Comuna republicana ou comuna operária?, Armando Boito Jr.

25/04/2011 17:42

Comuna republicana ou comuna operária?

 

 

 

Armando Boito Jr. (*)

 

 

 

A Comuna de Paris de 1871 foi o poder revolucionário que governou aquela cidade durante o curto período de 18 de março a 28 de maio. Apesar de ter durado apenas 72 dias, a Comuna é um episódio muito importante e discutido.

 

Diversos aspectos relativos ao episódio e às suas conseqüências têm grande interesse. Neste pequeno texto, iremos apresentar uma nota breve sobre a questão da natureza política e social da Comuna, tema que é, ao mesmo tempo, de ordem teórica, historiográfica e política. Essa discussão ganha especial interesse se recordarmos que, a partir da década de 1960, historiadores de língua inglesa e historiadores franceses procuraram desacreditar a tese segundo a qual a Comuna teria sido a primeira experiência de um poder operário.

 

Eco do século 18 ou prenúncio do século 20?

 

A tradição socialista apresentou a Comuna de Paris como o primeiro governo operário da História. Essa caracterização fora feita pelo próprio Karl Marx no calor dos acontecimentos, em textos reunidos posteriormente num livro que se tornou célebre, intitulado A Guerra Civil na França. Marx era teórico e dirigente da Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT), cuja seção francesa teve papel destacado na revolução e no governo da Comuna. Não se pode ignorar o fato de que a caracterização da Comuna como um governo operário tem conseqüências políticas. Nas ciências humanas, é possível ser objetivo, mas não é possível ser neutro. As conseqüências da tese de Marx são claras. Se a Comuna foi o primeiro governo operário, isso pode significar que, no final do século 19, a classe operária seria uma “classe social ascendente”, teria demonstrado ter condições de elaborar um programa político próprio, organizar-se em torno dele, e assumir o governo da então “capital política e cultura da europa”. É compreensível que essa análise viesse a receber boa acolhida no movimento socialista.

 

Deixando de lado a literatura panfletária, podemos afirmar que só um século depois, na década de 1960, começou a se desenvolver uma outra caracterização da Comuna. O historiador francês Jacques Roguerie, pesquisando os processos movidos pelas forças vitoriosas contra os communards sobreviventes, passou a sustentar a tese de que a revolução e o governo da Comuna teriam sido o último capítulo das revoluções burguesas dos séculos 18 e 19, e não o primeiro capítulo de um processo emergente de revolução operária. Essa tese empolgou o meio acadêmico; ela indicava o caminho para “desconstruir” o “mito socialista” da Comuna. Surgiu o debate: “Comuna-crepúsculo” ou “Comuna-aurora”? Negar a natureza operária da Comuna de Paris também tem conseqüências políticas, embora distintas, é claro, das conseqüências políticas da tese anterior. Essa negação significa diminuir, e muito, a presença política da classe operária na Europa do século 19 e lançar dúvidas sobre a capacidade política do operariado. Não há nada de estranho, portanto, no fato de a tese da “revolução-crepúsculo” ter sido muito bem aceita entre os liberais.

 

Estamos sugerindo que cada qual deve escolher, de acordo com suas preferências políticas, a tese que mais lhe convém? Seguramente esse não seria um bom procedimento para os historiadores e cientistas sociais. É necessário ter consciência das conseqüências políticas de cada tese em presença, dentre outras razões, para poder controlar os efeitos de nossas preferências políticas na discussão de um tema que é historiográfico. Pois bem, nós entendemos que a Comuna de Paris foi sim a primeira experiência de um governo operário e, como tal, uma “revolução-aurora”, anunciadora do movimento operário e das revoluções que iriam mudar a história dos século 20. Por que pensamos assim? Por que consideramos que a análise de Marx resistiu à pesquisa historiográfica contemporânea?

 

Insurreição e governo operário

 

Os homens e mulheres que fizeram a Comuna de Paris eram de extração social operária e vinham se organizando em torno de idéias que tendiam ao socialismo.

Os trabalhadores de Paris da década de 1870 não podem ser assimilados aos artesãos, lojistas e companheiros que compunham o movimento sans-culottes da grande Revolução Francesa de 1789. Dois terços da população economicamente ativa da cidade eram compostos de assalariados e mais da metade dessa mesma população trabalhava na indústria. Grande parte desses assalariados trabalhava em pequenas empresas, mas um contingente significativo já era o típico trabalhador assalariado moderno produzido pela revolução industrial – a construção civil e a metalurgia cresceram muito sob o 2º Império e funcionavam em padrões capitalistas modernos para a época.

 

Em 1870, a classe operária parisiense já possuía organizações de massa e idéias próprias. Estava organizada sindicalmente na Federação das Associações Operárias de Paris, que reunia, então, cerca de 40 mil membros. Essa massa realizou grandes greves nos anos de 1868, 1869 e 1870. A greve é um método de luta que, por definição, não pode ser usado pelos pequenos proprietários ou pela “plebe urbana”. Ademais, essa massa operária teve, no ocaso do 2º Império, a sua “escola de socialismo”.

 

Os historiadores Alain Dalotel, Alain Faure e Jean-Claude Freiermuth, no trabalho conjunto Aux origines de la Commune - le mouvement des réunions publiques à Paris 1868-1870, usando uma documentação inédita formada por copiosos relatórios policiais, fizeram um estudo importante e detalhado das reuniões públicas do período de crise do regime político imperial. Esse estudo mostra que a oposição operária e popular ao 2º Império já era forte antes do desastre da Guerra Franco-Prussiana de 1870. Mostra também que o conteúdo político e ideológico dessa oposição iam muito além do republicanismo democrático-burguês. A igualdade sócio-econômica, a eliminação da propriedade privada dos meios de produção, a instauração da propriedade coletiva e o uso da ação revolucionária para alcançar esses objetivos eram temas dominantes nos salões de reuniões dos bairros populares de Paris. Vê-se que se trata de um programa coletivista, que deixou para trás o igualitarismo de pequeno proprietário (= dividir a propriedade privada) típico dos sans-culottes do século 18. Esses salões de reuniões públicas iriam, logo após a queda do 2º Império, em setembro de 1870, dar origem aos clubes operários e populares, que formariam uma rede de organizações de massa dos trabalhadores de Paris. Foi essa massa operária que fez a revolução de 1871.

 

O perfil sócio-econômico dos dirigentes de organismos de base da Comuna, dos militantes e dos combatentes prova a afirmação acima. A presença do trabalhador manual é amplamente majoritária, sendo que os novos setores tipicamente operários (construção civil, metalurgia, diaristas sem especialização) têm uma presença bem superior ao seu peso na população ativa de Paris. Foram presos pelas tropas de Versalhes mais de 35 mil parisienses que participaram da Comuna. Dentre esses, mais de 5 mil eram operários da construção civil, mais de 4 mil diaristas sem especialização, outros 4 mil operários metalúrgicos e milhares de outros eram operários de diferentes setores econômicos. Ao todo, cerca de 90% dos prisioneiros eram de origem operária e popular. Chama atenção a participação dos trabalhadores que compunham o moderno operariado de então. Os operários da construção civil, metalúrgicos e diaristas sem especialização representam 39% dos prisioneiros e 45% do contingente de condenados à deportação. Esse levantamento foi feito pelo próprio Rougerie, o historiador que iniciara a “desconstrução” do “mito socialista” da Comuna, quinze anos após ter lançado seu primeiro livro sobre o tema. Após essa nova pesquisa, ele reviu, sem o dizer, sua análise anterior da Comuna. Afirmou, após o exame dos dados, que a Comuna foi a “revolução da Paris do trabalho” (Jacques Rougerie, La Comunne de 1871, Paris, PUF, 1997, pág.102).

 

Além da predominância nas organizações de massa e nos combates da Comuna, os operários parisienses tiveram um papel de destaque na insurreição e no governo de Paris.

 

O órgão que comandou a insurreição de 18 de março de 1871, dando origem à Comuna, foi o Comitê Central da Guarda Nacional. Era composto por 38 delegados eleitos nos bairros de Paris, sendo 21 operários; cerca de 20 deles filiados à seção francesa da AIT e às Câmaras Sindicais de Paris. O órgão político maior da Comuna, o Conselho da Comuna, eleito em 26 de março, oito dias após a insurreição, também era composto por uma maioria de operários e de filiados à AIT e às Câmaras Sindicais. Esse Conselho contava, nominalmente, com 79 membros, dos quais apenas cerca de 50 compareciam às sessões. Nada menos que 33 dos conselheiros eleitos eram operários; o restante eram intelectuais, pequenos proprietários e profissionais liberais. Roguerie, na obra citada mais acima, calcula que a maioria do Conselho – cerca de 40 dos membros – pertencia à AIT e às Câmaras Sindicais. Era um conselho de trabalhadores. Ao lado dele, a assembléia eleita pelos habitantes de Paris operava o “braço executivo” da revolução, as “comissões ministeriais”. Nesse organismo, a componente proletária, se não domina como nos demais, pelo menos é marcante. Logo abaixo das “comissões ministeriais”, estão os grandes serviços públicos e de infraestrutura, onde os operários de Paris também tiveram atuação destacada.

 

Um governo socialista?

 

Podemos afirmar, portanto, que a composição social dos combatentes de base e dos dirigentes da Comuna de Paris foi marcadamente operária. Não eram apenas operários. Os profissionais liberais, pequenos proprietários, lojistas e artesãos, que eram muito numerosos na população de Paris, tiveram, como indicamos de passagem, participação importante nos órgãos de governo da Comuna. Aliás, Marx fala em “governo essencialmente operário” e não em governo operário sem mais. Continuando. Pelos dados apresentados, também é legítimo dizer que os operários estavam forjando uma concepção de mundo anticapitalista na conjuntura da crise do 2º Império e se valendo da extraordinária experiência revolucionária dos trabalhadores de Paris. Essas duas constatações são fundamentais, tendo em vista a operação de “desconstrução” do “mito socialista” da Comuna. Mas elas não encerram a questão. Pois resta saber o que foi a política implementada pela Comuna. Ela foi simplesmente uma política republicana burguesa? Uma política de reformas sociais? Uma política socialista?

 

Os communards lutaram pela “república social”, tomaram diversas medidas de proteção ao trabalho e à população pobre, mas só uma que prenunciava uma economia de tipo socialista: decretaram que toda fábrica abandonada pelo proprietário - fenômeno comum em tempo de revolução – ficaria sob controle dos seus operários. Mas isso é pouco para afirmar que o governo da Comuna foi socialista. O grande historiador Ernest Labrousse insistiu, num debate entre os historiadores franceses por ocasião do centenário da Comuna, num ponto importante: nenhum documento da Comuna apresenta o socialismo como objetivo de governo (Ver “Historiadores franceses debatem a Comuna de Paris”, dossiê publicado em Crítica Marxista, 2001, n. 13). Marx, cuja tese sobre a natureza operária da Comuna é o motivo de toda essa discussão historiográfica, escrevendo cerca de dez anos após a Comuna, observou, em carta a um correspondente, que a maioria dos dirigentes não era socialista. Alguns autores afirmam que Marx estaria, nessa observação, revendo a análise que fizera no já citado Guerra Civil na França, obra que teria sido escrita num momento de entusiasmo e com objetivos políticos. Nós pensamos que não se trata disso. Marx afirmou em Guerra Civil na França que a Comuna foi a primeira experiência de um governo operário, mas não disse que ela foi um governo socialista. Isso ela não foi – e dificilmente poderia sê-lo.

 

Não se pode perder de vista um fato elementar: o objetivo imediato da Comuna foi depor um governo considerado de traição nacional. Por temor ao proletariado de Paris, esse governo aceitara uma paz forçada com a Prússia, paz que restringia a soberania da França e mutilava o seu território. A Comuna tinha pela frente, então, uma tarefa nacional e democrática, que é tarefa típica das revoluções burguesas. Ademais, outras tarefas burguesas contidas como promessa na Revolução de 1789 não tinham sido cumpridas. Exemplos mais importantes são a separação da Igreja e do Estado e a implantação do ensino público, gratuito, obrigatório e laico. O desenvolvimento do princípio da cidadania, criatura típica da revolução burguesa, depende da implementação de medidas como essas. A Comuna tratou de realizar essas duas tarefas. Em resumo, a Comuna tinha de levar adiante as transformações burguesas inacabadas para, como disse Engels, “aplainar o terreno” para a transformação socialista da velha sociedade. Para essa tarefa foi possível contar com grande parte da pequena burguesia de Paris, dos artistas, dos profissionais liberais e de alguns setores radicalizados do republicanismo burguês. É por isso que, quando Marx apresenta sua caracterização da Comuna, ele usa a expressão um “governo essencialmente operário”, indicando a existência de uma frente popular dominantemente operária no governo da Comuna.

 

Mas há um componente socialista presente na política da Comuna que é menosprezada pelos historiadores, inclusive pelos historiadores socialistas. Isso não decorre da ignorância dos fatos históricos, mas da concepção economicista de socialismo que ainda vigora entre os analistas. Refiro-me ao tipo de democracia que a Comuna estabeleceu: mandato imperativo, revogável pelos eleitores, eleição para os cargos administrativos do Estado, transferência de tarefas do Estado para a população trabalhadora organizada, dissolução do Exército permanente e criação de uma milícia operária, salário dos funcionários públicos igual ao salário médio dos operários (a Comuna foi o “governo mais barato” da história) etc. Essa democracia de tipo novo, que combina democracia representativa com democracia direta, representa o início de um processo de extinção do aparelho de Estado, enquanto aparelho especial colocado acima da sociedade. Ou seja, essa política representa uma socialização do poder político. Pois bem, esse elemento é parte integrante e imprescindível do socialismo, do mesmo modo que a socialização dos meios de produção. A política da Comuna para a organização do poder era uma política socialista, embora seus dirigentes não o tivessem declarado e muitos deles, talvez, não tivessem consciência desse fato.

 

Vejamos como Marx resume sua tese sobre a Comuna de Paris no livro ‘Guerra Civil na França’:

 

“A Comuna era, essencialmente, um governo da classe operária, fruto da luta da classe produtora contra a classe apropriadora, a forma política enfim descoberta para levar adiante, dentro de si própria, a emancipação econômica do trabalho. (....) A dominação política dos produtores é incompatível com a perpetuação de sua escravidão social. Portanto, a Comuna teria de servir de alavanca para extirpar o cimento econômico sobre o qual descansa a existência das classes e, por conseguinte, a dominação de classe.”

 

No texto acima observa-se que se trata de uma forma política que traz “dentro de si própria” a “emancipação econômica do trabalho”. Ou seja, a socialização do poder induz a socialização dos meios de produção. Com o movimento operário exercendo democraticamente o poder (mandato imperativo, dissolução do exército permanente etc.) pode-se afirmar que se cria um desajuste – ou desequilíbrio, ou contradição – entre o poder socializado, de um lado, e a economia capitalista baseada na propriedade privada, de outro. Retomando os termos de Marx, a “dominação política dos trabalhadores” é “incompatível” com sua “escravidão social”. Daí ser possível fundamentar teoricamente a análise prospectiva que se segue no raciocínio de Marx: a Comuna (realidade política) “teria de servir” (tempo futuro) de “alavanca” para a eliminação da exploração de classe (realidade econômica).

 

É por isso, e apenas por isso, que é correto repetir, 130 anos depois, a idéia de Marx, segundo a qual a Comuna de Paris, embora não fosse socialista, continha, por ser um governo operário, “em si mesma” o socialismo. Foi só isso que Marx afirmou. E, visto os debates que essa afirmação ensejou, podemos dizer que só isso já foi afirmar muito.

 

 

 

 

 

(*) Armando Boito Jr. é professor de Ciência Política do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, em Campinas, fundador do seu Centro de Estudos Marxistas (Cemarx) e editor da revista ‘Crítica Marxista’. Entre as suas obras publicadas contam-se ‘O Golpe de 1954: a burguesia contra o populismo’ (Editora Brasiliense), ‘O sindicalismo de Estado no Brasil - uma análise crítica da estrurtura sindical’ (Editoras Hucitec e Unicamp), ‘Política neoliberal e sindicalismo no Brasil’ (Editora Xamã), ‘O Sindicalismo na política brasileira’ (Editora IFCH-Unicamp) e ‘Estado, política e classes sociais’ (Editora da Unesp). É também organizador de diversos volumes coleticos, entre os quais ‘A Comuna de Paris na história’, São Paulo, Editora Xamã, 2001. Este texto é uma versão ligeiramente modificada de um artigo publicado na revista Debate Sindical por ocasião dos 130 anos da Comuna de Paris.

 

 

 

Bibliografia citada

 

Alain Dalotel, Alain Faure e Jean-Claude Freiermuth, no trabalho conjunto Aux origines de la Commune - le mouvement des réunions publiques à Paris 1868-1870. Paris, Editions François Maspero.

 

Jacques Rougerie, La Comunne de 1871, Paris, PUF, 1997.

 

Jacques Rougerie, Albert Soboul, Ernest Labrousse e outros “Historiadores franceses debatem a Comuna de Paris”, dossiê publicado em Crítica Marxista, n. 13.

 

Karl Marx, Guerra civil na França.