Miguel Bruno: Crise nos EUA e Financeirização no Brasil

11/10/2011 14:15

Crise nos EUA e financeirização no Brasil: compreender para superar

Artigo de Miguel Bruno

 

A ciência econômica tradicional rigorosamente não tem uma teoria das crises. A análise desses fenômenos periódicos em economias capitalistas é reduzida a uma abordagem das flutuações cíclicas, convencionalmente chamada de “business cycles theory”. A razão para isto decorre do que Bachelard, químico e filósofo da ciência, denominava por obstáculo epistemológico. Trata-se de práticas de pesquisa e de formas de pensamento cristalizadas pelo saber instituído, que se convertem em entraves no processo de conhecimento científico. Segundo o epistemólogo, “diante do real, aquilo que cremos saber com clareza ofusca o que deveríamos saber”. Para Bachelard, o conhecimento do real é uma luz que sempre projeta sombra em algum lugar. Ele nunca é imediato e pleno, as revelações do real são sempre recorrentes. O real nunca é o que poderíamos acreditar, mas sim o que deveríamos ter pensado.

O pressuposto de que mercados liberalizados seriam naturalmente eficientes constitui o primeiro obstáculo epistemológico da teoria econômica padrão. O segundo consiste na premissa de que comportamentos especulativos são benéficos, pois sua função econômica é a de atenuar as flutuações de preços devidas às mudanças na oferta e na demanda, estabilizando o sistema. Mas então como explicar o fato de a maioria das crises financeiras serem precedidas por um período de boom no mercado de crédito e de superespeculação? Como a teoria se fragiliza diante da observação do que ocorre com as economias reais, seus proponentes vão buscar as causas das crises fora da própria lógica mercantil. Milton Friedman argumentava que a causa da crise dos anos 30 do século passado residia numa política monetária equivocada do Fed, àquela época contracionista. Já a atual crise poderia ser “explicada” também pelos equívocos do mesmo Fed, mas desta vez com uma política monetária excessivamente frouxa, cujos efeitos tornaram-se incertos num ambiente de desregulamentação financeira. Portanto, como as crises surgem como a negação empírica do equilíbrio e da eficiência dos mercados, a estratégia “científica” da análise mainstream é atribuir suas causas a agentes supostamente externos (o Estado e suas políticas errôneas, hora gastando de menos, hora gastando demais) e a choques exógenos (preços do petróleo, catástrofes naturais, guerras, revoluções, etc.).

Mas da literatura econômica sobre crises, pode-se extrair vários ensinamentos úteis para compreendê-las e superá-las: 1) Os mercados são construções sociais complexas, cuja eficiência depende de arranjos institucionais específicos. Do contrário, os interesses privados destroem a coerência macroeconômica e a coesão social do conjunto do sistema, instaurando a crise como solução violenta dos desequilíbrios gestados e acumulados na fase de expansão; 2) Mercados financeiros são muito diferentes dos outros mercados, em razão das especificidades dos ativos transacionados, cuja liquidez depende também das características dos regimes monetários e cambiais; 3) Depressões são muito pouco prováveis em economias onde o Estado está inscrito no circuito da produção e da distribuição da renda nacional. O Estado inscrito caracteriza-se por duas inovações principais: a institucionalização do salário indireto e a combinação de gestão monetária com política econômica. No capitalismo liberal da primeira metade do século 20, o Estado era circunscrito. Uma das conseqüências da globalização (exceto para aqueles países que se engajaram em estratégias consistentes de desenvolvimento econômico) foi o retorno, ainda que parcial, desse tipo de Estado, que se baseia na hipótese de que os interesses dos mercados são sempre coincidentes com os interesses de toda a sociedade; 4) As grandes crises têm causas endógenas, não são necessários choques externos para que ocorram. Trata-se do chamado princípio do endometabolismo, segundo o qual o funcionamento da estrutura altera a própria estrutura. O simples fato das estruturas sócio-econômicas operarem no tempo e no espaço pode ser motivo suficiente para a sua transformação e crise. Este princípio permite compreender-se como um modelo econômico considerado bem-sucedido, como o dos EUA nos anos 90, deságua inicialmente em crises financeiras de baixa e média intensidade, para então culminar, via efeitos cumulativos, numa grande crise com impactos diretos sobre o sistema produtivo deste país e dos outros que o mimetizaram passivamente.

A crise de liquidez é apenas uma das formas de expressão de problemas estruturais mais profundos. Os EUA deslocaram plantas industriais importantes para o exterior e aprofundaram a flexibilidade e a precariedade de suas relações de emprego. A taxa média de lucro da economia americana está em queda desde 1998, apesar de o declínio tendencial da participação dos salários no produto nacional ter-se iniciado uma década antes. Como os ganhos de produtividade permaneciam muito acima do crescimento do salário médio real, a expansão do consumo interno passou a depender cada vez mais do efeito riqueza derivado da detenção de ativos financeiros, da forte expansão do crédito e do elevado endividamento familiar. Mas, como a taxa de acumulação de capital fixo produtivo despencou nos anos 1990, para cerca de 1/5 do valor médio de finais dos anos 1970, essa configuração terminou por desestabilizar o sistema econômico porque fragilizou os rendimentos do trabalho e, tornando-os altamente sensíveis à conjuntura, promoveu a inadimplência.

Essa é uma crise do regime de acumulação financeirizado dos EUA, mas que se converte em uma crise do capitalismo financeirizado em escala global. Apesar de suas especificidades, o Brasil tem vários pontos comuns com o caso americano. Como os EUA, praticou, no período pós-Real e pós-liberalização, uma excessiva concentração funcional da renda em favor dos lucros. Nessas condições, se o investimento produtivo não estiver crescendo suficientemente, a sustentabilidade da demanda efetiva é ameaçada e o sistema é empurrado para uma zona de instabilidade estrutural. Temos uma economia onde a financeirização baseia-se em derivativos e renda fixa que, juntos, respondem por mais de 50% de toda a receita operacional do sistema bancário-financeiro brasileiro, enquanto as receitas de operações de crédito não ultrapassam os 20%. Por isso a relação crédito /PIB está em 39%, uma das mais baixas entre os países emergentes. Se lembrarmos que esta economia já se caracteriza por níveis dramáticos de concentração da renda e da riqueza, os analistas que estão advogando cortes dos gastos públicos como medida anti-crise deveriam urgentemente livrar-se dos obstáculos epistemológicos da teoria que utilizam para melhor compreender as causas e os mecanismos de propagação da crise atual.

 

*Miguel A. P. Bruno, assessor de Projetos Especiais – Crescimento e Desenvolvimento do Ipea, professor adjunto do Departamento de Evolução Econômica da UERJ e do Mestrado em Estudos Populacionais e Pesquisas Sociais da ENCE/IBGE.

 

Fonte: https://christypato.blog.br/2008/11/28/miguel-bruno-crise-nos-eua-e-financeirizacao-no-brasil/