São Paulo não é mais uma cidade... por Laymert Garcia dos Santos

05/12/2011 12:28

São Paulo não é mais uma cidade...

 

...constatação dura de aceitar.

A cidade deixou de ser. Não por ter sido promovida a metrópole; e, recentemente, a metrópole global. A cidade deixou de ser porque os espírito da cidade não habita mais seus moradores. O espírito não está mais lá, esgarçou-se até romper-se com as forças concomitantes e complementares da riqueza e da pobreza que, desenfreadas, tomaram conta do espaço e do tempo, violentando os lugares e as pessoas. São Paulo é a cidade que deixou de ser. Seu espírito se esvaneceu e agora tudo começa a mostrar os sinais da desagregação e da decomposição. Mas ninguém se importa com o que já aconteceu, acontece ou está para acontecer. A agonia da cidade é um efeito colateral que ninguém vê, nem quer ver.

Não é que a metrópole cresceu demais e tornou-se ingovernável. Nem que ela careceu tanto de planejamento urbano que agora tornou-se ‘impossível’. É isso e muito mais. São Paulo explode implodindo, se estilhaça como cidade fundindo num magma caótico cada um dos seus fragmentos. Co-existência de um movimento paradoxal, centrípeto e centrifugo.

Os privilegiados, sentindo na pele os efeitos da desagregação, desertaram, refugiando-se nos bunkers em que se transformaram as casas, os edifícios, os shoppings. Foi tudo quase imperceptível, talvez porque estendeu-se ao longo de duas décadas. Primeiro a elite abandonou a rua, trocando-a pelos espaços fechados; depois, abriu mão do urbano e da urbanidade: enquanto alguns se transferiam para Miami, os que ficaram trancaram os automóveis, para não falar dos blindados que estão se ‘democratizando’ e chegando à classe média. Agora, com a saturação do tráfego, a pane dos serviços, a escalada da criminalidade, o assédio dos miseráveis, a proliferação das máfias e a corrupção e a falência do poder municipal, a elite parece ter desistido da cidade mesma. São Paulo só é metrópole do capitalismo global nas redes cibernéticas, nos restaurantes e boutiques de luxo, nas pequenas ilhas de afluência guardadas por cães, seguranças e toda uma arquitetura de campo de concentração que protege seus felizes prisioneiros. O resto é o que ninguém quer ver e todos se esforçam por ignorar.

A própria avenida Paulista, espelho e cartão postal do empreendedor moderno, além de coração financeiro do país, não escapa do processo. Quando o Estado de São Paulo ‘acordou’, assustado com sua provável transformação numa nova Avenida São João, já era tarde demais. Os bem-pensantes acham que os camelôs poluem a avenida e querem enxotá-los dali. Mas quem se indigna contra a tenda de plástico que direção do MASP instalou no vão, obstruindo precisamente a vista da cidade? Ou contra as barraquinhas dos antiquários armadas aos domingos? Quem se incomoda com a transformação do próprio museu (o que há de melhor em termos de arquitetura na cidade) num cabide onde se pendura todo o lixo iconográfico da empresas? A elite paulistana desistiu de São Paulo e passou a conceber o espaço urbano como um terreno baldio, onde pendura as mensagens e imagens que quer vender para ‘os outros’. É só ver sua volúpia para emporcalhar a avenida Paulista e os pontos ‘nobres’ com suas faixas, cartazes, outdoors, displays eletrônicos e toda a parafernália kitsch que amontoa, sobre os trapos e restos dos miseráveis, o lixo dos sonhos de consumo.

No espaço urbano agonizante a elite projeta e constrói, com imagens, a sua cidade – que é tão ou mais miserável quanto aquela que pretende ignorar. O resultado exibe obscenidade, vulgaridade, truculência por meio das quais uma classe dirigente impõe, sobre a realidade, a realidade da imagem. O resultado é esse acordo-desacordo da força virtual do mercado com a violência atual da miséria.

Em São Paulo, os que estão por cima ou não aparecem ou o fazem através das imagens. Os que estão por baixo ocupam o chão: embaixo, atrás, dentro das mensagens e imagens ‘do outro mundo’. São seres concretos, tangíveis, tridimensionais, de carne e osso – seres vivos. Mas porque habitam a cidade como não-pessoas, isto é, ‘sujeitos monetários sem dinheiro’, para usar a expressão de Robert Kurz, surgem como presenças quase irreais, às vezes surreais, em todo o caso sempre inadequadas e inoportunas, presenças excessivas, insistentes, que o olhar não quer reconhecer nem aceitar, presenças imprevistas que a mente procura abolir ou evitar. Não se pense, porem, que a cidade é deles; muito ao contrário. Embora nela vivam, aí estão como excluídos e por isso parecem tão deslocados, tão sós, tão fantasmagóricos. Como se o imenso desejo de eliminá-los da paisagem urbana colasse em sua humanidade, marcando-os ao mesmo tempo com os signos indeléveis da diferença e da indiferença que lhes confere um aspecto ora patético ora desesperado, ora absurdo, ora alucinado.

Entre os que deserdaram e os que foram deserdados, nem privilegiados nem excluídos, passam pela cidade, anônimos e desenraizados, os trabalhadores que compõem a massa urbana. Para eles a cidade parece reduzir-se ao longo e cansativo trajeto de casa ao trabalho, ao tempo perdido do transporte. Da periferia ao centro, do centro à periferia: o espaço urbano é o que se inscreve entre dois pontos, cujo sentido ameaçador será dado pelos programas de rádio e pelos telejornais sensacionalistas. Que vínculos podem eles tecer como uma cidade temida e evitada sempre que possível?

Desertada, deserdada, evitada, a cidade deixou de ser. São Paulo, ‘ruínas do presente’? A expressão é dela e serena demais para designar um furor destrutivo, cuja força se faz sentir mesmo quando o recalcamos e queremos nos iludir com as improváveis chances de uma redenção. São Paulo não é uma cidade em ruínas, pois uma cidade em ruínas sempre pode ser reconstruída. Aqui estão sendo destroçados o conceito e a possibilidade mesma de cidade.

São Paulo é a morte da aura da cidade.

[Este texto foi escrito por Laymert Garcia dos Santos em 2000, para Paolo Gasparini, fotógrafo ítalo-venezuelano. Publicado em Cidade e Cultura, Vera Pallamin (org.), São Paulo, Estação Liberdade, 2002]