Giorgio Agamben: Política da profanação versus religião do consumo, de Demétrio Cherobini

19/10/2011 09:49

Demétrio Cherobini

Em 1921, Walter Benjamin escreveu um breve artigo que viria a público somente após sua morte: O capitalismo como religião. Nele o filósofo acreditou ter decifrado três das principais características da sociedade capitalista de seu tempo, enquanto fenômeno intrinsecamente religioso.


O capitalismo seria, em primeiro lugar, uma religião essencialmente cultual: o dinheiro, a riqueza, etc., representam as divindades às quais se deve impreterivelmente servir, sem vacilação. Segundo: o culto preconizado pela religião capitalista não possui um dia ou uma ocasião específica para sua realização: ele é, de fato, permanente. Afirma o filósofo: “Não há dia que não seja de festa, no terrível sentido da ostentação sagrada, da tensão extrema que reside no adorador.” O terceiro traço: o culto que esse sistema produz é culpabilizador, mas sem a possibilidade de expiação. Como consequência, as pessoas são tomadas de um desespero renitente e cruel, sem qualquer chance de redenção.

 

Mais tarde, em 1924, ao travar contato com a obra do húngaro György Lukács, o filósofo alemão acabou abandonando algumas dessas idéias. Aproximou-se do marxismo, deixou de condenar o capitalismo como religião e passou a criticar o culto fetichista da mercadoria, analisando as galerias parisienses como “templos do capital mercadológico”. Em nossos dias, coube ao italiano Giorgio Agamben retomar e desenvolver algumas das antigas reflexões benjaminianas sobre o capitalismo como religião, dando a elas uma fundamentação um pouco diferente.

 

É verdade, diz Agamben, que o capitalismo possui cultos, que esses cultos são permanentes e que a culpabilização gerada não oferece possibilidade de redenção. Mas o que é mais fundamental, e que justifica a comparação do capitalismo com uma religião, é o fato de essa forma de organização social estabelecer, em sua própria substância, uma cisão radical que cria a esfera do sagrado em contraposição ao mundo meramente humano, onde subsiste a maioria das pessoas.

 

Para fundamentar teoricamente sua reflexão, o filósofo serve-se dos escritos dos juristas romanos do passado, tema este em que é especialista. Na Roma antiga, afirma Agamben,

 

“Sagradas ou religiosas eram as coisas que de algum modo pertenciam aos deuses. Como tais, elas eram subtraídas ao livre uso e ao comércio dos homens, não podiam ser vendidas nem dadas como fiança, nem cedidas ao usufruto ou gravadas de servidão. Sacrílégio era todo ato que violasse ou transgredisse esta sua especial indisponibilidade, que as reservava exclusivamente aos deuses celestes (nesse caso eram denominadas propriamente ‘sagradas’) ou infernais (nesse caso eram simplesmente chamadas ‘religiosas’).” (Agamben, 2007, p. 65)

 

Religião é, portanto, aquilo que retira coisas, lugares, animais ou pessoas do contato com o vulgo e as transfere para uma dimensão à parte da existência. Não há religião sem separação, e todo tipo de separação feita nesses moldes contém algo de religioso (o dispositivo que realiza a transposição de um determinado ente do mundo dos homens para as regiões divinais é o sacrifício).

 

Muitas pessoas acreditam, explica Agamben, que o termo religio deriva de religare (isto é, o que une o humano e o divino), mas essa relação não é verdadeira. Religio deriva, de fato, de relegere que significa precisamente “a atitude de escrúpulo e de atenção que deve caracterizar as relações com os deuses, a inquieta hesitação (o ‘reler’) perante as formas – e as fórmulas – que se devem observar a fim de respeitar a separação entre o sagrado e o profano” (ibid., 66). Religião, então, é exatamente aquilo que separa (e reforça a distinção) entre os mundos humano e divino.

 

Por outro lado, o que em verdade supera a cisão entre ambas as esferas não é a deferência em relação ao divino, e sim uma atitude de “negligência” para com as normas que a religião estabelece. É essa atividade que Agamben, na esteira dos juristas romanos, denomina de profanação: “Profanar significa abrir a possibilidade de uma forma especial de negligência, que ignora a separação, ou melhor, faz dela um uso particular.” (ibid., 66)

 

Nesse sentido, explica o filósofo, uma das maneiras de se fazer esse “uso particular” do sagrado e burlar o conjunto de normas que realizam a separação entre humano e divino é a atividade lúdica, o jogo. Conforme suas palavras:

“Brincar de roda era originalmente um rito matrimonial; jogar com bola reproduz a luta dos deuses pela posse do sol; os jogos de azar derivam de práticas oraculares; o pião e o jogo de xadrez eram instrumentos de adivinhação. Ao analisar a relação entre jogo e rito, Émile Benveniste mostrou que o jogo não só provém da esfera do sagrado, mas também, de algum modo, representa a sua inversão. A potência do ato sagrado – escreve ele – reside na conjunção do mito que narra a história com o rito que a reproduz e a põe em cena (grifo nosso). O jogo quebra essa unidade: como ludus, ou jogo de ação, faz desaparecer o mito e conserva o rito; como jocus, ou jogo de palavras, ele cancela o rito e deixa sobreviver o mito. (…) Isso significa que o jogo libera e desvia a humanidade da esfera do sagrado, mas sem a abolir simplesmente. O uso a que o sagrado é devolvido é um uso especial, que não coincide com o consumo utilitarista. Assim, a ‘profanação’ do jogo não tem a ver apenas com a esfera religiosa. As crianças, que brincam com qualquer bugiganga que lhes caia nas mãos, transformam em brinquedo o que pertence à esfera da economia, da guerra, do direito e das outras atividades que estamos acostumadas a considerar sérias. Um automóvel, uma arma de fogo, um contrato jurídico transformam-se improvisadamente em brinquedos.” (ibid., 66-7)

 

Note-se, então, que no jogo, que é uma das formas exemplares de profanação, as coisas são retiradas de suas relações costumeiras e inseridas em novas relações completamente distintas das primeiras. Um objeto com uma função específica, como por exemplo uma vassoura, pode virar, numa brincadeira, um cavalo. Uma estrutura que envolve determinadas práticas sociais e significados quebra-se para que outra venha à tona.

 

Contudo, diz Agamben, o “jogo como órgão da profanação está em decadência em todo lugar” (ibid., 67). Em nossos dias, de “religião capitalista”, os homens e mulheres já não tomam mais o jogo como meio de restituir o sagrado ao mundo humano. Não que não haja mais jogos – ou festas e danças, também concebidas originalmente como práticas anuladoras da separação – no contexto contemporâneo. Mas é que, naqueles que hoje existem – os “jogos televisivos de massa”, por exemplo – o objetivo realizado é apenas a instauração de uma nova liturgia, que seculariza por um breve momento o que nas situações diárias é considerado como objeto de culto e reverência. Mas secularização, adverte o filósofo, é diferente de profanação.

“A secularização é uma forma de remoção que mantém intactas as forças, que se restringe a deslocar de um lugar a outro. Assim, a secularização política de conceitos teológicos (…) limita-se a transmutar a monarquia celeste em monarquia terrena, deixando intacto, porém, o seu poder. A profanação implica, por sua vez, uma neutralização daquilo que profana. Depois de ter sido profanado, o que estava indisponível e separado perde a sua aura e acaba restituído ao uso.” (ibid., 68)

 

A secularização, portanto, muda de lugar um elemento no interior de um determinado sistema de relações que permanece, por sua vez, intacto. A profanação, ao contrário, desativa esse sistema. É por isso que é a profanação, e não a secularização, que deve ser perseguida por aqueles que não querem se deixar aprisionar pelo culto culpabilizador (e desesperador!) da religião capitalista.

 

O capitalismo, diz Agamben, generaliza e absolutiza o princípio definidor da religião. Em todos os âmbitos da atividade humana pode-se verificar o processo multiforme de separação que o sistema implementa. É interessante observar, nesse contexto, como o filósofo italiano aproxima tal fenômeno do fetichismo da mercadoria de que falava Marx. Conforme suas palavras:

“Na sua forma extrema, a religião capitalista realiza a pura forma de separação, sem mais nada a separar. Uma profanação absoluta e sem resíduos coincide agora com uma consagração igualmente vazia e integral. E como, na mercadoria, a separação faz parte da própria forma do objeto, que se distingue em valor de uso e valor de troca e se transforma em fetiche inapreensível, assim agora tudo o que é feito, produzido e vivido – também o corpo humano, também a sexualidade, também a linguagem – acaba sendo dividido por si mesmo e deslocado para uma esfera separada que já não define nenhuma divisão substancial e na qual todo uso [no sentido de profanação] se torna duravelmente impossível. Esta esfera é o consumo.” (ibid., 71. Grifos nossos)

 

Portanto, tudo que é feito, produzido e vivido torna-se mercadoria – tudo é interiormente cindido. A existência social como um todo divide-se e o consumo passa a ser a esfera onde a consagração das coisas é consumada. As coisas tornam-se reverenciáveis por si mesmas, sagradas, veneráveis e acima do universo do humano.

Qual a alternativa? Fazer outro uso das coisas, diz o filósofo: estabelecer uma forma de relacionamento social que elimine a separação instaurada pelo capitalismo e que restitua ao domínio humano o que o sistema aliena para o plano do sagrado. Numa palavra, é preciso profanar.

 

“A profanação do Improfanável é a tarefa política da geração que vem”, assevera Agamben, sem hesitação. Se estiver certo, as revoluções do século XXI deverão ter um caráter profundamente lúdico e profanatório.

 

Referências: Agamben, Giorgio. Profanações. São Paulo: Boitempo, 2007.

 

Fonte: https://diarioliberdade.org/index.php?option=com_content&view=article&id=20693:giorgio-agamben-politica-da-profanacao-versus-religiao-do-consumo&catid=316:em-busca-da-ofensiva-socialista&Itemid=21