Líbia, o caos e nós; de Santiago Alba

23/09/2011 12:57
 

200911_caos_libiabKaos En La Red - [Santiago Alba Rico, Tradução de Diário Liberdade] Um setor da esquerda ocidental incide nos interesses estrangeiros negando a espontaneidade da revolta e o caráter ditatorial de Kadafi, e esquecendo o que sua vitória haveria significado para a Primavera Árabe.


A intervenção da OTAN reavivou o debate e fraturou a esquerda em torno da rebelião na Líbia. Um setor da esquerda ocidental incide nos interesses estrangeiros negando a espontaneidade da revolta e o caráter ditatorial de Kadafi, e esquecendo o que sua vitória haveria significado para a Primavera Árabe.

Na última semana de agosto, após a entrada dos rebeldes em Trípoli, o mundo árabe estalou em um grito de alívio e júbilo. No Iêmen e na Síria as manifestações contra as ditaduras de Ali Abdullah Saleh e Bashar al-Assad multiplicaram seu número e intensidade ao calor desta vitória que todos os povos da região viveram como própria. Na Tunísia, no dia 22 e 23 de agosto, refugiados líbios e cidadãos tunesinos celebraram na capital, mas também em Sfax, Gabes e Jerba, a queda de Kadafi.

Os próprios partidos de esquerda se somaram à celebração. O Partido Comunista Operário da Tunísia, de Hama Hamami, um dos opositores mais perseguidos pelo regime de Ben Ali, difundia no dia 24 de agosto um comunicado no qual felicitava "o povo irmão da Líbia por sua vitória sobre o despótico e corrupto regime de Kadafi, confiando que agora o povo líbio possa decidir seu destino, recuperar suas liberdades e direitos e construir um sistema político baseado na soberania que lhe permita regenerar seu país, mobilizar suas riquezas a favor de todos os cidadãos e estabelecer profundas relações de irmandades com os povos vizinhos".

Nos últimos seis meses, em todas as capitais árabes onde as pessoas protestavam contra os ditadores locais, muitas vezes arriscando suas vidas, celebraram-se manifestações de solidariedade com o povo líbio; gostemos ou não, ainda sendo uma das zonas mais anti-imperialistas do mundo, não houve nenhum protesto contra a intervenção da OTAN.

Estes últimos meses tive às vezes a impressão de que enquanto a direita coloniza e bombardeia o mundo árabe, a esquerda (parte da esquerda europeia e latino-americana) lhe indica quando, como e de quem devem se liberar. Não vou entrar em uma polêmica muito belicosa que fraturou o campo anti-imperialista; só quero deixar constância de que o único lugar onde essa polêmica não existiu foi curiosamente onde se produziam os acontecimentos. Enquanto a esquerda ocidental se intercambiava bofetadas em torno da intervenção da OTAN, os povos árabes, acompanhados por uma esquerda regional à qual nem a Europa e nem a América Latina escutava, dedicavam-se e se dedicam a combater as ditaduras com meios e em condições que nenhuma análise marxista haveria previsto e provavelmente tampouco desejado. O caso é que tampouco as potências ocidentais haviam previsto nem desejado o ocorrido e o resultado de sua improvisação desleixada, tão hipócrita como diligente, é ainda uma incógnita.

Um dos erros da esquemática análise de um setor da esquerda ocidental (tão ocidental nisto como ocidentais são as bombas da OTAN) é o de chamar a atenção sobre os interesses euro-estadunidenses na Líbia, como se esses interesses não tivessem estado assegurados sob Kadafi e como se, em todo caso, de uma enumeração de interesses se desprendesse necessariamente uma intervenção. Não se intervém onde e quando se quer mas onde e quando se pode. Os interesses interessam, sem dúvida, mas não fazem possível uma intervenção militar.

No caso da Líbia, a meu juízo, são dois os fatores que tornaram possível.

O primeiro é que se tratava, como reconheceram em seguida os povos e as esquerdas árabes, de uma causa justa. A rebelião popular começada em Bengazi e abortada no bairro de Fashlum de Trípoli no dia 17 de fevereiro prolongava, com igual legitimidade e espontaneidade, as revoluções na Tunísia e no Egito. Escrevia Jean-Paul Sartre em 1972 que "o poder utiliza a verdade quando não há uma mentira melhor". Neste caso nenhuma mentira era melhor que a verdade mesma: "o monstruoso tirano Kadafi era um monstruoso tirano e os rebeldes líbios eram realmente rebeldes líbios. O Ocidente, ao converter a verdade em propaganda, a esquerda esquemática – muito distanciada ou com pouco conhecimento da zona – caiu na armadilha e se pôs a repetir ingenuamente, frente a ela, um montão de mentiras ou meias verdades, dando aos bombardeios uma causa justa e assumindo a ignomínia de defender uma injustiça.

O segundo fator tem a ver com o isolamento do regime de Kadafi. Afora a Nicarágua e a Venezuela, muito distanciados do cenário, os únicos amigos que tinha Kadafi eram alguns ditadores africanos e alguns imperialistas ocidentais. Abandonado por estes últimos, nenhum Estado com autoridade geoestratégica – nem a Liga Árabe nem a China e a Rússia – iam impor resistência à intervenção da OTAN. Ao contrário do que ocorre na Síria, um vespeiro de equilíbrios muito sensíveis no qual Bashar al-Assad vende em toda as direções a carta da estabilidade enquanto mata impunemente milhares de revolucionários sírios, Kadafi e seu regime não representava nada na região. Ao contrário, todos os interesses, também políticos, tornavam-no vulnerável: mais que o petróleo, entre os fatores desencadeantes da intervenção da OTAN há que incluir as pressões da Arábia Saudita sobre os Estados Unidos muito relutante e a oportunidade para a França de se represtigiar em seu "pátio traseiro", o norte da África, após o choque sofrido na Tunísia e no Egito, onde o apoio a Ben Ali e a Mubarak (com o escândalo das férias pagas de seus ministros) haviam deixado Sarkozy completamente fora de jogo.

O outro erro no qual incorreu um certo setor da esquerda tem a ver precisamente com seu esquematismo, ou melhor dizendo, com seu monismo. Os povos e as esquerdas árabes, colocando suas vidas sobre o terreno, compreenderam em seguida a impossibilidade de escapar à incomodidade analística se queriam derrotar seus ditadores. Souberam que havia que afirmar muitos fatos ao mesmo tempo, alguns contraditórios entre si. No caso da Líbia, esses cinco ou seis fatos são os que seguem: Kadafi é um ditador; a revolta líbia é popular, legítima e espontânea; a revolta é em seguida infiltrada por oportunistas, liberais pró-ocidentais e islamistas; a intervenção da OTAN nunca teve vocação humanitária; a intervenção da OTAN salvou vidas; a intervenção da OTAN provocou morte de civis; a intervenção da OTAN ameaça converter a Líbia em um protetorado ocidental.

O que fazemos com tudo isto? Podemos deixar de lado a realpolitik, acudir ao realismo e tratar de analisar a nova relação de forças no contexto de um mundo árabe em pleno processo de transformação. Ou podemos afirmar um só fato (monismo) e submeter todos os demais a suas chibatadas negacionistas. Assim, se só afirmamos a intervenção da OTAN, com seus crimes e ameaças, vemo-nos obrigados, por uma pêndulo lógico que nos distancia cada vez mais da realidade, negar o caráter ditatorial de Kadafi e afirmar, ainda mais, seu potencial emancipatório e anti-imperialista; negar o direito e espontaneidade da revolta líbia e afirmar, ainda mais, sua dependência mercenária de uma conspiração ocidental. O mal deste exercício de monismo é que deixa de fora os dados que mais importam aos povos e às esquerdas árabes e os que mais deveriam importar aos anti-imperialistas de todo o mundo: a injustiça de um tirano e a reclamação de justiça do povo líbio.

O monismo simplifica as coisas ali onde são muito – muito – complicadas. A OTAN mesma é consciente desta complexidade, como demonstra o fato de que – tal e como recorda Gilbert Achcar – bombardeou muito pouco a Líbia com o propósito de alongar a guerra e tratar de gerir uma derrota do regime sem verdadeira ruptura; é dizer, o contrário do que demanda o povo líbio. O conflito entre a OTAN e uma parte dos rebeldes é manifesto, como o é entre os rebeldes e a cúpula dirigente do Conselho Nacional de Transição.

Escutamos nos últimos dias as denúncias muito agressivas – dirigidas tanto aos Estados Unidos e à Inglaterra como Mustafa Abdul Jalil e Mahmud Jibril – de Abdelhakim Belhaj e Ismail Salabi, comandantes rebeldes vinculados ao islamismo militante. Como na Tunísia e no Egito, os islamistas estão bem organizados e tem força, mas não são os que iniciaram as revoltas. É muito triste ver como um certo setor da esquerda se une ao coro da guerra contra o terrorismo e a ameaça da al-Qaeda, precisamente quando as revoluções árabes mostram seu escassíssimo ascendente sobre a juventude árabe. Qualquer que seja ou tenha sido a relação entre al-Qaeda e o Grupo Combatente Muçulmano Líbio, as declarações públicas de seus líderes a favor de um Estado civil e uma verdadeira democracia, muito pouco críveis, demonstram um grande conhecimento da corrente que empurra nestes momentos a região.

Desde a esquerda teremos talvez que aceitar a ideia de que o mundo árabe inevitavelmente será governado pelo islamismo nos próximos anos – se se houvesse deixado governar há vinte anos atrás, hoje estariam se livrando deles –, mas a triunfal visita de Erdogan ao Egito, à Tunísia e à Líbia indica que esse islamismo não será aquele da jihad e dos atentados suicidas, como interessava à União Europeia e aos Estados Unidos, mas um islamismo democrático cujos limites, em t odo caso, revelarão-se também em seguida aos olhos de uma população juvenil excedente crescentemente integrada nas redes de informação global.

Como quer que seja, a esquerda, que carece de armas e dinheiro, só deveria se atrever falar depois de ter imaginado o que faria com elas se as tivesse. Haveria dado a Kadafi? Haveria dado aos rebeldes antecipando-se à OTAN? O que deve saber a esquerda ocidental é que, apoiando Kadafi, não apoia Chávez (contraponto democrático do tirano líbio, pese suas absurdas declarações) senão Aznar e Berlusconi e, ainda pior, Ben Ali e Mubarak.

A esquerda árabe, muito realista, sabe o que teria significado uma vitória de Kadafi para a Primavera Árabe ainda em curso. Não há que se esquecer que Kadafi apoiou o ditador tunesino após sua saída do país, ameaçou seu povo e tratou de desestabilizar suas novas instituições para restabelecer a família Trabelsi no poder até que – precisamente – a rebelião popular líbia do dia 17 de fevereiro frustrou seus planos. O sufocamento a sangue e fogo da revolta líbia colocaria em perigo as conquistas revolucionárias da Tunísia e do Egito, alentando uma repressão ainda maior no Iêmen e na Síria e congelado todos os protestos que são retomados no Marrocos, na Jordânia e no Barein. Não se pode – não se pode, não – estar a favor das revoluções árabes e de Kadafi ao mesmo tempo. Paradoxalmente, os que apoiam Kadafi apoiam sem se dar conta da ofensiva contrarrevolucionária da OTAN no norte da África.

Talvez prefiramos uma ordem ruim, conquanto que seja invencível, antes que uma desordem ambígua na qual existe alguma possibilidade de vencer, ainda que seja a longo prazo; talvez houvéssemos preferido que o vacilão do Mohamed Bouazizi não tivesse imolado incendiando toda a região; que os povos árabes não tivessem se levantado se não podiam ser marxistas e se afinal não vão servir para nada ou só para que governo o Islã ou para que um punhado de humilhados e ofendidos respiram um pouco. Mas não somos nós quem decidimos.

O certo é que os povos árabes, incluindo os líbios, decidiram se livrar das ditaduras mais duradouras do planeta, descongelando uma região do mundo petrificada desde a I Guerra Mundial e condenada a servir interesses alheios; e com essa decisão retornaram à corrente central da história.

Podemos nos deixar levar por nostalgias da guerra fria; podemos ver tranquilizadoras conspirações dos mesmos maus de sempre, poupando-nos assim um esforço de aproximamento de nossas afinidades sobre o terreno e de análise minuciosa dos novos atores que intervém no cenário global; podemos fazer discursos em lugar de fazer política; e repreender os árabes em vez de aprender com eles. Ou podemos nos solidarizar com os povos que nestes momentos estão tratando de terminar uma história ou de começar uma nova; com os que, como na Síria, no Iêmen, no Barein, tratam de sacudir o jugo de seus ditadores e com os que, como na Tunísia, no Egito e na Líbia, tem que tentar se livrar, a partir de agora, de distintas modalidades de intervenção estrangeira.

Traduzido para Diário Liberdade por Lucas Morais

Fonte: diarioliberdade.org