JOSÉ PAULO NETTO – SEMINÁRIO ESTRATÉGIA E TÁTICA DA REVOLUÇÃO BRASILEIRA

26/05/2010 01:23

SEMINÁRIO ESTRATÉGIA E TÁTICA DA REVOLUÇÃO BRASILEIRA: PALESTRA DE JOSÉ PAULO NETTO

 

Boa noite a todos os membros da Mesa e ao plenário.

Eu deveria começar com aquele agradecimento formal de sempre – muito obrigado por terem lembrado meu nome, por eu estar aqui, por achar que a discussão é importante etc. Mas deixarei de lado essa formalidade para conversar com vocês como um camarada que se encontra com outros camaradas.

Contudo, devo dizer-lhes que estou muito emocionado com o XIV Congresso do PCB. Eu, que fui militante do velho PCB, ainda não estou filiado ao novo PCB, mas tenho acompanhado a sua evolução nos últimos 6, 7 anos. Estou solidário com os companheiros e, sobre este material que comentaremos, penso que ele marca uma inflexão, um avanço do PCB na intenção clara de construir um Partido revolucionário que reivindica o marxismo, incorporando inclusive a tradição leninista. E é por isto que estou muito honrado em condividir esta Mesa com os companheiros que dela participam e, pessoalmente, muito feliz e, sobretudo, muito comovido. É mesmo uma emoção ver crescer, juntamente com outros partidos da esquerda brasileira (penso no P-Sol, no PSTU), o PCB.

Eu, que, criado no velho PCB, fui um dos últimos a apagar a sua luz, a luz de um PCB já em crise terminal e moribundo, tenho, portanto, todas as razões para sentir-me comovido e emocionado. Gostaria e gostarei que, de forma afirmativa, o próximo Congresso assinale um ponto importante na trajetória do Partido que já deu muito, tem muito a dar e certamente estará no centro, sonho eu, do cenário coletivo e extremamente plural da revolução brasileira – porque, já o sabemos, a revolução brasileira não é monopólio de nenhum partido, de nenhum grupo, mas será certamente a confluência de esforços de milhões e milhões de brasileiros organizados. Neste sentido, estou apostando muito neste Congresso do PCB e nos seus desdobramentos.

Passemos, agora, à razão deste debate: as “Teses” apresentadas à discussão, pensando especialmente na estratégia e na tática. Começo com duas observações preliminares. A primeira é que, no que toca à tática, nunca fui muito competente – nunca acertei neste domínio e, para evitar novos erros, quero falar pouco sobre ele. Vou me centrar, pois, na concepção estratégica que está exposta nas “Teses”. A segunda observação diz respeito ao fato de que, mesmo para pensar somente a questão da estratégia, é preciso considerar o conjunto, o todo das “Teses”. Não tem sentido uma apreciação da estratégia sem uma avaliação, mesmo que sumária, do documento inteiro.

Devo dizer que o conjunto do documento me impressionou muito bem. Trata-se de documento estruturado e articulado, que dispõe de um eixo claro e aponta com nitidez para a intervenção política transformadora.

Dois aspectos, no conjunto do documento, me chamaram positivamente a atenção. Primeiro: o documento não apresenta nenhuma pretensão hegemonista, vale dizer: nele não tem lugar, aprioristicamente, a idéia de que a revolução brasileira depende do monopólio dirigente de um partido, qualquer que seja ele. Não tem pertinência, nos dias atuais, uma noção deste tipo. Por isto mesmo, pareceu-me extremamente importante o reconhecimento de outras forças, outras correntes, no processo da revolução brasileira – inclusive de um campo comunista não organizado, de comunistas que estão perdidos por aí nas esquinas da vida e que precisam ser incorporados na luta mediante processos organizativos. Creio que há que salientar, com ênfase, este aspecto.

Segundo: o documento revela um saudável esforço para assimilar uma massa crítica, um acervo de conhecimentos muito amplo, envolvendo até mesmo concepções teóricas que recentemente eram vistas por setores do movimento comunista com muita suspeita. Penso que o documento, do ponto de vista teórico, é muito reflexivo, muito aberto. Nada disto significa que o documento não tenha problemas; mas se trata de “Teses”, postas à discussão para receber sugestões, revisões e ampliações e, nesta Mesa de debate, muito modesta e brevemente – para não tomar o tempo dos outros participantes -, quero indicar aspectos que, a meu juízo, merecem reparos.

Salientando, pois, que é um documento oxigenado, aberto a fenômenos e a processos novos, passo à minha leitura das “Teses”. E devo prevenir que ela não é uma leitura acadêmica, embora eu esteja na academia. A mim me parece que os acadêmicos, geralmente, lêem um documento político como se se tratasse de uma tese ou uma dissertação. Ora, a natureza do documento que temos em mãos é política e, na medida em que emana de um coletivo que se pretende marxista, deve ter uma fundamentação teórica para as suas proposições; nem por isto, contudo, deve-se submetê-lo ao inquisitorial de uma banca de doutorado. De qualquer forma, ele apresenta problemas teóricos que não posso deixar de assinalar.

O primeiro deles refere-se à questão do imperialismo atual, na sua forma contemporânea. Não vou me deter nesta questão, pois aqui a meu lado está a Virgínia Fontes, esta musa da esquerda que tem se ocupado muito com o imperialismo nos dias correntes. Mas penso que o documento põe a problemática do imperialismo ainda operando com uma concepção de imperialismo muito colada aquela concepção cuja matriz teórica eu não discuto, a de Lênin; julgo, porém, que é preciso desenvolvê-la levando em conta os fenômenos e processos contemporâneos da mundialização – ou, mais propriamente, da planetarização – do capital. Apenas uma indicação para sinalizar o que deve ser mais trabalhado no documento: salvo erro meu de leitura, não fica claro se os meus camaradas do PCB consideram ou não a economia do Brasil como dependente. O texto chama a atenção para a presença brasileira – empresarial e monopolista – em vários quadrantes do mundo; mas a determinação de se a nossa histórica heteronomia econômica foi rompida ou não inexiste nas “Teses”. Eu, particularmente, estou convencido que a nossa heteronomia econômica – termo que o velho e querido professor Florestan Fernandes utilizava para caracterizar a nossa dependência aos grandes centros decisórios externos – não foi rompida ou superada. Isto não quer dizer, notem, não quer dizer que não haja componentes imperialistas na economia brasileira – mas é necessário determiná-los com rigor e precisão. Parece-me que a falta de uma caracterização mais cuidadosa, exaustiva, do fenômeno imperialista acarreta, a meu juízo, uma ambigüidade na determinação da dependência ou não da economia brasileira. E esta carência tem as maiores implicações do ponto de vista tático, para não dizer do ponto de vista estratégico. Do ponto de vista tático, isto incide diretamente na configuração do arco de alianças que os comunistas podem e devem articular. Não me estenderei mais porque seguramente a Virgínia, a Anita e o Mauro tratarão deste ponto.

O segundo problema teórico – que não aflige apenas o PCB, posto que seja uma das questões mais candentes do debate teórico marxista no mundo inteiro -, diz respeito à determinação concreta da categoria “proletariado”. Não são casuais as oscilações registradas no documento: “proletariado”, “operariado”, “trabalhadores”. Os dilemas aí contidos não são apenas terminológicos e, se não podemos solucioná-los imediatamente, pelo menos é preciso afastar as ambigüidades evitáveis. Se entendi corretamente o espírito das “Teses”, o centro, o componente axial, o “núcleo duro” do bloco político que pode conduzir a revolução brasileira é a classe operária. Ora, para que este “centro”, “núcleo duro” não se preste a equívocos, torna-se importante qualificar melhor o que se está compreendendo como “classe operária”. Devo reconhecer, ademais, que as “Teses” revelam um notável esforço para compreender a estrutura social brasileira contemporânea; os companheiros que elaboraram este documento empenharam-se para apreender as particularidades da estrutura de classes do Brasil contemporâneo. Mas ainda estamos longe, não direi de uma apreensão exaustiva, mas de um conhecimento minimamente adequado. De fato, este problema (teórica e praticamente decisivo para os comunistas) permanece em aberto. Não há pesquisas acadêmicas suficientes, embora haja recursos estatísticos que precisam ser tratados criticamente. A tentativa de análise que se expressa nas “Teses” é uma primeira aproximação à realidade brasileira, mas penso que ainda há um longo caminho a percorrer neste nível.

O terceiro problema teórico-conceitual que suponho merecer um cuidado especial refere-se à utilização de uma categoria que, segundo creio – e poderão corrigir meu eventual erro companheiros que vejo na platéia e que sei serem conhecedores de Gramsci, do qual eu sou apenas um leitor cuidadoso -, foi extraída do arsenal gramsciano. Trata-se da categoria “bloco histórico”. Em Gramsci, seu sentido é bastante rigoroso e não me parece que é o mesmo com que se emprega nas “Teses”. Por uma rápida conversa que tive há pouco com o Eduardo Serra, soube que vocês mesmos estão sensíveis a esta questão. De fato, julgo que, nas “Teses”, a categoria é sinônimo de “sistema de alianças” – o que, se não li Gramsci erradamente, é muito diverso do que ele pensa. Ainda com referência a categorias gramscianas, creio que seria de bom alvitre tratar com precisão o problema da “hegemonia”, de modo a não converter um importante instrumento teórico e heurístico numa palavra vazia.

Enfim, no trato da questão da hegemonia, quero – como se diz popularmente na minha terra – puxar a brasa para a minha sardinha. O fato é que – com Gramsci ou sem ele, de preferência com ele – não é possível discutir hegemonia sem um tratamento cuidadoso do “mundo da cultura”. Se as “Teses” conferem uma atenção que me parece digna de elogios ao “mundo do trabalho”, a meu juízo elas negligenciam (ou dão atenção muito insuficiente) ao “mundo da cultura”. É uma pena, porque uma das maiores e mais fecundas ricas tradições do movimento comunista brasileiro, especificamente do PCB, sempre foi o trato muito rico sobre a temática cultural. Se há uma temática a ser intensivamente mais trabalhada nas “Teses” é exatamente a da cultura.

Enfim, cuidemos de estratégia e tática.

Estou convencido de que não pode ser objeto de polêmica, na entrada do século XXI, no final da primeira década do século XXI, posta a planetarização do capital nos termos que ela ocorreu nos últimos trinta anos e também em função das mudanças experimentadas pelo Brasil, sua economia, sua estrutura social, seu sistema político, nos últimos vinte anos – estou convencido de que não pode haver dúvidas, como no passado, acerca do caráter da revolução brasileira. E as “Teses” colocam corretamente: o caráter da revolução brasileira é socialista.

No entanto, a esta correta colocação nem sempre correspondem elementos probatórios adequados. Por exemplo, a análise da economia brasileira, para contribuir para uma suficiente sustentação daquela colocação, precisa ser muito mais desdobrada e sofisticada. Os meus camaradas do PCB, estou certo disto, dispõem de recursos humanos (teóricos, intelectuais etc.) para oferecer um quadro muito mais elaborado da economia brasileira. Os elementos estatísticos apresentados nas “Teses” são quase que aleatórios: não funcionam como fundamentação, funcionam como ilustração, como exemplo. Sei que a Resolução Política que sairá desse Congresso não deve (e não pode) ser um documento “científico”; deve constituir a macro-orientação da ação política até um outro Congresso. Entretanto, o Partido, seus dirigentes, seus coletivos, seus militantes, têm que dispor, para o confronto de idéias, mais que de noções gerais: precisam de referências qualitativas sustentadas quantitativamente – e com afirmações como as que comparecem nas “Teses” (por exemplo: “as cinqüenta maiores empresas brasileiras”…) nada se sustenta com solidez.

Passo agora a rápidas considerações sobre a tática (e não se esqueçam de que, neste domínio, meu currículo é bem servido de derrotas…).

É para mim quase axiomático que, se nós não operarmos com uma visão adequada (ou seja: correta, verdadeira) da estrutura de classes brasileira, na sua complexidade, na sua diferenciação interna e na sua concreta particularidade, acabaremos por homogeneizar o que é heterogêneo e compósito – e isto, para o caso de alianças políticas mais conjunturais (inclusive eleitorais) e, mais ainda, para o caso de alianças mais duradouras, pode ser fatal. Sabemos que não se faz revolução por via eleitoral; mas quero dizer que, em países como o nosso, quem não participa da vida eleitoral, dos debates eleitorais, quem não explora também a via institucional, não contribuirá para nenhuma revolução. Por isto mesmo, é absolutamente importante definir com muita clareza os nossos aliados de mais longo prazo, os nossos aliados conjunturais, os nossos adversários, que tem que ser neutralizados, e os nossos inimigos. Não foi por acaso que, tratando do conjunto das “Teses”, mencionei a questão do conhecimento da estrutura de classes brasileira – sem este conhecimento, as definições que acabei de referir são impossíveis; e o mesmo cabe à questão do proletariado: se dele não se tiver uma visão muito nítida, se não levarmos em conta as suas mutações e a sua diferenciação, conferir ele a centralidade do desempenho do movimento revolucionário é fazer uma aposta no escuro.

Quando me detive sobre a parte das “Teses” relativa à tática, pareceu-me que os meus camaradas do PCB foram excessivamente minuciosos, estabelecendo com demasia as tarefas táticas. Confesso que tenho muitas dúvidas acerca deste tipo de encaminhamento. Sei que não está na cabeça de nenhum dos que contribuíram na elaboração das “Teses” fornecer uma espécie de “receita revolucionária” – mas tive a impressão de que os meus camaradas não resistiram completamente a essa tentação. O rol tático é detalhado ao extremo – e penso que isto não ajuda, até porque sabemos que nenhum processo revolucionário efetivo correspondeu à projeção teórico-política que dele foi feita: toda revolução, no seu processo e na sua eclosão, é um inesgotável manancial de inovações, surpresas, experiências inéditas… A excessiva especificação, tal como vem expressa nas “Teses”, pode conduzir a uma rápida anacronização das tarefas ali prescritas. Penso que o cuidado de apresentar, em minúcias, inclusive um verdadeiro “programa de transição” contém os riscos de um enquadramento muito rígido – ademais de, a meu juízo, parecer um prematuro programa de governo. Eu sugeriria que vocês se ativessem apenas às grandes linhas e deixassem de lado detalhamentos pouco operativos. Se os militantes tiverem clareza quanto à concepção estratégica, e se possuírem uma boa formação política, eles demonstrarão a criatividade nas horas mais decisivas.

Questão que me parece importantíssima, mesmo no domínio da tática, refere-se ao papel do Estado (no plano estratégico, trata-se de questão essencial). Todos nesta Mesa temos consciência do que foi a experiência socialista do século XX – e, quanto a isto, as “Teses” fazem um esforço de análise que aplaudo: também ainda é insuficiente, mas o “socialismo real” continua como espécie de Esfinge tentando nos devorar. Pois bem: penso que um dos problemas mais essenciais das experiências socialistas do século XX foi a identificação de dois processos distintos: o processo de socialização e o processo de estatização. E, nas “Teses”, acena-se generalizadamente para a estatização. Ora, medidas estatizantes só contribuem para a via socialista se forem acompanhadas por uma intensa participação autogestora dos trabalhadores. Penso, pois, que os companheiros do PCB devem se pronunciar claramente neste sentido – a experiência histórica da estatolatria não deu bons resultados (e a estatolatria nada tem a ver com o papel essencial do Estado num processo de transição socialista). A meu juízo, as “Teses” atribuem uma tal centralidade ao Estado que, posta da forma em que está no documento, me pergunto qual será o protagonismo dos movimentos sociais, dos movimentos de bairros, organizações populares, dos movimentos associativos em geral.

Estas são as questões que queria abordar nesta Mesa. Meu tempo certamente já foi ultrapassado e devo concluir. Antes, porém, duas rápidas notações. Embora no geral muito bem redigidas, as “Teses” deixam escapar certos exageros e entusiasmos que não as acrescentam – pelo contrário, devem ser expurgados do texto (por exemplo, a passagem, baluartista, sobre a “deposição” do Collor). Outra: um certo otimismo – de que não compartilho – sobre a nossa, dos comunistas, situação atual. Esta última está ligada, penso, a uma brutal subestimação da manipulação ideológica que hoje é generalizada (não tenho simpatia pela “Escola de Frankfurt”, mas temos algo a aprender com ela). E a manipulação ideológica só pode ser esclarecida se dermos a atenção devida – que, como observei, não é suficiente nas “Teses” – ao “mundo da cultura”. Quanto a isto, se tiver tempo, quero contribuir com algum subsídio, na seção de debates dos “Amigos do Partido”.

E como o meu tempo já estourou, só posso dizer-lhes: parabéns ao PCB. Muito obrigado.

(José Paulo Netto)

 

Fonte: dariodasilva.wordpress.com/2009/10/08/jose-paulo-netto-seminario-estrategia-e-tatica-da-revolucao-brasileira/

 

fonte: