Hora de abandonar a herança maldita: O governo Dilma e as greves no Serviço Público

10/08/2012 14:22

Hora de abandonar a herança maldita: O governo Dilma e as greves no Serviço Público

 

Por Carlos Eduardo Martins.

O governo Dilma vem enfrentando uma onda de greves dos servidores público federais que coloca em questão as políticas fiscal e monetária herdadas do governo Fernando Henrique Cardoso. Estas foram suavizadas durante o governo Lula, nos momentos mais agudos de crise, como em 2010, mas nunca efetivamente abandonadas. Tais políticas se baseiam na restrição à demanda através de corte de gastos públicos e geração de expressivos superávits primários, integralmente absorvidos por altas despesas em juros como estratégia de controle inflacionário. As despesas com juros são significativamente maiores que o superávit primário e por isto a dívida bruta do governo federal tem se elevado, em particular a interna, apesar da queda drástica da dívida pública externa, regulada pelos juros internacionais, hoje negativos em termos reais.

A greve envolve aproximadamente metade dos servidores ativos civis do governo federal e seu caso mais notório e expressivo é a dos docentes que alcançou 95% das universidades federais do país e também maioria esmagadora dos colégios de aplicação, obtendo amplo apoio dos estudantes e atingindo mais de um milhão de alunos apenas no ensino superior. Apesar desses drásticos efeitos sociais, o governo apenas apresentou sua primeira proposta aos sindicatos 56 dias após a deflagração da greve. Ofereceu aumentos a serem pagos em três parcelas até 2015 que traziam um impacto orçamentário de R$ 3,9 bilhões e partiam dos salários de 2010, último ano de reajuste dos docentes. Posteriormente, o governo ofereceu R$ 4,2 bilhões, muito distantes dos R$ 10 bilhões solicitado pelo ANDES, principal entidade sindical docente do ensino superior. O governo tampouco atendeu suficientemente às exigências para a reestruturação da carreira e, inclusive, a degradou: vinculou a promoção a critérios de produtividade determinados externamente pelo MEC, violando a autonomia universitária que se pretende resgatar, e ao aumento do tempo de sala de aula para 12 horas, em afronta à Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB). Em sua segunda proposta, o governo remeteu a definição dos parâmetros de produtividade a grupo de trabalho a ser constituído pelo MEC, condicionando a participação nele das entidades sindicais à aceitação dos seus termos.

Os termos do processo de negociação com os movimentos sociais incluem o recurso a certa dose de violência por parte do governo  – corte de ponto sem que a justiça decretasse a ilegalidade da greve, ameaça de improbidade administrativa aos dirigentes que não o imponham, decreto de substituição de servidores federais por estaduais etc. – e evidencia o desinteresse em considerar suas reivindicações. O discurso governamental afirma que as demandas dos servidores públicos em seu conjunto seriam inviáveis, pois somariam R$ 93 bilhões, ou aproximadamente 2% do PIB.

Como avaliar esta ação do governo Dilma? Estaria defendendo o Estado brasileiro de um movimento corporativo, com interesses particularistas em confronto com as necessidades das grandes maiorias da sociedade brasileira? Justificar-se-ia pela defesa dos investimentos contra pressões salariais que ameaçariam liquidá-los?

Trabalho recente publicado no IPEA [Comunicado 110:  Ocupação no setor público brasileiro: tendências recentes e questões em aberto] mostra que o governo Fernando Henrique Cardoso produziu uma enorme devastação do emprego no setor público, reduzindo-o e precarizando-o: em 1993 havia 680 mil servidores ativos na administração federal e em 2002 apenas 550 mil. A expansão dos concursos públicos a partir de 2005 não permitiu sequer restabelecer os níveis de 1992: em 2010 estes servidores somavam aproximadamente 630 mil. Tampouco o aumento do ritmo de contratação permitiu manter a exígua parcela que representavam no conjunto do emprego da população brasileira: em 2003 correspondiam a apenas 2,5% dos trabalhadores e em 2010 a 2,2%. A empresa privada, onde é notavelmente pior a remuneração, aumentou no período sua participação de 64,4% a 69,6% do total de empregos. A massa salarial na administração pública federal permaneceu modesta e constante: em 2002 representou 5% do PIB, em 2010 apenas 4%, correspondendo a 20% da arrecadação do governo federal neste intervalo. Isto apesar da elevação qualidade do emprego – os estatutários saltaram de 78% dos servidores em 1995 a 83,5% em 2002 e 90% em 2010 – e do aumento do nível de escolaridade médio do servidor federal.

Estes indicadores mostram que é muito difícil imaginar uma pressão desestabilizadora nas contas públicas oriundas destes trabalhadores e seu movimento sindical. Os 2% do PIB que hipoteticamente reivindicam sequer produzirão déficit público primário, mesmo se ignorarmos o multiplicador keynesiano que alimenta a expansão da economia real e da arrecadação pública.

A impossibilidade de negociação está ancorada nas políticas públicas adotadas pelo governo Dilma Rousseff e em particular em sua equivocada estratégia anti-inflacionária, que sacrifica a expansão da demanda, o crescimento econômico e mantém a financeirização da economia. A recente redução na taxa de juros real praticada não a situou abaixo das taxas de crescimento econômico: a dívida pública federal saltou de 51,3% a 54,1% entre janeiro de 2011 e maio de 2012; em março de 2012 registrou-se recorde mensal no pagamento de juros, R$ 18 bilhões, e em maio de 2012 pagou-se R$ 230 bilhões, somados os 12 meses anteriores, mais que os 200 bilhões em janeiro de 2011, quando o novo governo assumiu.

Em 2011, juros e amortizações representavam 45,7% do orçamento executado do governo federal, enquanto saúde respondia por 5%, educação por 3%, ciência e tecnologia por 0,3% e cultura por 0,04%. Apesar da promessa da Presidenta em baixar os juros a 2% em nível real é bastante provável que a taxa de juros possa sofrer futura elevação quando retomar-se o crescimento da economia, em função do enfoque anti-cíclico que maneja o governo. Foi o que o governo fez no primeiro ano para desacelerar o crescimento da economia.

A pressão colossal que os juros e amortizações exercem sobre o orçamento governamental impede que o Estado atue como gerador de emprego, massa salarial e investimento. O resultado é a mediocridade de nossas taxas médias de crescimento do PIB e de investimento, o avanço da desindustrialização e manutenção indefinida do programa de renda mínimo como principal fonte de política social, negligenciando a educação e o emprego como instrumentos sustentáveis e estruturais de redução de desigualdade, pois exigem investimentos muito mais significativos para desempenharem este papel.

A política anti-inflacionária governamental é equivocada e inadequada, em particular para a conjuntura internacional em que vivemos. Desde 1994, a economia mundial vivencia um período de expansão acelerado que se expressa em novas ondas de inovação tecnológica que barateiam e desvalorizam fortemente as mercadorias. São exatamente os países capazes de alavancá-las os que exibem taxas de inflação mais baixas. O Brasil exibe desde 1994 taxas de inflação muito superiores que as da China que investiu entre 30% a 50% do PIB e reduziu drasticamente sua pobreza, ou os países da Europa Ocidental e os Estados Unidos. Nossa inflação, aliás, sempre foi historicamente muito superior a dos países que registram os maiores mercados internos do mundo e orientam seus recursos para atendê-los. Não faz nenhum sentido vincular a política inflacionária a um enfoque estagnacionista como o de corte de demanda, em particular, do setor público.

A legitimidade do governo Dilma para combater eventuais desvios corporativos do sindicalismo do setor público torna-se profundamente comprometida com a orientação de grande parte dos recursos federais para atender aos especuladores do Estado brasileiro. Perde força a capacidade de impor constrangimentos aos servidores públicos a partir do discurso de que suas demandas salariais sacrificariam investimentos públicos e sociais. A elevação de 133% do soldo presidencial e dos ministros de Estado, praticada neste governo, e a informação de que a Ministra do Planejamento e Orçamento Miriam Belchior aufere proventos de mais de R$ 40 mil mensais não respaldam o discurso de austeridade junto ao funcionalismo público. Entre os servidores públicos federais, o salário médio é de 11 salários mínimos para homens e 12 para mulheres, mas há forte dispersão entre as categorias e os docentes estão entre as piores remuneradas. A proposta do governo aumenta ainda mais as disparidades no interior da carreira no ensino superior conferindo elevação salarial desproporcional em favor dos professores titulares, onde estão apenas 5% dos docentes.

A universidade brasileira necessita de profunda revisão. Não é possível que nos acomodemos com o fato de 75% das matriculas do ensino superior estar nas universidades privadas, relação das mais desiguais no mundo. Este índice que era favorável às universidades públicas, inverteu-se nos governos militares e no governo FHC saltou de 58% para 69%. No governo Lula não se conseguiu impedir sua progressão, apesar de iniciativas como a abertura de novas universidades públicas ou contratação de professores estatutários por concurso público. Continuamos, entretanto, a financiar pesadamente as universidades privadas via Prouni e outras iniciativas. Dilma acaba de assinar decreto onde cria o Programa de Estímulo à Reestruturação e ao Fortalecimento das Instituições de Ensino Superior (Proies). Este iniciativa cancela a dívida de R$ 17 bilhões das universidades privadas com o Governo Federal em troca de bolsas que ofereçam aos seus alunos nos próximos 15 anos. Trata-se de um apoio muito mais generoso que o oferecido às universidades públicas e que coloca em discussão o tipo de universidade na qual queremos formar nossos alunos. Qual é a proposta de ensino superior brasileiro deste governo? A de formar alunos a partir da articulação entre ensino e pesquisa para a cidadania e desenvolver um sistema de ciência e inovação capaz de projetar o Brasil como um país soberano no cenário internacional; ou a de formá-los para um mercado de trabalho com baixas exigências tecnológicas, em instituições que priorizem o baixo custo do investimento e a dissociação do ensino e pesquisa, dentro do contexto da dependência tecnológica internacional?

A reestruturação do ensino superior exige também o resgate da autonomia universitária e a redefinição do conceito de produtividade. O achatamento salarial dos docentes levou a que se buscasse complementação salarial mediante a competição por bolsas em agências de fomento à pesquisa. Estas impõem critérios de pontuação elitizados e aristocráticos que desviam o esforço da produção universitária da cidadania, das grandes massas e da extensão, favorecendo corporativismo acadêmico e um público extremamente restrito. Escrever um artigo a cada 3 anos num periódico estrangeiro em língua estrangeira, muitas vezes só acessível ao leitor mediante pagamento na internet, pode ser decisivo para uma carreira universitária se este for classificado como A-1, mas orientar monografias de graduação, participar de debates em TVs e rádios comunitárias, publicar com regularidade em revistas ou portais de amplo acesso não têm peso nenhum para as agências reguladoras da produtividade. Estranha equação. Talvez seja ela que explique o fato de a maior universidade federal do país não ter uma rede de TV ou de rádio para seus cientistas se dirigirem à população, ou o fato de alguns de seus institutos terem abolido a monografia de graduação, liberando seus docentes para dedicarem-se a orientações de dissertações, teses e artigos que lhes dão pontos de produtividade. Trata-se de um forte processo de privatização do ensino superior público que reflete de certa forma o controle que as grandes oligarquias do país ainda exercem sobre o Estado brasileiro.

A eleição do PT para o comando do Estado brasileiro a partir de 2002 representa uma importante inflexão na história política do país. Nele estão depositadas as esperanças da população brasileira para que se afirme de maneira substantiva e sustentável a condição republicana de nosso Estado. Qualquer projeto de mudança da realidade brasileira em direção à igualdade e promoção dos nossos povos dependerá ainda por vários anos, muito provavelmente, de sua liderança. Mas para exercê-la este Partido deve abdicar da Guerra Fria que trava com as oligarquias brasileiras e confrontar de maneira mais contundente os seus interesses. Como sabemos, a Guerra Fria significou uma confrontação limitada dentro de um projeto de coexistência pacífica entre a direita e a esquerda internacional, que se esgotou depois de anos. Terminou com a vitória das forças do grande capital que, por sua sede de expansão ilimitada, nunca abandonou o projeto de desalojar seu oponente. 

Desprivatizar o Estado brasileiro e enfrentar o tema da desigualdade exige ir muito além de um programa de renda mínima, ainda que este tenha relevância e um papel importante a cumprir. Os dados sobre a redução da desigualdade no país são tímidos depois de 10 anos desta política. Estes devem ainda ser confrontados com a notória insuficiência das estatísticas para mapear os ingressos de origem financeira e rendas de propriedade, que na PNAD respondem por apenas 3% do total declarado. Informações recentes que apontam a presença de 1/3 do PIB brasileiro em paraísos fiscais e os brasileiros como os seus 4º maiores investidores evidenciam a necessidade de cautela no tratamento deste tema.

O PT e seus principais representantes deverão escolher seu caminho nesta década: ou derrubam o muro da Guerra Fria que preserva as oligarquias e impede o estabelecimento de políticas que ultrapassem o combate à extrema pobreza e atendem às demandas de formação massiva de um proletariado qualificado e com ingresso familiar per capita ao menos proporcional ao salário mínimo necessário do Dieese – situação por debaixo da qual se encontravam aproximadamente 60% da população brasileira em 2009 –; ou arriscam-se a esgotar sua liderança, abrindo o espaço para na pior das hipóteses, num momento de crise e desgaste, a direita reassumir seu lugar na direção do Estado brasileiro.

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O livro mais recente de Carlos Eduardo Martins, Globalização, dependência e neoliberalismo na América Latina (Boitempo, 2011) está à venda em versão eletrônica (ebook), pela metade do preço do livro impresso, na Gato Sabido.

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Carlos Eduardo Martins é doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP), professor adjunto e chefe do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), coordenador do Laboratório de Estudos sobre Hegemonia e Contra-Hegemonia (LEHC/UFRJ), coordenador do Grupo de Integração e União Sul-Americana do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (Clacso) e pesquisador da Cátedra e Rede Unesco/UNU de Economia Global e Desenvolvimento Sustentável (Reggen). É autor de Globalização, dependência e neoliberalismo na América Latina (2011) e um dos coordenadores da Latinoamericana: Enciclopédia contemporânea da América Latina e do Caribe (Prêmio Jabuti de Livro do Ano de Não Ficção em 2007) e co-organizador de A América Latina e os desafios da globalização (2009), ambos publicados pela Boitempo. É colaborador do Blog da Boitempo quinzenalmente, às segundas.

 

Fonte: boitempoeditorial.wordpress.com/2012/08/06/hora-de-abandonar-a-heranca-maldita-o-governo-dilma-e-as-greves-no-servico-publico/