Luta pelos direitos do trabalho é hoje vital diante da crise cabal do capitalismo, entrevista com Ricardo Antunes

09/09/2011 16:40

A crise financeira global vem sendo invariavelmente ‘remediada’ pelas mesmas medidas ortodoxas e neoliberais que levaram ao colapso. O Correio da Cidadania entrevistou o sociólogo Ricardo Antunes, que analisou o momento de rebeliões vivido em diversos países e continentes e as suas respectivas singularidades.

 

Antunes parte de um olhar profundo em direção às engrenagens capitalistas atuais e seus reflexos no mundo do trabalho. Traça, a partir daí, um renovado quadro de interpretação para a atual “ebulição social”. Busca uma visão também retrospectiva, na medida em que se volta a analogias com o passado século XX, que foi palco de guerras, lutas sociais e posteriores transformações geopolíticas, com a reconfiguração das sociedades de todo o mundo.

 

A partir de vários estudos que, já há alguns anos, vêm dando conta de uma nova morfologia das lutas trabalhistas, Antunes não tem dúvidas de que está em andamento uma “crise estrutural da forma de dominação do capitalismo”. O que significará renovadas quedas de braço entre dois velhos antagonistas: capital e trabalho.

 

Diante deste cenário, o sociólogo alerta para a necessidade de se restaurarem as pautas do mundo do trabalho, cada vez mais precarizado nos quatro cantos do Globo. Redução da jornada de trabalho e um profundo questionamento a respeito das reais necessidades de produção são os carros-chefes dessa longa e renascente batalha, que no momento ainda carece de posicionamento político coeso das classes em fúria.

  

Correio da Cidadania: Como você encara a crise financeira que volta a mostrar a sua força, após a intensificação das dificuldades dos EUA e dos países europeus, especialmente os menos ricos, em lidar com suas explosivas dívidas públicas? Estamos no segundo ‘round’ da crise que explodiu em 2008?

Ricardo Antunes: Eu diria exatamente isso. Não é uma nova crise, mas outro momento de uma crise estrutural muito mais profunda, financeira, na medida em que atinge instituições financeiras, corporações fortes dos EUA, Inglaterra, Itália e tantos outros países como Espanha, Portugal, Grécia etc. É preciso entender que se trata de uma crise estrutural do capitalismo, com manifestações mais profundas. Ela está colocando em xeque a própria existência da humanidade, na medida em que os recursos utilizados para sua solução – seja pra salvar os bancos, a GM ou muitas outras empresas – são recursos que aumentam a dívida de tais países e recaem sobre a população trabalhadora, que em todos eles está sofrendo cortes – de salários, previdência, saúde -, configurando um cenário de arrocho monumental na Europa.

 

É uma crise da própria estrutura de dominação do capital. Embora não haja alternativa a ela, é uma crise de tal profundidade que não se vislumbra qualquer prognóstico, com o mínimo de cuidado, de recuperação, mas de longo período crítico. Porque, na verdade, esse quadro sinaliza um sistema de metabolismo social profundamente destrutivo, onde a destruição ambiental, a destruição em escala monumental de força de trabalho, o desemprego e precarização estruturais são sintomas. E o receituário utilizado pelos governos pra sair da crise não vai no sentido de sequer minimamente mudar o padrão de dominação capitalista, pelo contrário, acentua as medidas destrutivas, ou seja, mais financiamento ao capital privado, mais penalização sobre o trabalho, mais recessão. No entanto, ninguém pode imaginar que, aumentando a recessão na Grécia, Espanha, Itália, Inglaterra, vá se sair dessa crise. O capitalismo está num buraco muito, muito, profundo.

 

Outro ponto vital a ser destacado, que também vem de 2007, é que a crise tem seu epicentro maior nos países capitalistas avançados. E na medida em que toca o coração da economia capitalista, o desastre é muito maior, pois a paralisia de agora não é do leste europeu ou do chamado terceiro mundo, mas é uma paralisia e crise que devastam parcelas importantes da economia dos países capitalistas avançados.

 

Portanto, é um cenário brutal para a classe trabalhadora, para os assalariados e, em qualquer análise séria, não se pode deixar de perceber a profundidade da depressão. O Mészàros tem dito há vários anos que o sistema capitalista entrou num longo ciclo depressivo, no qual o epicentro da crise pode mudar, mas num quadro tendencial crítico, e que não vivenciaríamos mais aqueles períodos de expansão e crise, as chamadas fases cíclicas, pois adentramos numa linha declinante, onde um país ou outro ora sobe, ora decai, configurando uma crise muito mais que financeira – ainda que o seja fortemente. Tal crise não é só do capital fictício, parte do capital financeiro, mas atinge, pela fusão entre bancos e atividades industriais, a própria estrutura da acumulação capitalista.

 

Correio da Cidadania: Em meio a essa crise estrutural, as revoltas populares estão também se espalhando mundo afora. As manifestações têm ocorrido em escala crescente nos citados países capitalistas avançados, além da África, Oriente Médio, Chile, China... Há relação direta entre estas revoltas e a crise estrutural capitalista?

 

Ricardo Antunes: Nas ciências sociais não podemos cravar termos como ‘relação direta’, para evitar certa mecanicidade que fizesse as pessoas raciocinarem: “toda crise econômica gera crise social e política”. O que podemos dizer é que as explosões que vemos - desde 2005 em Paris, chegando a 2010 na luta dos estudantes da mesma cidade, passando por essa leva de rebeliões, que vão dos países árabes no começo do ano, os portugueses em março, os indignados na Espanha semanas depois; antes disso, as explosões em profundidade, com conflagrações e rebeliões abertas, na Grécia, e mais recentemente na Inglaterra -, todas elas, têm múltiplos indícios e singularidades. Mas é evidente que marcam o momento em que a população trabalhadora, pobre, os imigrantes, os jovens, os não brancos, desempregados, que não participam da ciranda financeira, estão se rebelando.

 

Apesar de suas singularidades, essas revoltas têm traços de gênero, geração, de trabalho, de não-trabalho, são contra concepções xenofóbicas e racistas. Todas se manifestam também como descontentamento à ordem social. No caso grego, isto é claro, a sublevação foi contra o governo e suas medidas, que, seguindo o receituário destrutivo do FMI, impuseram ao país uma pragmática que só pode levar a uma destruição ainda maior. Os cortes de salários, empregos, a perda de equipamentos coletivos e públicos levaram à explosão da revolta. Fica evidente que se trata da população trabalhadora e estudantil se rebelando contra a receita capitalista e sua incidência segundo parâmetros do FMI. E a rebelião grega vem desde o ano passado, inclusive com levantes mais aguçados e paralisações.

 

Correio da Cidadania: Ainda que haja um clamor conjunto por democracias mais verdadeiras em todos estes países submetidos à lógica de acumulação capitalista e à ciranda financeira, muitas análises têm sido feitas quanto às singularidades de cada uma destas revoltas que estão sacudindo o planeta, especificamente no que diz respeito às suas origens, ao seu grau de organicidade e consciência política e ao seu enraizamento social. Você  considera relevante ressaltar estas singularidades?

 

Ricardo Antunes: Se olharmos as revoltas árabes, começando por Egito e Tunísia, que aconteceram primeiro, é claro que elas têm singularidades muito próprias. Todas elas são contrárias às ditaduras das famílias que saqueiam esses povos há décadas. Na Tunísia, essa revolução democrática teve forte apoio dos sindicatos, que conseguiu canalizar as lutas. No Cairo, a praça Tahrir se tornava o espaço por excelência de majestosas manifestações de massa, que diminuíram, mas não cessaram após a queda de Mubarak. Como se sabe, no Egito a resolução da crise veio pelo alto, feita pelo núcleo duro das forças armadas, pagas e sustentadas pelo governo estadunidense. Por isso ainda ocorrem muitas manifestações de massa no país, porque a revolução democrática se estancou nas forças armadas, sob influência dos EUA. Mas podemos dizer que nesses países árabes há uma combinação explosiva entre miserabilidade, pauperismo e ditadura.

 

Na Europa, o quadro é diferente. A democracia formal está sendo questionada pelos levantes populares dos jovens, por serem democracias formais cada vez mais dos ricos, em que os parlamentos estão a cada dia mais dissociados das ruas e lutas populares, completamente corroídos e dominados pelas corporações, mercado e sistema financeiro, de modo que os governos são fantoches desse sistema financeiro internacional e suas corporações. E como detonadores principais do movimento, temos a combinação explosiva de precarização estrutural do trabalho – venho dizendo desde 2008 que adentramos em nova era de precarização estrutural do trabalho em escala global -, cujo traço mais visível é a demolição, erosão, até dos empregos dos imigrantes. Eles são tratados nos países do norte, que os recebeu há 20, 30 anos pra fazer o trabalho sujo, como concorrentes, pois agora os ingleses, espanhóis, portugueses, franceses, estão querendo o trabalho sujo. E assim se amplia a onda xenofóbica, começando um processo de repressão e expulsão dos imigrantes.

 

Nesse sentido, podemos citar Portugal, março de 2011: o grande movimento da “geração à rasca” é de uma geração encalacrada, enrascada, sem perspectiva; imigrou, mesclou-se com o jovem português e sabe que o seu futuro imediato, estudando ou não, na melhor das hipóteses, é o emprego precário, na mais plausível, o desemprego. Ele olha para o pai e a mãe, estudados, e vê todos precarizados. E quando lá estive pude presenciar duas manifestações importantes: uma da chamada geração à rasca, convocada pelos imigrantes, com mais de 200 mil pessoas em Lisboa, além de outras cidades; e poucas semanas depois, uma das centrais sindicais, que protestaram contra a precarização dos trabalhadores(as) que ainda têm alguma estabilidade. Ou seja, as duas pontas da “Classe-do-trabalho”.

 

Já na Espanha, a partir de 15 maio, começaram rebeliões em Madrid, Barcelona, de norte a sul. Na Espanha de hoje, o jovem de 18 a 23 anos tem índice de desemprego oficial de 46%. E lembremos ao leitor que, há 6, 8, 10 anos, se citava o país como novo colosso europeu, o “inchamento” do rabo europeu, com o engordamento da cauda ibérica. Resultado: o jovem espanhol sabe que, se estudar, é um candidato forte ao desemprego ou, na melhor hipótese, a um emprego precário, e ainda vê seus pais perdendo a saúde, a previdência e os direitos coletivos que tinham no passado. Logo, rebela-se contra uma sociedade capitalista destrutiva que penaliza os jovens em fase de trabalho – com 18, 20, 22 anos, quando termina seu ciclo de estudos. Por quê? Porque as políticas recessivas são impostas pelos governos ventríloquos do sistema financeiro internacional dominante.

 

Dessa forma, é claro que há um traço anticapitalista nessas manifestações. Muitas pessoas dizem que são movimentos sem projeto. Ora, o que a contra-revolução capitalista, de amplitude global, fez nas últimas quatro décadas? Tentar destruir a todo custo o projeto político alternativo de esquerda. Isso foi o neoliberalismo e sua bárbara prática.

 

Assim, é evidente que não estamos em época de grandes projetos alternativos; estamos presenciando a explosão das lutas sociais, dadas por essa nova polissemia do trabalho, das lutas sociais, pela nova morfologia dos organismos representantes desses movimentos sociais. Por isso, na relativa travagem ou limitação de muitos partidos e sindicatos, os jovens foram às ruas, utilizando-se de vários instrumentos, entre eles a internet, uma forma explosiva de comunicação. Você pode ter um potencial de mobilização que no passado os sindicatos e partidos levavam meses para promover. E, na Espanha, os indignados têm uma certeza: não conseguem estudar, e, se o fazem, não têm trabalho. É uma geração rebelde pela negação.

 

Portanto, trata-se manifestações de muita singularidade. Os movimentos que defendem os direitos da sexualidade livre repudiaram a presença do papa na Espanha por ele ser uma expressão grotesca de uma concepção que recusa o direito das mulheres ao aborto, veda o sexo livre aos homens e mulheres, de acordo com a vontade de cada um. Enquanto a igreja, com aquela carapaça grotescamente medieval – que na Espanha é das mais duras, conservadoras, bárbaras, nefastas –, sofreu o repúdio também na figura do papa, que precisou mobilizar a sociedade conservadora, conseguindo reavivar gerações ligadas ao franquismo, que não estão mortas.

 

Correio da Cidadania: E o que dizer da tendência de revoltas na América Latina?

 

Ricardo Antunes: No caso da América Latina, podemos ir ao Chile. Estamos vivendo um majestoso movimento estudantil, de massa, com professores e pais de alunos. Há anos atrás, recebi um convite para fazer uma palestra em Santiago. Quando lá cheguei, lembrando do governo de Allende e a primeira e bela experiência de um governo de inspiração não capitalista, ainda que num processo mais reformista que revolucionário, imaginava que ainda tivessem preservado algo de suas universidades públicas. Perguntei se a universidade em questão era da província ou federal e, qual não foi minha surpresa, os professores me disseram que era privada. Fiquei pasmo de constatar que, no Chile, o ensino público superior tinha sido destruído e, quando a universidade é pública, cobra tão caro quanto as privadas.

 

Hoje, o que acontece é uma família remediada, pobre, ter que vender uma casa comprada em 30 anos pra subsidiar o estudo dos filhos. É uma tragédia. E depois do fim do Pinochet, a chamada Concertação, a esquerda entre aspas, a esquerda que a direita gosta, foi incapaz de tocar na situação. E temos de olhar para o Chile porque o futuro da universidade pública latino-americana passa por essa luta enorme dos estudantes de ensino médio e superior, pais e professores chilenos, comprometidos com o resgate de uma escola pública, fora dos marcos do privatismo.

 

Marx já nos alertava que não havia diferença entre um empresário que monta uma faculdade e outro que monta uma fábrica de sapato. Aliás, na Alemanha, o fabricante de salsicha foi muito mais competente que o fabricante de diplomas privados. No Chile, temos uma experiência rica de luta e ocupação de praças públicas, uma repressão violenta de um governo de direita, lembrando que Bachelet também reprimiu, com a diferença de que o movimento atingiu uma escalada excepcional agora.

 

E esses movimentos mostram a transversalidade nas questões de classe. Não há nenhum levante no qual os ricos estejam protestando. Quando os brancos estão presentes, são os brancos pobres, com os negros, imigrantes, asiáticos, latinos... A primeira manifestação completa do dia 1º de maio nos EUA foi feita pelos imigrantes. Isso porque, por triste curiosidade, o país que gerou o 1º de maio como dia de luta dos trabalhadores não celebra a data em 1º de maio. E alguns anos atrás, os chamados chicanos, os imigrantes, pararam as ruas de várias capitais para dizer “nós produzimos para os EUA, e não queremos ser tratados como cidadãos de terceira, quarta, categoria”.

 

Correio da Cidadania: A Inglaterra tem sido palco de um dos mais intensos movimentos na Europa nesse cenário de protestos, não?

 

Ricardo Antunes: Nesse cenário, chegamos à Inglaterra. Veja como é sintomático. No primeiro dia de protestos, a mídia tratou as pessoas como manifestantes. A partir do terceiro dia, a mídia mundial começou a chamar os atos de vandalismo. É impressionante. E ainda dizendo que, da direita à esquerda, todos condenam as ações ocorridas na Inglaterra. Isso não é verdade. Alguém pode considerar o New Labour como esquerda na Inglaterra? É grotesco! Não é a esquerda da Inglaterra e é tão ‘esquerda’ quanto os governos Lula e Dilma. Lá é até pior, porque o New Labour não tem mais nada a ver com o velho Labour Party, que era trabalhista e reformista autêntico. Esse atual, do Tony (ou “Tory”, conservador, de alma) Blair, é um tipo de DEM inglês, partido dos grandes capitais da Inglaterra, tal como a oposição de direita daqui ou os liberais.

 

O que levou a essa explosão na Inglaterra? Em primeiro lugar, o assassinato de um taxista negro por uma polícia branca, asséptica e perversa. Podemos citar a morte do Jean Charles para lembrar a perversidade dessa polícia, que o matou como se fosse um militante da Al-Qaeda, assassinado brutalmente e sem defesa. É uma polícia virulenta e, como disse o Tarik Ali recentemente, seria importante contabilizar quantos negros morreram após serem presos, no caminho do carro da polícia até a delegacia. Há uma belíssima gravação, colocada no ar pela TV Cultura, de uma entrevista da BBC londrina, na qual se queria induzir um senhor a se posicionar contra as manifestações. Ele respondeu: “Mas o meu filho é negro! Ele já foi parado pela polícia pra explicar que não tinha feito nada. Temo pelo filho e pelo meu neto recém-nascido, que vai passar pelo mesmo”. Depois, a repórter, muito idiota, como manda o tom da mídia internacional dominante, perguntava: “Mas os vândalos...”. 

 

Correio da Cidadania: Na Globonews, brasileira, houve tentativa idêntica de ‘debate’, desses que partem das ‘conclusões a priori’, com o sociólogo Silvio Caccia Bava.

 

Ricardo Antunes: Exatamente. O que a repórter da mídia inglesa, a exemplo de outras, não entende é que se vive uma insurreição popular na Inglaterra. É um levante que começa com o assassinato de um negro, em um bairro periférico de Londres, não por acaso onde os negros e imigrantes são maioria, e a partir disso se expande. E aí dizem, espantados, “mas os jovens vão roubar coisas das lojas, de grife!”. Mas queriam que fossem roubar o que? Não vivemos na sociedade que cultua as marcas, as grifes? Esse culto ocorre diuturnamente, na TV, no rádio, na propaganda, em mensagens subliminares, nos valores culturais, na divisão entre quem tem o carro ou a roupa de tal marca e quem não tem, determinando se a pessoa é ou não “bem sucedida”... Numa explosão dessa, é natural que os pobres, especialmente jovens, que também são influenciados por tais valores, queiram tirar sua casquinha daquilo que eles são diuturnamente instigados a ter e que a vida real os impossibilita de realizar.

 

Correio da Cidadania: Além do mais, não parece absurdo imaginar que parte deles visou tais lojas e marcas exatamente para externar sua contrariedade a esse modelo de sociedade que os faz ver tudo apenas pela vitrine. Ou seja, aquilo que já se viu em bancos e Mcdonalds e nem é tão inédito.

 

Ricardo Antunes: É verdade, é um bom ponto de vista. Tal como já se atacaram outros símbolos. A sociedade do século 20 pode ser caracterizada como a sociedade do automóvel. Há poucos anos, vimos um incêndio de automóveis que chegou à casa de 30 mil veículos na França. Agora, vemos carros sofisticados sendo queimados na Alemanha. Por quê? Porque são símbolos de riqueza, que criam essa sensação em relação aos pobres, que não têm saúde, não têm mais “welfare state”, se precisarem de uma cirurgia (o que constatei ao morar um ano na Inglaterra) têm de esperar até um ano, pois o sistema de saúde pública não funciona como antes...

 

Ao mesmo tempo em que os ricos... Murdoch, o executivo do News of the World, jornal que fechou após os escândalos das escutas, também era assessor do Cameron! A população se dá conta. O assessor de um magnata corrupto da imprensa está no governo, está mandando! Uma hora tem uma explosão. E vem gente dizer que a esquerda é contra. A esquerda não é nada contra essas revoltas. Ademais, vão falar que o Guardian é jornal de esquerda? Espera um pouco, por favor! Há jornais mais e menos conservadores, mas tudo dentro da ordem. Se quisermos saber da esquerda inglesa, temos de olhar as publicações dos movimentos populares, ambientalistas, o Socialist Workers Party, um partido pequeno, mas de esquerda, dos pequenos núcleos de trabalhadores, que repudiam a tragédia que é esse governo branco e nada brando, elitista, perverso, excludente, e que critica as ditaduras do Oriente Médio. Mas o que fez o governo do branco Cameron? Repressão nas ruas, judiciário instrumentalizado para punir até quem mandou uma mensagem por internet que talvez nem fosse séria...

 

E por que se destaca o Mcdonalds? Porque é o exemplo da sociedade “fast-food”. Tal como os carros no século 20 foram símbolos da sociedade tayloriana-fordista, o Mcdonalds é exemplo típico da sociedade do “fast-food”, do supérfluo, do involucral, do fenomênico, combinando péssima alimentação, péssimo cuidado em saúde coletiva etc. etc.

 

Correio da Cidadania: As revoltas continuam tendo caráter classista, porém, no contexto dessa nova morfologia do mundo do trabalho?

 

Ricardo Antunes: Claro. E o contexto de fundo é uma crise estrutural, com precarização também estrutural do trabalho assalariado, em escala vista somente em 1929, 1930, 1931, 1932, no mesmo contexto da crise de 1929.

 

Ou seja, há uma nova morfologia das lutas sociais, que cria também uma nova morfologia nos organismos de representação de tais lutas sociais. E novas formas de manifestação. É tão verdade que as greves ocorrem intensamente em vários países do mundo – a China é hoje o país com as mais altas taxas de greve do mundo –, como também há várias outras formas de lutas, das quais as rebeliões que vemos são expressão.

 

Outra: elas sinalizam a transversalidade, que mescla classes, de maneira dominante. Repito, não há brancos ricos em nenhum desses levantes. Classe média sim, porque a classe média européia, pra não falar da árabe, está empobrecida e sem perspectiva futura. Mas não há ricos brancos saqueando nem quebrando nada. Estão em seus bairros fechados, com sua segurança privada.

 

É uma transversalidade que mescla a dimensão de classe com a de gênero. Por exemplo, quando os dois jovens negros parisienses foram mortos eletrocutados ao fugir da polícia, houve aquela enorme rebelião, formada por jovens da periferia, sem documentos, predominantemente homens. Nas manifestações de hoje, como na Espanha, a mescla entre os dois sexos é enorme. No Chile, também são estudantes homens e mulheres lutando por algo melhor.

 

Dessa forma, há uma transversalidade que aglutina classe, gênero, geração, etnia, sexualidade, entre tantos elementos clivados. E todos eles expressando mais ou menos explicitamente toda a lógica destrutiva da sociedade atual. Em maior ou menor dimensão, exibem coágulos, mesmo que pontilhados, de uma intuição anticapitalista. Em outros setores é mais que isso. Nas manifestações na França contra a reforma da previdência, chegaram a colocar 3 milhões de pessoas nas ruas das grandes cidades – com muitos jovens, estudantes, militantes da CGT, o PC francês, CSCT, o Novo Partido Anticapitalista.

 

Dependendo da realidade, é maior ou menor a presença de setores líderes nas mobilizações. Mas o tom dominante é a alta dose de espontaneidade e o descontentamento visceral com a ordem estrutural.

 

Correio da Cidadania: Você poderia falar um pouco mais especificamente da China nesse contexto?

 

Ricardo Antunes: Talvez o único quadro “diferente” seja o chinês. Imagine que a China, antes da crise de 2007-08, vinha crescendo a 12% ao ano. Ela tem quase 1,5 bilhão de habitantes. Hoje a população é pouco superior a 1,3 bilhão. Sua força de trabalho ativa logo chegará à casa de um bilhão! Quando o país caiu de 12% para 7% de crescimento, foi uma hecatombe social, pois é isso que significa a diferença de 5% a menos de crescimento na China. Lembro que em fevereiro de 2009 a imprensa chinesa falava em 26 milhões de trabalhadores rurais que migraram para as cidades e perderam seus empregos. O que eles vão fazer, voltar pra comuna rural? Lá não tem mais lugar pra ele. Além disso, o trabalhador jovem, quando migra do campo para a cidade, se ressociabiliza. Ele passa a viver as vantagens e desvantagens das cidades, sua urbe, os valores urbanos, a internet, os cafés, os bares, as festas populares. Como vão dizer, 10 anos depois, pra ele voltar pra comuna rural? Não volta. Até porque não tem o que fazer lá, pois aquele lugar não tem mais nada a ver com a sua nova subjetividade, florescida nas cidades, no que Mike Davis chama de ‘Planeta Favela’. Ele prefere viver no Planeta Favela a voltar à calmaria rural.

 

Por tudo isso, a China tem hoje as mais altas taxas de greve do mundo. O país sequer tinha uma legislação social protetora do trabalho. Quando o PC chinês abriu o país para a exploração do capital privado transnacional, aí que vieram mesmo pra esfolar a pele, o couro e a alma do trabalhador chinês. Depois, imagine uma dessas transnacionais escalpelando o trabalhador chinês, chegando e falando: “Olhem, vou fechar a fábrica, porque a crise me obriga”. As rebeliões aumentaram. Na época, a internet até mostrou uma assembléia de trabalhadores chineses em que, no desespero, um operário decapitou o gestor que anunciara o fechamento da fábrica. Na França, há dois, três anos, tivemos as chamadas greves selvagens, em que os sindicatos fechavam as fábricas com os gestores dentro e exigiam novas negociações.

 

Há um cenário muito heterogêneo de lutas. E ainda há as greves na Coréia, Japão, Filipinas, países africanos, ou seja, estamos diante de um cenário muito variado. Mas é fundamental perceber como o Habermas estava equivocado, quando em 1980 concluiu e publicou seu livro Teoria da Ação Comunicativa, afirmando que o proletariado europeu tinha se integrado e vivíamos uma era de pacificação das lutas sociais. Eu queria ver o Habermas agora. Alguém pode imaginar que a Europa vive uma “era de pacificação das lutas sociais”? O termômetro social aumentou, isso sim.

 

Correio da Cidadania: Com a tônica no longo prazo, acredita que a atual crise mundial, circundada por maciças revoltas populares, possa ensejar perspectivas de surgimento de medidas e movimentos organizados anticapitalistas? Em outras palavras, sementes de uma possível sociedade socialista podem estar em gestação? De que forma?

 

Ricardo Antunes: Eu venho dizendo, há muito tempo, que o século 21 tem uma semelhança com o século 20. No início do século passado, as placas tectônicas se mexeram – refiro-me às movimentações e embates sociais, não geológicas.

 

No século 20, tivemos a revolução russa, húngara, levante na Itália; pelo campo da extrema-direita, o fascismo italiano, o nazismo alemão. Ou seja, as placas em convulsão; revolução e contra-revolução. No século 21, cuja primeira década já se foi, as placas tectônicas se mexeram. Mas com uma nova morfologia societal, com um novo desenho de lutas sociais, combinando lutas novas com antigas, mecanismos usados pelo movimento operário no século 20 com revoltas de novo desenho social.

 

Na América Latina, por exemplo, a Bolívia não é mais a mesma coisa. Os indígenas e camponeses bolivianos vivem processo de auto-organização, que vem sendo conquistado nos últimos anos. O movimento popular na Venezuela também avança no sentido de se reconhecer como agente autônomo, que tem direitos e deve lutar por eles. Na Argentina temos as chamadas ‘fábricas recuperadas’, e já existem mais de 200 dessas no país. Fui conhecer 4 ou 5 delas e vi como são experiências importantes. Na mesma Argentina, tivemos a crise de 2001 e dos anos seguintes, com uma explosão dos movimentos piqueteros, cortando as estradas. E se você faz isso nas estradas que levam a Buenos Aires, não há circulação nem de mercadorias nem de pessoas. É evidente que o movimento piquetero tem traço de oposição à circulação de mercadorias; conseqüentemente, traços anticapitalistas.

 

É muito importante compreendermos esse desenho todo, pois ele mostra que adentramos numa era de muita ebulição social. Anote aí, estamos só no começo. Afirmo isso desde que escrevi a primeira edição de “Adeus ao Trabalho”, de 1995, reeditado em 99: “adentramos em uma nova era de conflagração social, de tal modo que o trabalho social concebido no sentido amplo – mesmo incluindo os desempregados, precarizados e imigrantes – se contrapõe às forças do capital.

 

O capitalismo se mundializou e, nesse processo, se mundializaram as lutas sociais.

 

Correio da Cidadania: Até mesmo economistas que se mantêm no status quo da ordem capitalista, mas com uma visão mais progressista, dentre eles Paul Krugman, o Nobel da Paz de 2001, Joseph Stiglitz, e o guru da crise de 2008, Nouriel Roubini, descrevem um cenário catastrófico a decorrer das medidas anti-crise que vêm sendo forçadas pelo mercado nos países ricos. Cortes orçamentários tão somente reforçarão uma recessão global, quando a origem da crise passaria justamente pela percepção da falta de perspectivas de crescimento nos países ricos, especialmente nos EUA. Neste sentido, estes economistas deixam antever que existem medidas possíveis e urgentes que deveriam e poderiam ser tomadas diante da dramática conjuntura atual, amortecendo, em um primeiro momento, os impactos mais deletérios. O que teria a dizer sobre este enfoque?

 

Ricardo Antunes: Claro que é possível tomar tais medidas. Se vivemos uma era de explosão e novos levantes sociais, isso é muito positivo. Mas ainda estamos aquém de projetos de longo fôlego, que possam, digamos assim, colocar na mesa outro projeto societal com força orgânica.

 

Por exemplo, os movimentos a que me referi têm uma atuação pujante e depois refluem. Assim, uma pergunta importante é: como avançar na organicidade, na aproximação e confluência de tantos movimentos, de modo que não sejam presas da sociedade dita democrática, mas de fato ditatorial, e das sociedades dos partidos únicos, como são no fundo as sociedades estadunidense e européia? Existem os liberais, os conservadores, os democratas e não tem mais conversa. Quadro, por sinal, muito semelhante ao brasileiro, com o PT e seu arco de forças que vai até a extrema-direita, setores da esquerda reduzidos, o PSDB e o ex-PFL (já que chamar de Democratas é provocação aos democratas) e a centro-direita. Em suma, um setor vai da esquerda à extrema-direita e o outro vai do centro à extrema-direita, de modo que os projetos ficam muito assemelhados.

 

Porém, que alternativa se pode imaginar? É claro que uma alternativa importante aos movimentos de agora é aproveitar esse processo. Quando digo que adentramos em nova era de pracarização estrutural, em escala global, quero expressar que os capitais e suas corporações estão anunciando o seguinte: “daqui pra frente, os direitos do trabalho vão ainda mais para o ralo”.

 

Portanto, trata-se disso: impedir a destruição dos direitos do trabalho. Seja na Argentina, no Brasil, no México, onde, por exemplo, há um movimento de 40 mil eletricitários que lutam há mais de um ano porque a empresa foi privatizada e eles perderam tudo. A empresa é privatizada e o trabalhador perde tudo, elementar. Estive no México três vezes no último ano e vi movimentos de trabalhadores de várias localidades do país na praça do Zócalo, na Cidade do México, denunciando tudo isso, lutando para impedir que seus empregos desapareçam. Assim, essas lutas pelos direitos do trabalho são vitais.

 

Segundo ponto: a luta pela redução da jornada de trabalho em escala global também é vital. Porque, ao se reduzir a jornada, juntam-se as duas pontas que compõem a classe trabalhadora: os que estão empregados e os que estão desempregados. Reduzindo-se a jornada dos empregados, inclui-se uma parcela importante de desempregados e aumenta-se o tempo de vida fora do trabalho. É uma bandeira fundamental. Hoje, poderíamos trabalhar duas, três horas por dia, três ou quatro dias por semana, se a produção não fosse decidida e voltada também para a acumulação destrutiva do capital. Poderíamos trabalhar muito menos horas, todos teriam uma jornada pequena e um tempo fora do trabalho que poderia ser efetivamente livre se houvesse rompimento com as amarras do capital e seu mercado.

 

E ao lutar pela redução da jornada de trabalho, você começa a se perguntar: “quem controla meu tempo de vida, no trabalho e fora dele?”. Depois: “produzir o que e para quem?”. Quando os movimentos populares, sociais e de trabalhadores começaram a se fazer essas duas perguntas puseram o dedo na ferida.

 

Claro que governos que, mais ou menos timidamente, ensaiam medidas anti-neoliberais devem ser incentivados, mesmo que tais governos estejam longe de significar algo substancialmente progressista. No entanto, como a maioria esmagadora dos governos pratica a pragmática neoliberal, a força que pode realmente erigir barreiras para impedir uma erosão maior dos direitos sociais vem dos movimentos oriundos da classe trabalhadora ou sociais. Como o MST, os movimentos contra a privatização da água na Argentina, Uruguai, Bolívia, contra, por exemplo, as siderúrgicas e mineradoras que devastam o norte da Argentina, em Mendoza, com essas ‘Vales do Rio Perdido’ que saqueiam mundo afora, tirando populações de seus habitats, empurrando-as para longe pra abrir buracos na terra, extrair minérios (commodities) e vender no mercado internacional, enriquecendo brutalmente grupos restritos, antros de bilionários que saqueiam povos e países de dada região por interesses estritamente privados e corporativos.

 

Essas são bandeiras importantes. Em alguns casos, as lutas estão mais avançadas. Em outros, em um patamar ainda inferior. O Brasil, nos anos 80, já foi linha de frente em lutas sociais; agora está na retaguarda. Enfrentar um governo como o de Lula não foi fácil, porque, para muitos movimentos populares, o Lula ainda é “alguém como nós”, mesmo que já tenha mudado de lado há muito tempo. O Lula hoje escolhe onde faz palestra por 400 mil reais, cobra em dólar e ainda deixa o FHC furibundo porque o seu cachê é três vezes maior! Esse é o cenário.

 

E tivemos outros movimentos, como o dos zapatistas, no México, em 1994, depois a Comuna de Oaxaca, ainda que hoje o país viva uma situação mais difícil. Em compensação, temos avanços no Equador, Bolívia, Venezuela e Argentina. Digo avanços das lutas populares, dos movimentos concretos. Em vários países da Ásia também, onde, por exemplo, há uma organização importante dos trabalhadores na Coréia do Sul. Não há um dia em que estudantes ou trabalhadores coreanos não infernizam o patronato e a polícia, porque eles reivindicam e são vigorosos em sua luta.

 

Esse é o cenário que, como venho dizendo, representa o aumento da temperatura social. Estamos perante um traço do capitalismo que temos de viver, analisar e compreender.

 

Correio da Cidadania: Pra não deixar de fora o Brasil, vemos que, afora o vai e vem das Bolsas, interlocutores oficiais, mídia comercial, ambos reforçados pela percepção popular média, transmitem a noção de sermos uma ilha de efervescência com alta dose de imunidade, à espera de sediar dois grandes eventos globais! Como está e como deverá caminhar, de fato, nosso país nesta conjuntura?

 

Ricardo Antunes: É, o Brasil será o escape para toda essa crise, sendo um ótimo espaço para abrir caminho à continuidade da expansão e acumulação capitalista, nos marcos que temos acompanhado e comentamos aqui.

 

Mas indo ao ponto, por que o Brasil ‘cresceu’ nesses últimos anos? Não foi o Brasil que cresceu, foram os BRICs, ou seja, a China, Índia, Rússia, África do Sul, e vários países latinos como Venezuela, Bolívia, Argentina, entre outros.

 

Como dito, essa é uma crise do norte. A partir de 2008, com a retração da economia, o governo brasileiro tomou medidas de aceleração do mercado interno e desoneração de setores produtivos. Isso criou uma acumulação no mercado interno, que foi a nossa grande diferença em relação à economia global. Entretanto, a devastação ainda será grande na periferia. Tanto que já podemos notar que os governos têm discursos prontos para medidas impopulares, de contenção. É óbvio isso.

 

Como já discutimos em muitas ocasiões, os governos FHC, Lula e Dilma foram pró-desenvolvimentistas, não tocaram em nenhum dos pilares da tragédia social brasileira. A economia fica de joelhos para o agronegócio, as corporações demitem no primeiro espirro de crise, a desindustrialização é enorme.

 

E quando vier a crise, não será mais Lula no poder, mas Dilma, que, apesar do capital político que herdou, não tem nenhum lastro social.

 

Valéria Nader, economista, é editora do Correio da Cidadania; Gabriel Brito é jornalista.