita princi-palmente por meio da propagan-da, tida como um meio mais rápido e efetivo de doutrinação. Em poucas palavras, a educação não era tida como decisiva na “que-bra” da inércia que aprisiona os países latino-americanos ao “sub-desenvolvimento”, o que explica o já relativo debilitamento da Unesco no período. O seu curso futuro, porém, causou profunda reação da direita organizada dos EUA que, como pode ser visto adiante, acabou levando esse país a abandonar a Unesco em 1984.
O abandono do desenvolvimentismo e a ideologia da globalização
A era do mercado ou da glo-balização é anunciada pelo atual presidente do Banco Mundial como a “maior transformação histórica da história recente”, uma conquista duradoura, um ponto zero a partir do qual se podem contar os anos a montante e a justante: “o Banco construiu as bases da política do novo século e do novo milênio” (Edwards, 1995, pág. 48). O Banco impõe a (dita) nova periodização por meio de um grande esforço econô-mico-ideológico com propósitos bem definidos: ao edificar a era da globalização, com todas as implicações dela decorrentes, essa ideologia apaga, concomitan-temente, os traços do tempo que caracterizam as instituições do mundo socialista, o Estado social dos países industrializados e, no caso da América Latina, os di-reitos e as instituições do insipi-ente Estado social, esboçados nesse século. As crenças ideoló-gicas que fundam a alegada pe-riodização tomam o lugar da ideologia do desenvolvimento, tornando ainda mais tênue a promessa da inclusão social.
Mas não apenas as perspec-tivas decididamente apologéticas fazem a globalização ecoar. Não são poucos os estudos da econo-mia, da sociologia do trabalho e da educação que a tomam como um fato. Apesar das diferentes motivações, é possível constatar uma estranha convergência entre os neoliberais e seus presumíveis críticos. Adotando o ponto de vista de que o novo papel da educação decorre de uma suposta revolução científica, tecnológica e organizacional, reforçam a ideologia da globalização e o determi-nismo tecnológico, ofuscando o problema real da crise estrutural do modo de produção capitalista, bem como de suas conseqüências para a educação. Assim, apesar das críticas enfocarem tanto o processo de exploração do traba-lho possibilitado pela reestrutu-ração produtiva, quanto o desem-prego estrutural, grande parte delas deixa de lado a análise do pro-cesso do capital em seu conjunto, como se a lei do valor comandasse apenas a vida econômica no chão da fábrica, em de-trimento da dimen-são macroeconô-mica. Desse mo-do, a tendência atual da expansão capitalista de produzir sistematicamente a desi-gualdade entre regiões, países e classes sociais explica (e muito) os encaminhamentos do Banco Mundial para a educação dos paí-ses em desenvolvimento, muitas vezes criticada apenas em seus aspectos secundários.
A ideologia da globalização é produzida no contexto da crise estrutural do capitalismo que vem configurando a economia hege-mônica desde a década de 50, quando a taxa de lucro passou a ter uma trajetória descendente, deteriorando os meios de produção e distribuição. Essa curva para baixo, em um primeiro momento, passou despercebida em virtude das políticas keynesianas orien-tadas para o crescimento econô-mico de Kennedy e Johnson. Todavia, na década de 70 tor-nou-se impossível ignorar que a tendência de redução da taxa de lucro era forte, sobrevindo pro-fundas manifestações como inflação mundial, desemprego etc. (Duménil e Lévy, 1996).
O exame da teoria econô-mica dominante é considerado aqui em referência a sua dupla função social. Ela assume, de uma parte, uma função apologé-tica que confere ao funciona-mento da economia uma visão fortemente idealizada (ex: relação emprego e qualificação) e, de outra parte, fornece indicações práticas para o empreendimento de políticas/reformas de insti-tuições (o ajuste estrutural e, mais especificamente, a reforma do sis-tema educacio-nal). Celebra o fetichismo do mercado, rejei-tando a intervenção do Estado, sobretudo os ter-mos keynesianos que refutam a cínica tese do desemprego volun-tário. Mais do que nunca, avaliam Duménil e Lévy (1996), o para-digma fundamental é o do equi-líbrio geral.
No contexto de deslocamento da ideologia do desenvolvimento para a da globalização, a promessa messiânica não é mais a superação da pobreza (com a inclusão so-cial), mas o aliviamento da pobre-za (naturalizando a exclusão so-cial). Na ideologia da globalização, a preocupação com a segurança tem especificidades que a diferen-ciam da ideologia do desenvol-vimento. Na situação atual, dife-rentemente da anterior, os chama-dos pobres não constituem um “exército industrial de reserva”, marginalizados temporariamente. Tendo em vista o desemprego estrutural, são excluídos mesmo: a exclusão é estrutural.

Polarização e apartheid educacional
Este trabalho propõe, com Arrighi (1997), Batista Jr.(1997), Chesnais (1996), Limoeiro Cardo-so (1997) e especialmente com Amin (1996), que o sistema mun-dial moderno não tende à “globa-lização unificadora”, mas antes há uma polarização entre os Estados do núcleo (Europa ocidental e central, Estados Unidos e Canadá, Japão e Austrália) e o restante do capitalismo mundial. Amin (1996: 77) sustenta que os países cen-trais possuem um mercado inte-grado tridimensionalmente (mer-cado de mercadorias, capital e tra-balho), enquanto os demais (as “periferias”) apresentam um mer-cado bidimensional, integrando, progressivamente, a troca de mer-cadoria e a circulação do capital, excluindo a força de trabalho, cu-jo mercado permanece bloqueado (as restrições à imigração tornam-se cada vez mais severas), geran-do uma polarização inevitável, evidenciada pela análise da lei do valor capitalista mundializado (a forma concreta da lei do valor as-sociada à expansão mundial do capitalismo, Ibid., pág. 318). Amin (Ibid., pág. 320) pros-segue sua argumentação asseve-rando que a ideologia da glo-balização só seria coerente se ousasse proclamar a abolição total das fronteiras e permitir a livre circulação da força de tra-balho, da mesma forma que rei-vindica ao comércio e ao fluxo de capital. Só assim essa ideo-logia seria coerente consigo mesma, propondo a homoge-neização das condições sociais pela via capitalista.
A característica bidimensional das economias dos países peri-féricos tem sido acentuada pela imposição do ajuste estrutural. As regiões periféricas de maior industrialização estão sofrendo um grave processo de desindus-trialização e desconexão forçada do mercado de trabalho, que se degrada na informalidade. A desconexão forçada do mercado de trabalho, ao contrário do apre-goado pelo Banco Mundial, não poupa sequer os trabalhadores mais escolarizados. Ao contrário, no Brasil o único subgrupo em que a taxa de desemprego caiu foi o dos trabalhadores com o pri-meiro grau incompleto (1989- 65,1%; 1997- 52,2%). Em todos os demais subgrupos, o desem-prego aumentou.
Essa situação de polarização, própria do capitalismo, cria uma situação que torna ilusórias todas as tentativas das periferias (que representam ¾ da humanidade) de assegurar a seus povos níveis de vida comparáveis àqueles das mi-norias privilegiadas dos centros. Nem mesmo como ideologia a “inclusão” no “desenvolvimento” é apregoada. Arrighi (1997) cons-tatou que a década de 80 foi o período de ocaso do desenvolvi-mento e, desde então, as menções a ele são vagas. Todo o aparato das Nações Unidas voltado para o desenvolvimento está enfraque-cido pelas ações debilitadoras dos EUA. A tênue promessa neoli-beral de que, com a globalização, os países poderão elevar o nível de vida de seus povos não en-contra portanto nenhum suporte histórico.
O agravamento da polarização e o deslocamento do eixo de preo-cupação do Bird (do combate ao alívio da pobreza) fazem que a política educacional dessa insti-tuição institua um verdadeiro apartheid educacional planetário: os países periféricos devem res-tringir a ação do Estado ao ensino fundamental, voltado para “ali-viar” a pobreza. Essas reformas redesenham os sistemas educa-cionais desses países, confor-mando-os à divisão internacional do trabalho, nos termos propos-tos por Amin (1996).
O hiato educacional que opõe os países do centro aos das peri-ferias não pára de crescer em to-dos os níveis e modalidades. Os países da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) gastavam no primário, em 1960, 14 vezes mais do que os “em desenvolvimento”; em 1970, 22 vezes; em 1980, 50 vezes. Os países periféricos, ape-sar de contarem com 80% da po-pulação mundial, gastam apenas 2% do montante de recursos utili-zados em ciência e tecnologia. Desde meados da década de 70, nenhum empréstimo para C&T do Banco Mundial foi aplicado na África. Orientados pela tese das “vantagens comparativas”, os teóricos do Banco se apressam em preconizar aos países em de-senvolvimento a universalização do ensino fundamental mínimo em detrimento dos demais ní-veis, alegando que esse nível possui a maior taxa de retorno no tempo.
O debilitamento do ensino científico universal nas periferias é empreendido por reformas cur-riculares carregadas de cultura-lismo. Tais reformulações partem do pressuposto de que as diver-sidades culturais são fixas, eter-nas, transistóricas e, sobretudo, perigosas. Um dos principais ideólogos da CIA, o professor Sa-muel Huntington (apud Ramonet, 1998: 91), afirma: “Minha hipó-tese é de que, no mundo novo, os conflitos não terão, na essência, como origem a ideologia ou a eco-nomia. As grandes causas da di-visão da humanidade e as prin-cipais fontes de conflitos serão culturais”. A Cepal (1995) pro-paga essa tese, afirmando que os currículos devem enfatizar a cul-tura “local” para que o Estado possa compreender os “códigos” das populações excluídas com o objetivo de antever e, assim, evitar distúrbios e contestações à ordem.

O Banco Mundial, a Unesco e a educação na década de 90
Em 1984, com a saída de EUA, Cingapura e Inglaterra da Unesco, suas prerrogativas fo-ram assumidas, de vez, pelo Banco Mundial. Com o abandono da ideologia do desenvolvimento e a débâcle do regime dos países do Leste Europeu, outros meios de direção intelectual e moral passaram a ser privilegiados. Com efeito, a ação de Reagan não foi algo isolado, estando em conformi-dade com os desejos da ultradirei-tista Fundação Heritage, que construiu minuciosamente a saída dos EUA da Unesco. Uma conseqüência dessa saída foi a eleva-ção do Banco Mundial à condição de Ministério da Educação dos Países Periféricos.
O pressuposto fundamental que informa as recomendações do Bird pode ser assim sumarizado: um mercado global livre decide melhor quais trabalhos estão localizados em que país (Caufield, 1997: 294). Como o mercado de trabalho não é globalizado, devido às robustas barreiras erigidas pelos países do G-7 contra o livre fluxo de imigrantes, sofre, nos países periféricos, uma “descone-xão forçada” do capitalismo mais avançado, ficando limitado a empregos de modesta qualificação. Conforme a tese das vantagens comparativas, os novos países in-dustrializados são importadores de bens de produção e exportadores de produtos de baixo valor agregado, di-recionados para nichos de mercado. Por isso, avalia o Banco Mundial, esses países não requerem univer-sidades voltadas para a pesquisa. Mesmo o ensino técnico não deve demandar base científica (recente empréstimo do Banco Interame-ricano de Desenvolvimento (BID) para os CEFETs foi condicionado à redução das disciplinas científicas e de humanidades) e o ensino básico é fortemente direcionado para o ensino elementar minimalista.
O Banco Mundial não quer abandonar/reconfigurar o ensino superior para transferir seus re-cursos para o ensino fundamental. Em recente análise, o Orça-mento da União no período 1995-1998 registra uma redução de 28,7% na rubrica “ensino superior”, a principal atribuição da União em matéria educativa e, no entanto, as verbas para o ensino fundamental não aumentaram; ao contrário, também diminuíram no período citado.
O exame dos objetivos polí-ticos das ações do Bird é, por conseguinte, imprescindível. Uma análise histórica de sua trajetória mostra que a preocupação com a segurança foi sempre uma cons-tante em seu meio século de vida. Inicialmente por meio de ações di-fusas, mas logo assumindo contornos mais definidos, até chegar ao período McNamara, que lhe confere status de prioridade e estatuto teórico definido (expresso na doutrina da segurança e pobreza). A partir da década de 70, o Bird amplia seu raio de ação, aumenta o escopo de suas políticas e se torna o maior depositá-rio internacional de estudos e estatísticas a pro-pósito dos países em desenvolvi-mento. Em um contexto de lutas anticoloniais e de contestação ar-mada a gover-nos ditatoriais, em geral a partir do campo, empreende verdadeira cruzada para introduzir a revo-lução verde nos países perifé-ricos e, com isso, afastar o perigo comunista no campo. Como des-dobramento desse movimento, o ensino profissionalizante (em especial agrotécnico) ganhou notável impulso, contribuindo para a consolidação da educação (associada à segurança) na agen-da da instituição. Atualmente, a exclusão e a miséria obrigam a retomada da conexão segurança-pobreza em outra dimensão, muito mais grave.
A governabilidade não está limitada à esfera econômica, em-bora o Bird assim o afirme. Des-de que ofereça estabilidade aos investidores e siga o cânone do Banco Mundial, um governo to-talitário certamente será concei-tuado como um “bom governo”. Fica evidente que essa noção é incompatível com a democracia. Vale lembrar que, antes da crise econômica de 1997-1998, a Indo-nésia era tida como um exemplo a ser seguido, idem para o gover-no de Salinas (México), hoje fora-gido da justiça de seu país. No período da Guerra Fria, qualquer governo contra os comunistas era tido como um governo amigo; com seu fim, o diapasão é a concordância, em ato, com o novo cânone. Na década de 90, a preo-cupação é a mesma, a saber, ga-rantir as condições para que os investidores realizem seus negó-cios sem obstáculos indesejáveis ou mudanças nas regras do jogo.
A exemplo da França no sécu-lo XIX, os pobres continuam a ser a “classe perigosa”, capaz de criar um clima de instabilidade para os investimentos: “Nós devemos reconhecer que convive-mos com uma bomba-relógio e, a menos que façamos algo agora, ela pode explodir no rosto de nos-sas próprias crianças” (Wolfen-sohn, 1997). E o Bird se apre-senta como a principal instituição capaz de fazer algo para impedir a “explosão”. Nos termos de George e Sabelli (op. cit., p. 145): “nós vemos que o Banco visivel-mente se posiciona como o maior ator político na nova fase da história mundial”, uma pretensão fundamentada, tendo em vista seu poder financeiro, sua capacidade de ditar políticas e sua habilidade de mobilizar recursos de outras instituições, dando as condições para alterar fundamentalmente o curso dos futuros eventos, em nome da ameaça à segurança, anunciada pelas classes perigosas (Ibid. p. 146). A preocupação de Sebastian Edwards, um dos ideó-logos do Banco Mundial para a América Latina, com o retorno de governos populistas incapazes de perceber o “processo civiliza-tório” conduzido pela instituição, ilustra a presença da preocupação com a governabilidade.
Distintamente do período da Guerra Fria, em que a ideologia do desenvolvimento era universa-lista – todo país que adotasse o modelo capitalista poderia em-preender uma política desenvol-vimentista –, na era do mercado a situação é outra. Ao trabalhar com a noção de “aliviamento da pobreza” está implícito que o Banco considera a polarização Centro/Periferias imutável. Na percepção dessa instituição, se não é possível integrar as pessoas ao tempo hegemônico (era do mercado ou da globalização) pelo desenvolvimento econômico, é preciso integrá-las de uma outra forma. E a educação é a mais recorrentemente citada. Com efeito, o espaço ocupado pela educação nos documentos do Banco Mundial e nos jornais direcionados para os negócios assumiu proporções jamais vistas. No entanto, um exame mais de perto indica que a preocupação principal não é com a educação propriamente dita, mas, antes e sobretudo, com a sua capacidade de produzir “disposições ideológicas” capazes de operar o problema (não solucionado pelo neoliberalismo) da inserção dos jovens e desempregados no mercado de trabalho (em uma perspectiva microeconô-mica), e o da integração dos países e regiões em desenvolvimento à globalização (em uma perspectiva macroeconômica). A motivação comum que orienta essas “disposições” é a estabilidade política.

Retomando o Anjo da História de Benjamin/Klee, este estudo é um breve olhar sobre os escom-bros produzidos pelo ruinoso “ajuste estrutural” nos países periféricos. A principal instituição envolvida na reconfiguração da educação desses países, o Banco Mundial, é ainda pouco conheci-da. Assim, este estudo é também uma contribuição para que a so-ciedade brasileira conheça melhor o Banco, sua constituição, suas formas de atuação, e como se tor-nou a instituição líder do ajuste estrutural e, mais especificamente, o Ministério da Educação dos Países Periféricos.
Limites de abrangência do estudo impediram o aprofunda-mento de algumas questões como a situação concreta da educação brasileira e as alternativas produ-zidas pelos movimentos sociais que se opõem ao pensamento único, notadamente a importante experiência dos Congressos Na-cionais de Educação (Coneds) que culminaram com um projeto educacional alternativo, hoje em disputa no Congresso Nacional. Entretanto, o estudo tem a expec-tativa de se somar a todos os ou-tros estudos críticos que negam o status de conceito à globali-zação, compreendendo-a como um projeto que tenta se realizar e que, portanto, pode ser transfor-mado pela ação deliberada e orga-nizada de sujeitos em luta.