"A esquerda que não teme dizer seu nome": resenha de Ruy Fausto

02/11/2012 10:50

Sobre A Esquerda que não teme dizer seu nome de Vladimir Safatle (São Paulo, Três Estrelas, 2012).

 

Ruy Fausto

 

A primeira unidade de “Esquerda/ direita…” já estava publicada, e a segunda já estava escrita, quando meu amigo Vladimir Safatle me enviou, muito cordialmente, uma primeira versão de seu livro. A última – que, fora uma referência a meu respeito, não parece ser muito diferente da primeira –vim a conhecê-la quando meu texto já estava inteiramente escrito. Infelizmente, por razões de espaço – elas existem, é claro, mesmo para revistas eletrônicas –,tenho de ser sucinto. Abrindo o jogo. Aparte alguns desenvolvimentos, principalmente no final,devo manifestar meu desacordo quase total com as ideias do livro. Este artigo, publicado em três números sucessivos de Fevereiro, é – sem querer – uma resposta ao livro de Safatle. O que funciona mal no livro de Safatle? Muita coisa. Uma recusa em pensar a fundo os horrores do passado cometidos em nome da esquerda, um universalismo estreito, fechado às diferenças, uma recusa “inegociável” de toda “democracia parlamentar”. A acrescentar: a) suas referências teórico-filosóficas principais, Badiou – apesar de uma ressalva – e Zizek,e mais,Agamben e Derrida; b) um uso pelo menos curioso de autores que, na realidade, não são solúveis nestes que mencionei: Adorno e Lefort. Comecemos pelo final.À página 39, Safatle cita Lefort, como alguém que considera a possibilidade de transgressões democráticas ao Estado de Direito. Mais adiante (p. 49), ele volta a se referir a Lefort. Safatle deveria advertir o leitor de que Lefort se situa numa posição diametralmente oposta à sua: entre todos os pensadores políticos de esquerda do século XX, é provavelmente o que mais defende a democracia, entendida como democracia parlamentar. De resto, isto é visível, já na citação que ele faz: trata-se de considerar transgressões no quadro do Estado democrático (e Lefort entende por isto a democracia parlamentar), não fora dele. (O argumento de Safatle, de estilo soreliano, passa da transgressão que pode ocorrer numa greve, ou numa manifestação ecológica, ao questionamento do próprio Estado democrático. Esse tipo de hipérbole, vou mostrar proximamente, é típico do universo pós-estruturalista francês e de seus cartunistas63, precisamente a dupla já citada). Sobre Adorno64 seria bom lembrar, que se na Dialética do Aufklärung a noção de “democracia” não tem um sentido positivo, Adorno, que eu saiba, nunca se manifestou contra a democracia representativa – e Horkheimer muito menos,independentemente da deriva final deste último na direção de uma posição unilateralmente“pró-ocidental” –; mais do que isto, em sua última fase (cujo significado não deve ser confundido com a do último Horkheimer), Adorno assumiu abertamente a defesa da democracia, entendida como democracia parlamentar65. Aliás, é realmente espantosa a maneira pela qual o pós-estruturalismo francês, ou, antes,sua caricatura, utiliza o pensamento de Adorno. Eu diria que há um verdadeiro sequestro de seu pensamento. Adorno não foi, de modo algum, anti-humanista, como pretendem alguns (estude-se, entre outras coisas, na obra de Adorno, os temas da emancipação e da reconciliação)66. Mas como Marx, ainda que de um modo distinto, ele também não era humanista. No interior de uma posição rigorosamente dialética, Adorno não foi nem humanista nem anti-humanista. Quanto a juntar Adorno com Zizek e Badiou… Se Adorno lesse algum deles, não tenho dúvida de qual seria seu julgamento: “Barbárie…”. – Mas Safatle é antes de tudo inimigo da “democracia parlamentar” (p. 51, 52, 53…). Em lugar dela,propõe o “plebiscito”. “O plebiscito é simplesmente a essência fundamental de toda vida democrática (…)” (p. 56). Plebiscito? Observemos que o plebiscito existe como instituição em muitas democracias (talvez na maioria delas), mas coexiste com instituições representativas. Safatle quer o plebiscito sem essas últimas. Quais as dificuldades – digo eu – em substituir o poder de câmaras e senado pelo plebiscito? Critica-se o plebiscito, como instituição exclusiva, por três razões: 1) ele, em geral, só permite um controle descontínuo do poder; 2) ele pode servir a poderes demagógicos ou totalitários; quem decide os termos do plebiscito? (Safatle diz que Hitler não submeteu a criação de campos de concentração a plebiscitos: é precisamente este o problema) e 3) O juízo popular pode errar e gravemente deixando-se levar por preconceitos (o próprio Safatle dá o exemplo do plebiscito antiminaretes na Suíça, poder-se-ia acrescentar: um plebiscito na França atual provavelmente restabeleceria a pena de morte). Na falta de controle parlamentar, os erros plebiscitários podem ter as piores consequências.Safatle pretende evitar esses inconvenientes (ou parte deles), propondo que os plebiscitos se façam no quadro de uma “democracia digital”, “que permita a implementação constante de mecanismos de consulta popular” (p. 52). Ou seja, em vez de câmara e senado, o poder, que não seria “nem o Executivo nem o Legislativo”, se exerceria através de uma manifestação constante do povo através da internet…Enfim, eu diria que, na melhor das hipóteses, ele quer uma versão eletrônica da democracia direta ateniense. Os problemas para a realização de um tal projeto aparecem já no texto de Safatle, quando ele discute as questões de governabilidade. Ele insiste em que teoria sobre governo não é teoria sobre poder. Mas se haveria governo, apesar do argumento rousseauísta, não vejo como não haveria também representação (ou ele está pensando na “ditadura revolucionária”? Porém, se é este o caso, porque falar de Allende etc.?). De qualquer modo, seu projeto, mesmo se pensável, fica no horizonte. Um horizonte mais ou menos distante. De imediato, o que temos é a liquidação da democracia parlamentar. Ora, essa leitura se impõe tanto mais – e é tanto mais inquietante – quando se pensa que os modelos principais do pensamento político de Safatle, são Zizek e Badiou. Ora, estes dois autores se declaram abertamente inimigos da democracia. Em mais de uma ocasião, declararam que o inimigo não é o capitalismo, mas a democracia… Ora, o que é que eles querem pôr no lugar da democracia? No caso de Badiou, o poder representado pela chamada revolução cultural chinesa que não foi avara em matéria de horrores (Badiou ressalva alguns “abusos”). Quanto a Zizek, ele não esconde seu entusiasmo (apesar de recuadas recentes bem pouco convincentes) pelo terrorismo revolucionário francês, ou pelo poder bolchevique, inclusive em suas fases mais terroristas. Safatle interpõe a esse esquema a “democracia digital”. Porém, no intervalo, prega o fim da democracia e comunga com o pensamento político de Zizek e Badiou… Afinal, poderíamos dizer, talvez um pouco ingenuamente, afinal quais são suas intenções? Sobre o entusiasmo de Safatle por esses dois autores, apesar de uma ressalva – Safatle não poderia quand même dizer amém ao apoio que dá Badiou à liquidação de Lavoisier (!)…– voltarei mais adiante. E voltarei ainda à questão da revolução. Mas, antes disso: uma outra tese essencial de Safatle é a crítica da política das “diferenças”. Sou obrigado a ser breve. Ele prega um “universalismo” puro e duro. Se em certo momento, justificou-se ocupar-se da luta das mulheres, dos negros ou dos homossexuais, falar agora disto (ou dar ênfase a isto, as duas coisas se confundem no livro de Safatle), seria fazer o jogo dos poderes que visam descentrar a luta de classes. Lamento ter sido obrigado a reduzir muito a última parte deste artigo, publicado neste número. Mas no parágrafo em que trato da atitude da esquerda clássica diante desses problemas, refiro-me, citando textos, à homofobia feroz de Engels –aparentemente, Marx não tinha outra posição –, à relativa indiferença da esquerda clássica diante da luta feminista etc. etc.,e aos problemas ecológicos. Safatle quer indiferença diante das diferenças. Isto numa situação em que a luta pelo respeito pelas diferenças de gênero, étnicas, ou de escolha sexual, está ainda longe de ter sido ganha. E, not least, em que a vida no planeta está à beira do abismo. Mas voltemos à questão das revoluções.Safatle me critica, numa – amistosa – referência direta, por tender “a criminalizar toda a extensão da história das revoluções” (p. 74, n.). Ora, não é nada disso. Não sou contra a revolução de 1848, nem contra a Comuna,nem contra a revolução russa de Fevereiro, nem contra as revoluções árabes, nem contra as revoluções “de veludo” no Leste, nem contra… Nem acho que “as revoluções tenham sido projetos, em sua essência, totalitários” (ib.). Nunca disse isso, nem poderia dizer. O problema (além do terror robespierrista, que não se confunde com o conjunto da Revolução Francesa) é o destino de certas revoluções, ou de certos movimentos considerados como tais, ou, mais especificamente, o do significado da chamada revolução de outubro. A esse respeito, remeto ao texto que publiquei em Fevereiro 2 e 3. A insurreição de Outubro é um problema para os historiadores, e a coisa urgente a fazer é estudá-la com minúcia crítica, como, desculpem, eu tentei fazer durante muitos anos (em geral, para espanto dos filósofos). Para os detalhes do resultado a que cheguei (com a maioria da crítica de esquerda contemporânea), remeto ao artigo. O essencial é saber que essa insurreição se insere na prática de um partido, o bolchevique, prática que havia sido discutida e muito criticada, principalmente por Luxemburgo e o jovem Trotski (Safatle leu esses autores?). Ora, o partido bolchevique não era “a Esquerda”, era uma tendência, tendência que, salvo talvez um momento, não foi majoritária no interior do proletariado, sem falar do conjunto das massas russas. Não vou voltar a discutir mais amplamente os números da insurreição, que põem em questão não só sua amplitude, mas seu próprio caráter de revolução – ou de revolução proletária. Digamos apenas: de Outubro, da chamada grande“revolução proletária”, devem ter participado,operários propriamente ditos ­– excluindo soldados e marinheiros, que aliás também não foram muito numeroso – não mais do que uns 10 mil em toda a Rússia, para um proletariado global de alguns milhões, algo como 0,005 do total. Em Fevereiro, tinham ido para a rua, só em Petersburgo, algumas centenas de milhares de operários. Os números não importam? É mais grave do que isto o fato de que a ela se seguiu quase imediatamente a constituição do primeiro modelo de polícia política, com as consequências que se pode prever. Lênin fez o que Safatle quer que se faça: fechou a Assembleia Constituinte, que fora livremente eleita em novembro e que, aliás, dera maioria absoluta à extrema-esquerda (mas não ao bolchevismo). Tudo isso se explicaria pela intervenção estrangeira, pela guerra civil etc.? Nada disso, a intervenção viria depois, e embora houvesse alguns pequenos focos de resistência, a guerra civil propriamente dita só começa no meio do ano. Lênin não tinha internet para pôr no lugar. Tinha os sovietes. Só que, depois de liquidar a Assembleia Constituinte, os bolcheviques, em seis meses, acabaram com toda a autonomia dos sovietes. Isso tudo tem alguma coisa a ver com a ditadura totalitária que surgiria alguns anos depois? A resposta (trotskista) clássica é que não. Mas nada nos leva a crer hoje nessa resposta. A ditadura leninista foi, sem dúvida diferente, da stalinista, mas há boas razões para acreditar que preparou o leito desta última. Resultado: é impossivel hipostasiar esse movimento como grande revolução. (Eu o “criminalizo?” Não usei o termo, mas o fechamento da Assembleia Constituinte, se Safatle faz questão do termo, foi mesmo um crime contra a nascente democracia russa, democracia de esquerda e de extrema-esquerda, é bom não esquecer). E aqui seria conveniente passar para a atitude geral de Safatle diante do chamado (muito imperfeitamente) “socialismo real”. Ele está pronto a admitir que houve erros, horrores etc. Mas, enfim, foi uma tentativa, e todo mundo sabe que a gente não acerta na primeira tentativa. É preciso tentar de novo. Essa filosofia malarmeana-vulgar, que pensa a história como um jogo de dados, Vladimir a herdou de Badiou. E, desculpem, ela é de uma pobreza consternante. Com ela, se diz que Stálin tentou, Mao tentou, Pol Pot tentou… Não deu certo. Vamos tentar de novo… Não, não vamos tentar de novo. Não foi “a Esquerda” que tentou, nem “a Revolução” que se manifestou,quem se manifestou, foi, no início, uma tendência da esquerda, numa jogada muito ambígua. Depois,mais importante, deu-se ainstauração de poderes totalitários que custaram milhões e milhões de mortos (só na Rússia, no início dos anos de 1930, uns 7 milhões), tudo isso em nome da esquerda. Ora, é preciso ter uma atitude um pouco mais séria em relação a esse fenômeno. Estudá-lo em sua essência e evitar que se repita. Não evitaremos a repetição da catástrofe, pela filosofia do “tentar de novo”, como se a história fosse um jogo de dados. Claro que Safatle fala em separar o que era válido do que não era, porém isso é muito pouco, dada a enormidade do que aconteceu e, de certo modo – China – e de uma forma muito sui generis ainda acontece. Essa atitude que consiste em recalcar o passado porque lembrá-lo como dizia de forma decepcionante uma amiga economista “enfraquece nossa posição” (sic!), é a pior de todas. Recalque o totalitarismo igualitarista, ele volta a galope. E no cavalo da direita, senão no da extrema-direita67.

Bem, devo terminar. Apesar de que o texto de Safatle tem alguns momentos felizes (no final principalmente, quando ele insiste na flexibilidade da política, e se abre às reformas, e também quando fala do lado melhor do indivíduo…), grosso modo, acho que só se pode fazer um balanço negativo dele. O problema não é ter coragem de dizer o nome da esquerda, em qual nome, já disse, se fez e se faz o pior. Trata-se de pensar criticamente o que é ou pode ser a esquerda. De uma forma ou de outra, o livro contém uma pregação antidemocrática (contra a democracia parlamentar, dirá Safatle, mas, em tempos modernos e contemporâneos, não há como separar uma coisa da outra) e defende um universalismo dogmático, tudo alimentado por uma filosofia inspirada pelo pós-estruturalismo francês, ou por sua caricatura. Falta-lhe uma dimensão propriamente histórica: um livro como este teria que refletir criticamente sobre a história da esquerda (a história do comunismo é reduzida a “tentativa trágica”, a história da social-democracia aparece, de um outro jeito, muito diferente: um pouco em seu pior lado, mas também um pouco no melhor, mas sem que o autor tente refletir mais profundamente sobre o conjunto de sua história, e, comparativamente, sobre a história dos dois, comunismo e social-democracia). No plano teórico, falta uma reflexão crítica sobre a herança dos pensadores de esquerda, principalmente Marx (Badiou não tem nada a dizer a respeito – como o próprio copain Zizek assinalou num momento de lucidez –; Zizek sabe e fala um pouco mais de Marx, mas para inseri-lo como elemento de sua “salada teórica”, a qual salada, é sob certos aspectos, ainda mais indigesta do que a de Badiou). Safatle tira de Marx uma leitura dos direitos do homem em termos de propriedade (esquecendo os direitos de expressão, de reunião etc.) no estilo muito infeliz de Sobre a Questão Judaica de Marx,texto brilhantemente criticado por… Lefort. Quanto ao tema do “homem novo”, retomado por Safatle, lembremos que ele foi “moda” nos anos de 1920 e 1930, tanto na extrema esquerda como na extrema direita, com os resultados que conhecemos68. Falta a Safatle como a seus modelos um mínimo de consciência das tendências à regressão histórica, queemergem frequentemente dos projetos escatológicos de “salto” no futuro. A filosofia dos Badiou, Zizek etc. desconhece as regressões: um pouco curiosamente tem também bastante de “progressismo vulgar”. – Paz ao “homem novo”. E quanto à relação para com o pensamento europeu. Houve época em que copiávamos muito os franceses. Mas nesse tempo, estávamos muito longe deles, ou eles estavam muito longe à nossa frente. Hoje, quando há sinais de decadência de – bem entendido – uma parte desse pensamento (Badiou e Zizek não se impuseram muito nos meios intelectuais franceses, porém penetraram mais do que deveriam), que intelectuais brasileiros de valor se decidam a ouvir acriticamente essas sereias, é propriamente lamentável. E mesmo as figuras mais sérias, a que se refere também Safatle, pelo menos quanto aos problemas em tela,não vão muito longe. Derrida, por exemplo, é o autor de um livro sobre Marx, saudado por certa crítica de extrema esquerda, que é superficial, puro fogo de artifício; um livro, que alguém com reais exigências de rigor,não teria coragem de assinar. Vladimir Safatle gasta boa cera – sua grande capacidade de trabalho e seu talento – com muito maus defuntos.O pior é constatar que a partir do que se fez aqui, tem-se– ou tinha-se – elementos para ir organizando algo como uma incipiente filosofia crítica instalada em terras sul-americanas. Isto com base no formidável poder crítico da dialética hegeliana, que foi bastante estudada nessas terras,e na riqueza da crítica marxiana da economia política (elemento essencial – parece que esqueceram – para entender Adorno). É fato que isso tudo se perdeu no ambiente acadêmico hipercompetitivo que reinou em certas universidades, ambiente que, de certo modo, liquidou nossas possibilidades críticas.

 

FIM

 

Fonte:https://revistafevereiro.com/pag.php?r=05&t=13