Maria Orlanda Pinassi: da democracia formal à democracia radical

Da democracia formal à radical

 

No dia 11 de julho está prevista uma grande manifestação dos setores organizados da população brasileira. Espera-se que a energia despendida neste importante ato da nossa história recente esteja para além das contingências e da defesa da institucionalidade. Espera-se que sua energia e sua experiência sejam transmitidas para as populações precarizadas, dispersas e desprotegidas que lutam solitárias pela sobrevivência. Espera-se, enfim, que esse 11 de julho seja o primeiro dia da consciência de que os limites do capital estão dados e da necessidade de se construir um projeto democrático radical que represente a tomada de controle popular sobre os rumos da sua própria história. 

08/07/2013

 

Maria Orlanda Pinassi

 

Há pouco mais de um mês, o governo Dilma parecia voar em céu de brigadeiro. Apresentava índices muito positivos de popularidade interna e forte reconhecimento internacional pelo até então bem sucedido modelo neodesenvolvimentista de desempenho econômico e estabilidade política.

Mas, as medidas compensatórias que, por mais de dez anos, mitigaram a pobreza mais absoluta do país, não conseguiram conter as consequências sociais devastadoras do padrão de ganância e acumulação escancarado pelas obras cada vez mais agressivas do PAC, da Copa, do flagelo social causado pelas remoções violentas, da truculência policial na periferia, do descaso e consequente colapso dos serviços públicos, sobretudo, dos transportes, saúde, educação, oferecidos à população de baixa renda. Sucatear para privatizar.

 

O pano caiu

Desde o início de junho, ingressamos no olho de um furacão que tende a se avolumar coma crise social estrutural que se agrava e devasta a vida em todo o sistema de reprodução do capital. No interior dela, somos mais um povo que se subleva, a exemplo de Chile, Portugal, Espanha, Grécia, Turquia. Mas, a partir de nossas particularidades, certamente tiraremos lições preciosas para todos os insurgentes do mundo que lutam contra as mesmas causas.

Nos últimos 30 dias, o Brasil vivencia um turbilhão formado por muitos milhares de insatisfeitos e inconformados com a degradação crescente das suas condições de vida e de trabalho, seja nas cidades, seja no campo.

As causas moventes das manifestações que se realizam em cada canto do território brasileiro são, a princípio, de ordem econômica. A população trabalhadora de todo o país, em que pesem as políticas de arremedo social que o Estado lhes destina, é diuturnamente atingida por precarizações e pauperizações no mais amplo sentido do termo.

Por essas razões, exponho minhas discordâncias com expressivos setores críticos da esquerda, muitos dos quais organizados em partidos, entidades de classe e movimentos sociais, que ora empenham seus mais vigorosos esforços na defesa incondicional da Reforma Política proposta pelo governo federal, numa evidente tentativa de combater a crise de poder político que enfrenta. Procuro compreender seus argumentos e as motivações fundamentadas nas ameaças, muito reais, que rondam as nossas capengas instituições democráticas. O reacionarismo, de fato,está sempre muito alerta no país. Será que essa é razão suficientemente forte para optar pelo eterno retorno da linha de menor resistência?

Na verdade, esse posicionamento parece retomar o equívoco de Hegel que, ao separar a instância econômica da política, encontra no Estado e no campo institucional as soluções para as contradições que se efetivam na sociedade civil. Nenhuma forma de Estado burguês, por mais democrática que seja, pode se comprometer a resolver os problemas sociais. Sua função é administrá-los e não erradicá-los. Há muito tempo, Marx tratou de desmistificar essa falsa separação e a ilusão de que a política liberal tem autonomia para conduzir as “distorções” da economia. Há muito tempo também comprovou a indisposição do Estado com as questões sociais que, por impossibilidade, passa a tratar como caso de polícia. A respeito da Inglaterra, por exemplo, diz que

A lição geral que a política inglesa tirou do pauperismo se limita ao fato de que, no curso do desenvolvimento, apesar das medidas administrativas, o pauperismo foi se configurando como uma instituição nacional [mas essa mesma] administração renunciou a estancar a fonte do pauperismo através de meios positivos; ela se contenta em abrir-lhe com ternura policial um buraco toda vez que ele transborda para a superfície do país oficial.[1]

O movimento articulado para defender a Reforma Política e salvaguardar o governo Dilma, nessa sua hora tão difícil, comunga de uma causa democrático-liberal essencialmente politicista e contingente. Não se pode esquecer, porém, que nos últimos dez anos, nenhum dos cinco pactos propostos[2] pela Reforma sequer foi aventado pelos governos petistas. Muito pelo contrário, assistimos a uma grande farra do capital em suas modalidades financeira, agroindustrial, mineradora, da construção civil.

Por outro lado, os golpes sobre os direitos conquistados pela classe trabalhadora foram especialmente duros, assim como foi constante a desregulamentação das reservas indígenas e quilombolas, a revisão dos códigos florestal e da mineração (em curso) e injustificada a desaparição de políticas para as reformas agrária e urbana.

Diante do quadro, uma carta em branco para o governo federal seria o mesmo que acumpliciar-se da provável continuidade dessas intervenções tão benéficas para o avanço do capital, no auge da sua crise civilizatória, e, por isso mesmo, tão nefastas para os setores populares do país. Pois, enquanto setores da esquerda se mobilizam por políticas hipotéticas, e pela preservação da democracia formal – que, convenhamos, jamais dispensou os préstimos da repressão policial -, a burguesia continua refestelando-se com a realidade dos incentivos fiscais, fundos de pensão e empréstimos do dinheiro público para suas obras destrutivas pelo BNDES.

A democracia mais legítima vem sendo ensaiada nas ruas e não no Parlamento.  As ruas substituem as urnas como lócus de um exercício político que, depois de muito tempo de discurso enfatizando o fim dos privilégios, das desigualdades e das classes sociais, recompõe a disputa ideológica que necessariamente se manifesta na luta de classes. As ruas se transformam numa imensa batalha campal de ideologias.

Duas formas de política se manifestam e antagonizam: a política pedagógica que disputa a hegemonia nas ruas e a política institucional. A primeira é impulsionada pela juventude do Movimento Passe Livre que, apesar da forte repressão e criminalização que sofreram os manifestantes na primeira semana, cresceu e ganhou reforço popular. Forças da “direita democrática” convocam um exército de delinquentes para intervir no processo e cooptar parte das insatisfações populares para o campo abstrato do lema anticorrupção. Sobejam aí indivíduos das classes médias e uma articulada “despolitização” das mobilizações, investida de muita violência, apologia das milícias armadas e intolerância contra a militância organizada em partidos de esquerda, centrais sindicais e movimentos sociais. Um processo que pode facilmente tomar a forma de uma fascistização da indignação. O que não seria nenhuma surpresa.

Mas, a luta nas ruas não é travada somente em frente ao MASP ou nas avenidas centrais das cidades brasileiras. A luta se intensifica, principalmente, nas periferias, onde se exige a instalação de uma infraestrutura básica; a luta se diversifica, muita vezes na forma de esculachos gigantescos, concentrando-se ao redor do Maracanã, da Rede Globo, da residência dos políticos facilitadores dos crimes cometidos pelas obras faraônicas do neodesenvolvimentismo. Índios se manifestam contra os massacres dos quais são alvo para construção das barragens, da exploração da mineração e do agronegócio. As Mães de Maio, movimento popular organizado que, desde 2006, é incansável na denúncia contra a criminalização e o extermínio de seus filhos pela polícia treinada para reprimir o pobre, tem particular destaque neste momento histórico.

No dia 11 de julho está prevista uma grande manifestação dos setores organizados da população brasileira. Espera-se que a energia despendida neste importante ato da nossa história recente esteja para além das contingências e da defesa da institucionalidade. Espera-se que sua energia e sua experiência sejam transmitidas para as populações precarizadas, dispersas e desprotegidas que lutam solitárias pela sobrevivência. Espera-se, enfim, que esse 11 de julho seja o primeiro dia da consciência de que os limites do capital estão dados e da necessidade de se construir um projeto democrático radical[3] que represente a tomada de controle popular sobre os rumos da sua própria história.

 

Itatiba, 06 de julho de 2013. 

 


[1] Karl Marx. Glosas críticas marginais ao artigo “O rei da Prússia e a reforma social”. De um prussiano. Expressão Popular. 

[2] Os cinco pactos: “Responsabilidade fiscal, reforma política, saúde, transporte e educação”.

[3] Florestan Fernandes.“Sobre as revoluções interrompidas” em Poder e contrapoder na América Latina. Zahar Editores, 1981.

Fonte: https://www.brasildefato.com.br/node/13496