Imperialismo derrama sangue pelo petróleo líbio, artigo de José Arbex Jr.

24/10/2011 11:14

 

O ataque da Otan à Líbia produziu duas reações antagônicas e igualmente delirantes.

 

A primeira reação é a de apoio à operação militar, supostamente destinada a preservar a vida dos opositores do “sangrento ditador Muamar Kadafi”. Certo: é como se as tropas da Otan fossem integradas por uma legião de madres Teresas de Calcutá. Trata-se, aqui, de pura imbecilidade,  mau-caratismo ou desinformação (provavelmente, uma mistura dos três), pois qualquer pessoa minimamente informada sabe o que significa a ocupação de um país por tropas estrangeiras, especialmente no caso da Otan.  É só lembrar a primeira Guerra do Golfo (1991), quando pelo menos 150 mil iraquianos (a maioria formada por crianças, mulheres e civis) morreram na “guerra sem mortes”, operada com “armas de precisão cirúrgica”.

 

A outra reação, no extremo oposto, é a defesa do regime de Muamar Kadafi, em nome de uma suposta resistência anti-imperialista. Se (e aqui vai um grande “se”) o regime de Kadafi pôde, algum dia, ostentar com alguma credibilidade uma reivindicação desse tipo, isso foi enterrado há pelo menos uma década, quando o ditador líbio (dono de uma fortuna estimada em bilhões de dólares) começou a mostrar uma face mais “civilizada”. Em 2003, anunciou sua adesão à “guerra ao terror” promovida por George Bush junior, ganhando como prêmio a suspensão de sanções econômicas impostas pelos Estados Unidos contra a Líbia. Os produtores de petróleo dos Estados Unidos e Grã-Bretanha (BPExxonHalliburton,Chevron, Conoco e Marathon Oil) receberam carta branca para expandir as suas atividades no país, para não falar de empreiteiras brasileiras e turcas, além de outras empresas europeias. Além disso,  em 2005, as “irmãs” do petróleo juntaram-se a gigantes da indústria bélica, como Raytheon e Northrop Grumman, e a multinacionais como Dow Chemical e Fluor para formar a US-Libia Business Association. Haja anti-imperialismo!

 

Se o imperialismo decidiu romper a lua de mel com o Cauby Peixoto do Saara (sem pretender qualquer ofensa ao nosso grande cantor), isso se deve unicamente ao fato de que o regime de Kadafi, profundamente abalado pelos protestos estimulados pela “revolução árabe”, mostrou perigosos sinais de incapacidade de garantir o fluxo de exportação de petróleo. Em alguns dias, o volume exportado caiu para menos de 50% dos níveis normais. Como observa o economista canadense Michel Chossudovski: “Com 46,5 mil milhões de barris de reservas provadas (10 vezes as do Egito), a Líbia é a maior economia petrolífera no continente africano seguida pela Nigéria e Argélia. Em contraste, as reservas provadas dos Estados Unidos são da ordem dos 20,6 bilhões de barris (dezembro, 2008) de acordo com a Energy Information Administration. U.S. Crude Oil, Natural Gas, and Natural Gas Liquids Reserves. A Líbia está entre as maiores economias petrolíferas do mundo, com aproximadamente 3,5% das reservas globais do “ouro negro”.

 

Ainda segundo Chossudovsky, a operação da Otan (batizada com o nome "Odyssey Dawn", algo como “Alvorecer da Odisseia”)  tem como objetivo o controle direto das reservas de petróleo e gás da Líbia, sob o disfarce de uma intervenção humanitária. Até aí, tudo bem. Mas, para ele, a coisa vai muito além:

 

“A Operação faz parte de uma agenda militar mais vasta no Médio Oriente e na Ásia Central, a qual consiste em obter controle e propriedade corporativa sobre mais de 60 por cento das reservas mundiais de petróleo e gás natural, incluindo as rotas dos oleodutos e gasodutos. Uma operação militar desta dimensão e magnitude, envolvendo a participação ativa de vários membros da Otan e países parceiros, nunca é improvisada. A operação “Odyssey Dawn” estava em etapas avançadas de planejamento militar antes do movimento de protesto no Egito e na Tunísia. A opinião pública foi levada a acreditar que o movimento de protesto se propagou espontaneamente da Tunísia e do Egito à Líbia. A insurreição armada na Líbia Oriental é apoiada diretamente por potências estrangeiras. As forças rebeldes em Bengazi imediatamente arvoraram a bandeira vermelha, negra e verde com o crescente e a estrela: a bandeira da monarquia do rei Idris, o qual simbolizava o domínio das antigas potências coloniais.” 

 

A hipótese, baseada em muitas evidências concretas arroladas pelo economista, faz muito sentido, especialmente quando se considera que os principais redutos rebeldes estão situados justamente nas áreas mais ricas em petróleo. Desde a época do Império Romano, o país está dividido em três regiões distintas: a Cirenaica (leste), a Tripolitânia (noroeste), e Fezzan (sudoeste). O coração da rebelião é a Cirenaica, onde estão as principais tribos hostis ao ditador – Warfalhah e Zawiya. A oposição das tribos é um dado central da luta política na Líbia. A organização social do país se baseia nas 140 tribos e nos clãs familiares dessas regiões. Quando assumiu o poder por meio de um golpe que depôs o rei Idris, em 1969, Kadafi defendia uma forma confusa de panarabismo de estilo nasserista. Em nome dessa ideologia, tentou suprimir a divisão tribal. Em pouco tempo, contudo, se rendeu a ela. Kadafi ofereceu privilégios econômicos de um lado e manipulou rivalidades inter-tribais, de outro. Colocou grupos rivais no Exército e nas forças de segurança para se prevenir contra um golpe. As forças paramilitares, cerca de 10 mil homens bem armados e equipados, constituem o principal sustentáculo de seu poder.  

 

O imperialismo, segundo a hipótese levantada por Chossudovski, teve apenas que manipular as tensões entre as tribos. E há fortíssimas razões para a urgência da operação, apesar de todos os riscos que ela implica, especialmente após os grandes fiascos no Afeganistão e no Iraque.  Com a palavra, a insuspeita revista britânica The Economist, na primeira semana de março:

 

“O preço do petróleo tem demonstrado uma capacidade infalível de explodir a economia mundial, e o Oriente Médio, com frequência, fornece o seu detonador. O choque do petróleo de 1973, a Revolução Iraniana, em 1978-79 e a invasão do Kwait por Saddam Hussein, em 1990, são dolorosos lembretes de como a combinação regional de geopolítica e geologia pode provocar o caos. Com protestos surgindo na Arábia Saudita, o mundo caminha para um novo choque? Há boas razões para preocupação. O Oriente Médio e o norte da África produzem mais de um terço do petróleo mundial. As revoltas na Líbia mostram que a revolução pode rapidamente interromper o fornecimento (...). A produção na Líbia caiu pela metade, enquanto técnicos estrangeiros emigram e o país se esfacela.”

 

As chances de uma “explosão” econômica mundial são agravadas pelo quadro de crise financeira prolongada, iniciada em 2008 com a explosão da “bolha” especulativa nos Estados Unidos. Por razões óbvias, o súbito aumento do preço do barril do petróleo – que, em fevereiro, momentaneamente, chegou a saltar dos US$ 100 para algo em torno de US$ 120 – é péssima notícia para a economia planetária. Cálculos feitos por especialistas indicam que um aumento consistente de US$ 10 no preço do barril causa a redução de 0,25 ponto percentual no índice de crescimento econômico global. Pode parecer pouco, mas é um golpe gigantesco quando se trata de um período em que os mercados tentam se recuperar da crise financeira ainda em curso. O “primeiro choque” do petróleo levou o preço do barril (em valores ajustados à inflação), até perto de US$ 50, em 1975. O “segundo choque” produziu um salto até o recorde de US$ 110, em 1980. O recorde só foi ultrapassado às vésperas da crise financeira de 2008, quando o preço do barril aproximou-se de US$ 140. O temor atual é de que aquele teto histórico seja atingido novamente, ou mesmo ultrapassado.

 

E o maior “nó” vem agora: a Arábia Saudita, que possui cerca de 24% das reservas mensuradas de petróleo e é o maior exportador mundial do produto, tem capacidade técnica e reservas suficientes para compensar, por algum tempo, o fornecimento interrompido ou diminuído de outros países produtores, como a Líbia. A situação escaparia realmente ao controle se até mesmo a Arábia Saudita for engolfada pela revolução árabe. A hipótese não está descartada, especialmente após o envio de tropas sauditas para Bahrain, em meados de março. A monarquia saudita caminha na corda bamba: ela é obrigada a distribuir bilhões de dólares em “programas sociais de urgência”, para atenuar as tensões sociais, mas, sobretudo, ela tem que mostrar os músculos contra manifestantes muçulmanos, o que é muito complicado e perigoso, em se tratando de um regime que deriva grande parte de seu prestígio pelo fato de ser o guardião de Meca e dos locais mais sagrados do Islã.

 

Outro dado imprevisível é o comportamento dos “emergentes”, incluindo Brasil, Índia e China, onde o uso do petróleo é proporcionalmente muito mais elevado do que nos países industrializados. O PIB estadunidense, por exemplo, equivale a três vezes o chinês, mas os Estados Unidos utilizam apenas o dobro do petróleo consumido pela China. O “esfriamento” da economia chinesa, um dos grandes motores da recuperação econômica mundial, poderia provocar um efeito recessivo em cadeia. No Brasil, por outro lado, embora a Petrobrás tenha força suficiente apara atenuar, por algum tempo, os impactos da elevação dos preços dos combustíveis, seria inevitável o surgimento de uma pressão inflacionária, caso a crise se prolongue no Oriente Médio, principalmente no setor de transporte de carga e de produção de  insumos agrícolas, uma área estratégica da economia nacional.

 

Assim, o ataque da Otan à Líbia não pode ser creditado nem a madre Teresa de Calcutá, nem tem como vítima um suposto herói da resistência. Trata-se de uma imensa manobra militar do imperialismo de grandes consequências – mesmo que a hipótese de Chjossudovsky não venha a ser completamente comprovada -, que deve ser firmemente repudiada pelos povos do mundo e por todos os que se alinham com a luta contra o imperilismo. Isso não se identifica com a defesa de Muamar Kadafi. “Fora Otan e fora Kadafi!”, talvez fosse uma boa palavra de ordem para os manifestantes líbios. A tragédia é que não se vê no horizonte nenhuma força política com capacidade de unificar as tribos, organizar e liderar um combate que coloque no horizonte o direito do povo líbio à sua própria soberania.

 

O sangue que corre em terras líbias é a mais pura expressão da impotência diante da ofensiva imperial.

 

Fonte: carosamigos.terra.com.br