Perry Anderson: Concertação de cinco potências comanda o mundo numa nova era de restauração

01/06/2010 18:02

Situação atual da hegemonia

Perry Anderson

 

Concertação de cinco potências comanda o mundo numa nova era de restauração

Com o colapso do bloco soviético e o começo da Era da Reforma na China desaparece a ameaça de revolução socialista, que era o fundamento da hegemonia norte- americana após 1945. A mudança pode ser colocada de modo muito simples: assim que o pancapitalismo chegou, não há mais motivos para um todo-poderoso escudo contra inimigos anticapitalistas. Hoje, só restam Estados capitalistas amigos. Claro, nem todos os principais Estados são capitalistas na mesma medida, Rússia e China permanecem fora das normas liberais do livre-mercado. Mas fazem parte do mesmo ecúmeno, partilhando interesses políticos e econômicos em comum com os Estados Unidos, os principais Estados europeus e o Japão.

O resultado é, visivelmente, a emergência de uma nova Concertação das Potências, com assento no Conselho de Segurança e em encontros econômicos globais variados, unida em defesa de um status quo estratégico, em torno de seu monopólio de armas nucleares. Resoluções atuais da ONU contra a Coréia do Norte e o Irã ou sobre o Líbano, o Iraque e o Afeganistão são o equivalente nos dias de hoje ao sistema de Congresso nos tempos de Metternich e Castelreagh, Alexandre II e Talleyrand.

Na sua versão contemporânea, os Estados Unidos seguem hegemônicos, com superioridade em armas, riqueza e ideologia: nenhuma outra potência está disposta a colocar-se em contraposição em relação a qualquer tópico sobre o qual os EUA insistem. Seguem hegemônicos porque as demais potências são, em termos estruturais, aliadas na ordem mundial e não inimigas. Mas trata-se de uma hegemonia mais frouxa e flexível do que no passado, e a hierarquia que assume está sujeita, como Giovanni Arrighi corretamente assinalou, à erosão.

Novo panorama
Em termos políticos, o panorama diante de nós não é um caos sistêmico, assim como não era nos anos 1820. Após a derrota do grande ciclo de revoluções que marcaram o século XX, trata-se de uma nova época de Restauração. Os paralelos são muito próximos, apesar de as diferenças também serem significativas. Hoje, como no tempo do Congresso de Viena, mesmo que agora em uma escala global e não mais continental, uma Pentarquia partilha o poder. Onde antes havia Inglaterra, Rússia, Prússia, Áustria e França, agora há América, Europa, Rússia, China e Japão.

No antigo sistema do Congresso, nunca houve harmonia completa entre as potências: tensões e desacordos permaneceram, dentro de uma unidade comum em torno dos mesmos objetivos. Ao mesmo tempo, os Estados na Pentarquia não eram todos parecidos: a Inglaterra parlamentarista, a França legitimista, a Rússia absolutista. Eram tipos diferentes de Antigo Regime. Também não havia igualdade de status dentro da Pentarquia: Inglaterra e Rússia – os dois opostos dentro de um leque de formas políticas – dominavam os outros, como hegemons conjuntos. Isso não impediu a coordenação diplomática, a tolerância mútua e a criação de um sistema consentido para negociar divergências entre as potências, que manteve uma paz contra-revolucionária na Europa durante quarenta anos.

A Pentarquia de hoje também inclui potências de tipos diversos. Os Estados Unidos, a Europa e o Japão formam um conjunto homogêneo de regimes liberal-democráticos – configuram a frente política que lutou e venceu a Guerra Fria sob o comando norte-americano. Mas a Rússia, por mais que não seja mais comunista, mantém-se distante do nível de democracia aceito no Ocidente, enquanto a China segue sob o governo de um partido comunista – aos olhos ocidentais, uma autocracia de nova estirpe. Nessa relativa diversidade de formas políticas, a nova Pentarquia parece com a antiga. Mas difere na ordem de suas funções e na natureza de seus mecanismos. A Concertação das Potências do início do século XIX foi pensada para defender o acordo de Restauração do Congresso de Viena, garantindo que grandes guerras não poderiam deslanchar levantes sociais e que tumultos políticos poderiam ser rapidamente resolvidos, com intervenção armada para além de fronteiras, se necessário, caso o acordo fosse quebrado.

A Concertação das Potências do início do século XXI certamente segue essas tarefas, mas não são sua prioridade. O risco de conflitos militares entre elas se tornou uma perspectiva remota, e o perigo de grandes levantes sociais é muito menor do que na Europa da Restauração, onde seguiu agudo – o exemplo revolucionário de 1789 servindo como motivo de inflamação em 1820-1821, 1830 e 1848. Era do império Isso não significa, obviamente, que falte turbulência política. Mas a confiança de Arrighi de que as forças mundiais do trabalho se levantariam dentro do ciclo de expansão financeira que acaba de terminar, não convence. Globalmente, os movimentos de trabalhadores seguiram em refluxo em quase em todos os lugares nesse período, e não recuperaram seu ímpeto. Em quase todo o mundo, a resistência à ordem estabelecida veio de forças outras que as da classe trabalhadora e com outras fés além do socialismo – especialmente no Oriente Médio e no Mundo Islâmico. Aí, além do ou no perímetro da Pentarquia, não é – como antes, no século XIX – a hegemonia que se impõe, mas o império. A violência norte-americana no Iraque, Afeganistão e Paquistão; violência russa na Chechênia; violência chinesa em Xinjang e no Tibete; violência européia nos Bálcãs. Mas se as tarefas estritamente militares e políticas da Concertação das Potências de hoje têm menos urgência ou prioridade, isso não significa que o grau de coordenação entre elas seja menor. Ao contrário, é muito maior. Mas a chave para a concertação mudou. Ela agora é econômica – a defesa da estabilidade capitalista como tal.

Num mundo onde a revolução industrial era ainda recente, confinada a apenas um punhado de sociedades, onde os principais Estados mantinham um leque ainda maior de formas diferentes de produção do que de sistemas políticos e onde economias ainda eram relativamente desconectadas, isso não era o caso. A antiga Pentarquia não se preocupava com mercados, lucros ou indústrias. Hoje, tudo isso mudou. No mercado mundial contemporâneo, a nova Pentarquia se mantém vinculada numa rede combinada de fluxos de comércio e investimento em uma interdependência compacta, na qual a prosperidade e a estabilidade de cada um dependem da dos outros. Nesse sistema, qualquer ameaça econômica a um dos Pentarcas se transmite aos demais, numa velocidade e numa escala inconcebíveis até agora, como os efeitos de difusão do colapso de Wall Street em setembro de 2008 deixaram claro. Nada é mais impressionante do que a velocidade e a uniformidade das respostas políticas à crise financeira atual da Pentarquia moderna, que antecipa movimentos para um sistema internacional ainda mais integrado de consultas mútuas e ação concertada.

O Brasil e a Índia
Quão estável é a Concertação das Potências de hoje? Dois Estados importantes, de peso econômico e político crescente, seguem na tangente. Nem Brasil nem Índia pertencem, até o momento, ao grupo central das Grandes Potências. Embora as razões para isso não sejam as mesmas nos dois casos, há três aspectos comuns que levam à separação desses dois países da Pentarquia.

Primeiro, os dois são democracias em sociedades nas quais a maioria da população é pobre – não apenas na Índia, mas também em muitas partes do Brasil, desesperadamente pobre, enquanto uma minoria é escandalosamente rica. Dada a competição eleitoral – ausente na Rússia ou na China –, os governos desses dois países não podem ignorar completamente as pressões sociais das massas. Em segundo, o crescimento econômico desses dois países tem acontecido com base no mercado doméstico num grau maior do que nos casos extremamente dependentes de exportações da China, principalmente, mas também do Japão, da Rússia ou do coração da União Européia, a Alemanha. Assim, o índice de integração brasileira e indiana no sistema interconectado em que a Pentarquia domina, segue relativamente limitado. É significativo que cada um deles resistiu à crise financeira global sem abrir mão de enormes pacotes políticos de estímulo.

Finalmente, apesar de razões opostas, nenhum deles é membro credenciado da oligarquia nuclear – a Índia porque se recusou a assinar o discriminatório Tratado de Não-Proliferação, desenvolvendo sua própria capacidade nuclear, e o Brasil porque, sob um governo subalterno, assinou o tratado para agradar a Washington, apesar de até os governantes do período militar terem tido suficiente independência de espírito para rejeitá-lo. Apesar de armas nucleares não serem um requisito absoluto para integrar a Concertação das Potências de hoje, o Japão mostra que, sem elas, um grau ainda maior de subordinação aos Estados Unidos como hegemon se segue, diferentemente do que ocorre com outras potências, fato que o Brasil deve em breve descobrir.

Em outra perspectiva, tirando de lado a desvantagem nuclear, o Brasil desfruta de um ambiente regional que faz falta à Índia: a saber, a América Latina é a única parte do mundo, hoje, onde o capitalismo segue sob contestação, em formas variadas, por diferentes movimentos e em graus variados por diferentes governos, e onde ideais de solidariedade regional têm raízes culturais e políticas razoavelmente profundas. Não é um acidente que aí, e talvez apenas aí, as ideologias reinantes do Norte se depararam em anos recentes com resistências populares, uma após a outra, e que foram feitas tentativas conscientes de limitar ou prevenir a já muito tradicional influência do hegemon nas questões do continente. Não é preciso dizer muito sobre isso, pois Emir Sader escreveu com mais autoridade sobre os ciclos de revolução e contra-revolução, reforma e repressão, na América Latina.

Política despolitizada
A estabilidade da Concertação das Potências não é, claro, apenas uma questão de sua composição atual, como se o conjunto de regimes determinasse a direção do sistema político internacional. Sua estabilidade também é função da capacidade das forças antagônicas a esse sistema de desafiálo. Aí, a questão da hegemonia se coloca em um nível diferente.

Classicamente, hegemonia tem sido entendida como nacional ou internacional – exercida entre classes dentro de um Estado ou entre Estados. Mas como o pensador da esquerda chinesa Wang Hui colocou, hegemonia também opera em um terceiro plano, propriamente transnacional, cortando entre as fronteiras dos Estados para englobar toda a sociedade nacional. O ensaio no qual ele faz essa distinção se chama “Política despolitizada”. Tal política, ele afirma, marca uma nova era em muitas partes do mundo. O que política despolitizada quer dizer? Essencialmente, o cancelamento de qualquer ação popular, da capacidade de lutar por uma alternativa a um status quo que simula formas representativas para esvaziá-las de divisão ou conflito.

Tal política é despolitizada, mas não é desideologizada. Pelo contrário, é ideológica de cabo a rabo. Se nos perguntarmos sobre quais formas essa ideologia tomou nos anos recentes, podemos diferenciar dois níveis. O primeiro, e mais bem articulado, tem sido as doutrinas do neoliberalismo. Essas não só propuseram uma forma de olhar o mundo, mas – seu efeito mais poderoso – negaram a possibilidade de qualquer outra forma.

Foi Thatcher, na Inglaterra, quem cunhou o famoso slogan que capturou a essência da política despolitizada, com um acrônimo que também era um nome feminino – “TINA: There Is No Alternative” [Não há alternativa]. Não há alternativa ao governo do livre-mercado sem regulamentação, à privatização das principais indústrias e de todo serviço possível, em suma, ao reino irrestrito do capital. Essa ideologia, originada no Norte, mas aplicada de modo sistemático no Sul, na América Latina – Bolívia, Chile e outros lugares – foi durante os anos 1990 verdadeiramente transnacional: hegemônica por virtualmente toda sociedade, apoiada por elites políticas, ministérios das Finanças e instrumentos de mídia em todo o globo.

Hoje, após vários falsos amanheceres, essa ideologia está finalmente se desintegrando. O neoliberalismo não saiu de cena, e seus defensores, temporariamente desorganizados no cerne da crise, já se reagrupam para entoá-lo uma vez mais. Mas no presente encontra-se gravemente enfraquecido. A razão pela qual não está completamente acabado se deve ao contínuo apelo de seu slogan. Onde estão as alternativas?

O consumismo
Quando a grande crise dos anos 1930 abalou o mundo, havia – já existentes – poderosas alternativas ao dogmatismo do laissez-faire da época: keynesianismo, inspirando o New Deal nos Estados Unidos; nazismo, que atingiu o pleno emprego na Alemanha de modo mais eficiente do que o New Deal; a socialdemocracia nascente na Escandinávia; sem falar dos Planos Quinquenais na Rússia. Por detrás desses programas, movimentos de massa altamente politizados eram organizados. Hoje, no Norte, tudo isso faz falta. Os de cima não têm nenhum programa alternativo a oferecer; os de baixo ficaram passivos e atordoados até o momento, sem agendas alternativas para mobilizá-los. Uma certa cegueira ideológica chega ao fim. A clarividência ainda precisa ser recuperada.

Em parte, isso se deve ao fato de, no alto nível das doutrinas formalmente articuladas, onde o neoliberalismo dominava, a hegemonia transnacional do capital teve, e segue tendo, fôlego. Cito Wang Hui: “Hegemonia diz respeito não só a relações nacionais ou internacionais, mas está intimamente conectada ao capitalismo transnacional e supranacional. Deve ser analisado dentro da esfera das relações de mercado globalizadas. [...] As mais diretas expressões do aparato mercadológico- ideológico são a mídia, a publicidade, o “mundo do consumo” e assim por diante. Esses mecanismos não são apenas comerciais, mas ideológicos. Seu grande poder se baseia em seu apelo ao “senso comum”, necessidades corriqueiras que transformam as pessoas em consumidoras, voluntariamente seguindo a lógica do mercado em suas vidas cotidianas”.

O consumismo é corretamente identificado como uma forma de sustentação da hegemonia global do capital. Mas nesse nível também a estrutura da hegemonia atual é dupla. Consumo – sim: é o terreno da presa ideológica em um domínio da vida cotidiana. Mas o capitalismo, não devemos nunca esquecer, mantém em sua base um sistema de produção, e é no trabalho assim como no lazer que a hegemonia se reproduz cotidianamente. O que Marx denomina de “compulsão ao trabalho alienado” progressivamente adapta pessoas a relações sociais existentes, matando suas energias e a capacidade de imaginar qualquer outra e melhor ordem do mundo.

Nessa estrutura existencial dupla, na encruzilhada entre o universo da produção e do consumo – cada um sendo uma compensação, meio-real e meio-ilusória, para o outro –, constitui- se o mais profundo nível da estrutura transnacional de hegemonia na política despolitizada de hoje. Termino aqui com uma ilustração simbólica do que a hegemonia continua a significar hoje: o prêmio Nobel do presidente Obama, dos Estados Unidos. O prêmio em si, um milhão de dólares e muito mais em publicidade, faz parte inteiramente do consumo transnacional de cultura de celebridade e do comércio. No plano nacional, engrandece a imagem do político, em um momento em que seu prestígio declinava. No plano internacional, com ardente impacto, lembra ao mundo a contínua supremacia dos Estados Unidos. O presidente que governa sobre exércitos ocupando o Iraque, intensificando a violência no Afeganistão e bombardeando o Paquistão recebe a mais importante distinção do Ocidente por um trabalho em prol da humanidade – benevolência, no estilo do século XXI – e logo será celebrado no Oriente.

Gabriel García Márquez certa vez comentou, vendo os vencedores do prêmio, como Kissinger e Begin, que seria melhor chamá-lo por seu verdadeiro nome: Prêmio Nobel da Guerra. Poderíamos também pensar em um passado clássico. Com palavras que parecem ter sido escritas hoje para descrever as terras e os vilarejos destruídos do Iraque e do Afeganistão, o historiador romano Tácito comenta a hegemonia de sua cidade que então dominava o mundo: “A destruir, massacrar e usurpar dão o nome de império; onde criam um deserto, chamam- no de paz”.

* Trecho de uma conferência na USP promovida pela Boitempo Editorial, Clacso, Cenedic e Programa de pós-graduação em Sociologia da USP. O texto integral dessa palestra, em tradução de João Alexandre Peschanski e Rodrigo Nobile, será publicado no número 14 da revista Margem esquerda (Boitempo).