Esquerda brasileira e Governo Lula, de Golbery Lessa

20/10/2010 10:06

squerda Brasileira e Governo Lula

20h05, 19 de outubro de 2010

 
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Golbery Lessa

Golbery Lessa- especial para o blog

Só é possível entender a popularidade alcançada pelo segundo governo Lula tendo como referências as mudanças significativas que ocorreram na geopolítica do sistema capitalista nos últimos vinte anos.

Os grupos políticos à esquerda do PT, a maior parte oriunda do próprio partido, ficaram excessivamente focados na parte regressiva das mudanças sociais e políticas trazidas pela onda neoliberal, não dando a devida atenção a determinados deslocamentos de poder contrários ao antigo status quo.

Os deslocamentos de poder na relação entre os hemisférios Norte e Sul não são a essência da época neoliberal, mas não podem ser deixados de lado sem grandes prejuízos por quem deseja entender e atuar de maneira anticapitalista na realidade contemporânea. Como a esquerda alagoana atual tem sido culturalmente submissa à esquerda do Sudeste por décadas (submissão que chega à centro-esquerda, pois não é por acaso que temos um centro de convenções denominado “Ruth Cardoso” e não “Nise da Silveira”), tem repetido em suas análises e em sua prática o mesmo erro de não levar em conta as mudanças aludidas, com impactos muito negativos para a sua capacidade de influenciar a população.

Mesmo derrotado, o movimento dos estudantes chineses na Praça da Paz Celestial, em 1989, teve um impacto decisivo nos rumos do sistema capitalista nos anos 1990 e 2000.

Sem querer ter o mesmo fim do PC soviético, o PC chinês acelerou a abertura da portas para o capital estrangeiro que estava ávido por taxas de mais-valia mais altas, recursos naturais e novos mercados. Mesmo dividindo o seu poder econômico, a burocracia dita comunista continuou no domínio político e grande parte da economia segue sendo lastreada no modo de produzir camponês administrado pelo estado.

Apesar das grandes diferenças políticas existentes entre os países componentes do chamado grupo geopolítico BRIC, processos econômicos análogos ocorrem no Brasil, na Índia e na Rússia.

O segundo governo Lula foi catapultado por nova etapa do amadurecimento desse processo, dessa mudança nos fluxos econômicos e políticos do sistema. Uma fábrica da General Motos (GM) na cidade de Detroit paga cerca de oito vezes mais a um operário do que um unidade da mesma empresa no Brasil ou na China. Resultado. As mais modernas novas unidades da GM estão em solo brasileiro e no antigo Império do Centro, não nos EUA.

Com essa vantagem tecnológica, um carro da GM no Brasil é produzido três vezes mais rápido do que o mesmo carro no país de Henri Ford. Quando é preciso, o capital dança samba e aprende mandarim. A empresa aumenta o seu ganho com a mais-valia absoluta (pela diminuição dos custos com salário) e com a mais-valia relativa (pela não distribuição significativa dos ganhos de produtividade). E o trabalhador ainda fica contente, já que tem a garantia do emprego e pequenos ganhos salariais. O mundo parece, então, estar virando de ponta-cabeça. Isso já ocorreu no passado: em momentos do Antigo Sistema Colonial, a riqueza era majoritariamente produzida nas colônias tropicais e não nas metrópoles, fazendo com que o centro político e cultural não estivesse no mesmo lugar do centro produtor do sistema. Com a Revolução Industrial o fluxo se modificou: a riqueza passa a ser produzida no território dos países dominantes, mas isso começou a mudar nas últimas décadas do século XX.

Os capitais produtivos e especulativos internacionais inundaram o Brasil nos governos Lula. Os especulativos vieram atrás das altas taxas de juros pagas por todo governo capitalista para quem investe em seus papéis.

A dívida pública é, entre outras coisas, uma válvula para o sistema, uma ajuda estatal para manter a taxa de lucro média positiva e evitar a estagnação dos grandes capitais.

O dinheiro entregue pelo estado aos especuladores foi tirado do setor produtivo em crescimento constante (lembrem dos recordes seguidos de arrecadação) e com altas taxas de lucro, fruto do aumento da produtividade industrial e agrícola e das elevadas taxas de exploração dos trabalhadores e dos recursos naturais. Assim, sobraram dinheiro e mecanismos de financiamento para o governo alavancar programas de assistência, salários dos servidores públicos e obras de infra-estrutura.

Aumentaram as verbas para a política de reforma agrária, apareceram bilhões para o inteligente programa Bolsa Família e para o Benefício de Prestação Continuada, entre outros.

No último ano do segundo governo Lula, chegou-se ao ovo de Colombo no campo da habitação popular: garantida a alta produtividade da indústria da construção civil, pode-se usar os fundos públicos para derrubar o déficit habitacional em poucos anos sem provocar escassez de materiais ou o aumento dos seus preços.

Ou seja, muitas das, digamos assim, “positividades” (infinitamente mais positivas para o capital do que para os trabalhadores) econômicas e sociais dos governos Lula não foram derivadas de suas intenções, de suas singularidades. Contudo, o contato histórico de Lula com os movimentos sociais do campo, os militantes pelos direitos humanos, o movimento sindical dos servidores públicos e a banda socialmente progressista das igrejas, entre outros, foi importante para moderar o efeito regressivo da onda neoliberal. Os movimentos do campo não foram criminalizados, como ocorreu nos governos FHC.

Os servidores federais tiveram aumentos significativos e os concursos públicos foram multiplicados. O poder de compra do salário mínimo foi aumentado, fenômeno que tem atrás de si a elevação da produtividade da economia e a desvinculação dos aumentos do mínino do reajuste das pensões dos aposentados que ganham além dele. Por outro lado, e nisso aparece o caráter essencialmente neoliberal do governo, os aposentados foram abandonados em benefício dos preconceitos que o grande capital possui contra o sistema previdenciário. Os aposentados urbanos parecem ser os principais cabos eleitorais de José Serra. As articulações no Congresso Nacional foram tão corruptas e fisiologistas quanto nos governos anteriores, com impactos desastrosos para as políticas de saúde e educação, cooptadas pela chamada “base aliada”. Esse fisiologismo foi “necessário” para manter a governabilidade, ou seja, foi um erro absurdo do PT focar a estratégia política em eleger um presidente de centro-esquerda para governar com um Congresso de centro-direita. O caminho adequado seria o de conseguir a eleição de uma maioria de deputados e senadores de esquerda (e honesta) e, por meio dela, defender os interesses do povo diante de qualquer presidente. Desse modo, o fisiologismo deixaria de ser hegemônico.

A esquerda revolucionária que voltou a ganhar corpo institucional com a crise do primeiro governo Lula tem cometido dois erros básicos, entre outros: 1) não se livra dos defeitos ideológicos de origem do PT, principalmente o uso do furado conceito de “populismo” para explicar os anos Vargas e a trajetória do antigo PCB, e de outros conceitos equivocados inventados por grupos da USP e por FHC, como “autoritarismo” (para explicar a ditadura militar) e “teoria da dependência”; ou seja, a esquerda revolucionária saída do PT (o PSTU fez questão de deixar o “P” e o “T” em sua sigla, mas pode ter sido só coincidência) ainda não percebeu que foram as bases ideológicas do PT original que levaram o partido para governos fisiologistas com franjas sociais e que, portanto, é absurdo permanecer no mesmo caminho e buscar a ressurreição do “antigo e bom PT” com outro nome; 2) não leva em conta no seu discurso e na sua prática o efeito na população dos impactos sociais positivos da nova fase de acumulação capitalista (essencialmente neoliberal) e da franja social dos governos Lula, o que torna seu discurso irrealista e desnecessariamente distanciado da opinião média dos trabalhadores; pinta o demônio ainda mais feio do que é, como se isso fosse necessário ou produtivo, imaginando que da tese de que o sistema capitalista estaria em crise estrutural derivaria logicamente que o processo seria igual em todos os países e que as tendências à regressão social não conviveriam com tendências contrárias determinadas pela própria resistência dos trabalhadores.

Ao falar das alianças necessárias ao partido bolchevique, Trotsky dizia que uma pedrinha é uma pedrinha, no entanto um gigante pode tropeçar nela. A franja social e o respeito mínimo a movimentos sociais importantes nos governos essencialmente neoliberais de Lula não devem ser negligenciadas pela esquerda no segundo turno das eleições presidenciais de 2010. A volta da criminalização dos movimentos sociais do campo num eventual governo José Serra ou o retorno da onda de privatizações em massa não colaborariam em nada para o soerguimento da combalida esquerda brasileira, o voto em Dilma Roussef não seria um cheque em branco para o PT continuar a estarrecer os trabalhadores com o fisiologismo e a defesa do grande capital, seria um voto de prudência diante do aprofundamento de uma onda contra-revolucionária avassaladora.

 


 
 
 
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