Clássico: "O Socialismo e as igrejas", de Rosa Luxemburgo

11/03/2011 15:48

O SOCIALISMO E AS IGREJAS: O COMUNISMO DOS PRIMEIROS CRISTÃOS (*) 

 

Rosa Luxemburgo

 

 CAPÍTULO I

 

Desde o momento em que os trabalhadores da Polônia e da Rússia começaram a lutar corajosamente contra o governo czarista e contra os exploradores capitalistas, notamos cada vez com mais freqüência que os padres, nos seus sermões, se lançam contra esses trabalhadores que lutam. É com extraordinário vigor que o clero combate os socialistas e tenta, por todos os meios, minimizá-los aos olhos dos trabalhadores. Os crentes que vão à igreja, aos domingos e dias festivos, são compelidos, cada vez mais a ouvirem um violento discurso político, uma verdadeira denúncia do Socialismo, em vez de ouvirem um sermão e nele obterem consolação religiosa. Em vez de confortarem as pessoas, que estão cheias de preocupações, e cansadas pela vida difícil, e que vão à igreja com fé no Cristianismo, os padres fulminam os trabalhadores que estão em greve e os opositores do Governo; e ainda mais, exortam-nos a suportar a pobreza e a opressão com humildade e paciência. Transformaram a igreja e o púlpito num lugar de propaganda política.

Os trabalhadores podem convencer-se facilmente que a luta do clero contra os sociais-democratas não é de modo algum provocada por estes. Os sociais-democratas propõem-se, como objetivo, unirem-se e organizarem os trabalhadores na luta contra o capital, isto é, contra os exploradores que lhes sugam a última gota de sangue, e na luta contra o governo czarista que impede a libertação do povo. Mas nunca os sociais-democratas conduzem os trabalhadores para a luta contra o clero ou tentam interferir com as crenças religiosas; de modo algum! Os sociais-democratas, de todo o mundo e da própria Polônia, consideram a consciência e as opiniões pessoais como sendo sagradas. Todo o homem pode ter aquela fé e aquelas opiniões que lhe pareçam capazes de assegurar a felicidade. Ninguém tem o direito de perseguir ou atacar a opinião religiosa particular dos outros. Isto é o que os socialistas pensam. E é por esta razão, entre outras, que os socialistas estimulam o povo a lutar contra o regime czarista, que está continuamente violentando a consciência das pessoas, perseguindo católicos, católicos russos (1), judeus, heréticos e livres-pensadores. São precisamente os sociais-democratas que aparecem mais fortemente em defesa da liberdade de consciência. Portanto, pareceria que o clero tinha obrigação de dar sua ajuda aos sociais-democratas que tentam aliviar o povo oprimido. Se entendermos devidamente os ensinamentos que os socialistas trazem à classe trabalhadora, o ódio do clero contra eles torna-se ainda menos compreensível. 

Os sociais-democratas propõem-se pôr fim à exploração do povo pelos ricos. Pensar-se-ia que os servidores da Igreja deveriam ter sido os primeiros no desempenho desta tarefa, mais do que os sociais-democratas. Não é Jesus Cristo (de quem os padres são servidores) quem ensina que "é mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no Reino dos Céus"? Os sociais-democratas tentam trazer a todos os países, regimes sociais baseados na igualdade, liberdade e fraternidade de todos os cidadãos. Se o clero realmente deseja que o princípio "Ama o teu próximo como a ti mesmo" seja aplicado na vida real, por que é que não recebe bem e com entusiasmo a propaganda dos sociais-democratas? Os sociais-democratas tentam, através de luta desesperada e da educação e organização do povo, subtraí-lo à opressão em que se encontra e oferecer-lhe melhor futuro para os filhos. Todos devem admitir que, neste ponto, o clero deveria abençoar os sociais-democratas, pois não é aquele que eles servem, Jesus Cristo, que diz que "o que fizeres aos pobres é a mim que o fazeis"?

Contudo vemos o clero, por um lado, excomungando e perseguindo os sociais-democratas e, por outro, mandando os trabalhadores sofrer com paciência, isto é, deixando-os pacientemente ser explorados pelos capitalistas. O clero atira-se violentamente contra os sociais-democratas, exorta os trabalhadores a não se revoltarem contra os dominadores, mas a submeter-se obedientemente à opressão deste governo que mata o povo indefeso, que manda para a monstruosa carnificina da guerra milhões de trabalhadores, que persegue católicos, católicos russos e "Velhos Crentes" (2). Assim, o clero, que se torna o porta-voz dos ricos, o defensor da exploração e opressão, põe-se a si próprio em flagrante contradição com a doutrina cristã. Os bispos e os padres não são os propagadores dos ensinamentos cristãos, mas os adoradores do "Bezerro de Ouro" e do azorrague que chicoteia os pobres e indefesos. 

Além disso, todos sabem que os próprios padres tiram proveito do trabalhador, extraem-lhe dinheiro por ocasião do batismo, casamento e funeral. Quantas vezes tem acontecido que o padre, chamado à cabeceira da cama de um doente para administrar os últimos sacramentos, se recusa a ir lá antes de lhe serem pagos os seus honorários?  O trabalhador vai, desesperado, vender ou hipotecar os seus últimos bens para ser capaz de dar uma consolação religiosa a seu parente. 

É verdade que encontramos clérigos de outra espécie. Existem alguns que estão cheios de bondade e misericórdia e que não procuram lucros; estes estão sempre prontos a ajudar os pobres. Mas devemos admitir que são, sem dúvida, raros e que podem ser olhados da mesma maneira que melros brancos. A maior parte dos padres, de faces rosadas, curvam-se e saúdam cortesmente os ricos e os poderosos, perdoando-lhes silenciosamente toda a depravação e toda a iniqüidade. Para com os trabalhadores, o clero comporta-se de maneira bem diferente: pensa apenas em espezinhá-los sem piedade; em sermões ríspidos condenam a cobiça dos trabalhadores quando estes nada mais fazem do que defender-se contra os erros do capitalismo. A espantosa contradição entre as ações do clero e os ensinamentos do Cristianismo deve levar-nos a refletir. Os trabalhadores espantam-se de como na luta de sua classe pela emancipação vão encontrar nos servidores da Igreja inimigos e não aliados. Como é que a Igreja desempenha o papel de defesa da opressão rica e sangrenta, em vez de ser o refúgio dos explorados? Para entender este fenômeno estranho, basta lançar os olhos sobre a história da Igreja e examinar a evolução pela qual ela passou ao longo dos séculos.

 

CAPÍTULO II

 

Os sociais-democratas desejam pôr em execução o estado de Comunismo; é principalmente isso o que o clero tem contra eles.Em primeiro lugar, é chocante notar que os padres de hoje, que combatem o Comunismo, condenam, na realidade, os primeiros apóstolos cristãos. Estes não passaram, de fato, de ardentes comunistas. 

A religião cristã desenvolveu-se, como é bem conhecido, na Roma antiga, no período do declínio do Império, que fora, antes, rico e poderoso, compreendendo os países que hoje são a Itália e a Espanha, parte da França, parte da Turquia, a Palestina e outros territórios. O estado de Roma, por altura do nascimento de Jesus Cristo, parecia-se muito com o da Rússia czarista. Por um lado, ali vivia um punhado de gente rica, gozando a luxúria e todos os prazeres; por outro, uma enorme massa de pobres apodrecia na pobreza; sobretudo um governo despótico, assente na violência e na corrupção, exercia uma vil opressão. Todo o Império Romano foi mergulhado em completa desordem e cercado por ameaçadores inimigos: a soldadesca desenfreada, no poder, praticava as suas crueldades sobre a população desgraçada; a província estava deserta, a terra jazia abandonada; as cidades, especialmente Roma, a capital, estava cheia de uma pobreza chocante que erguia os olhos carregados de ódio para os palácios dos ricos; o povo estava sem pão, sem abrigo, sem vestuário, sem esperança e sem possibilidade de sair de sua pobreza.

Há apenas uma diferença entre Roma na sua decadência e o Império dos czares: Roma nada sabia de capitalismo; não existia ali a indústria pesada. Naquele tempo, a escravatura estava na ordem de coisas aceitas em Roma. As famílias nobres, os ricos e os financistas satisfaziam todas as suas necessidades explorando os escravos com que a guerra os tinha abastecido. Com o passar do tempo, estas pessoas ricas tinham se apoderado de quase todas as províncias da Itália, expoliando os camponeses de sua terra. Como se apropriavam de cereais em todas as províncias conquistadas, como tributo sem custo, davam-se ao luxo de abandonar, nos seus próprios estados, plantações magníficas, vinhas, pastagens, pomares e ricos jardins, cultivados por exércitos de escravos que trabalhavam debaixo do chicote do capataz. Assim, formou-se em Roma um exército numeroso dos que nada possuíam - o proletariado (3) - não tendo mesmo a possibilidade de vender a força de seu trabalho. Este proletariado, vindo do campo, não podia, portanto, ser absorvido pelas empresas industriais como acontece hoje; tornaram-se vítimas da pobreza desesperada e foram reduzidos à mendicância. Esta numerosa massa popular, morrendo de fome, sem trabalho, enchendo os subúrbios, os espaços livres e as ruas de Roma, constituía um perigo permanente para o governo e para as classes dominantes. Portanto, o governo sentiu-se compelido, por interesse próprio, a aliviar a pobreza. Periodicamente distribuía ao proletariado cereais e gêneros alimentícios armazenados nos celeiros do Estado. E mais, para fazer o povo esquecer as suas amarguras, oferecia-lhe espetáculos gratuitos de circo. Ao contrário do proletariado do nosso tempo, que mantém toda a sociedade pelo seu trabalho, o enorme proletariado de Roma existia pela caridade. 

Eram os escravos miseráveis, tratados como bestas, que trabalhavam para a sociedade romana. Neste caos de pobreza e degradação, um punhado de magnatas romanos passava o seu tempo em orgias e devassidão. Não havia possibilidade de sair destas monstruosas condições sociais. O proletariado queixava-se e ameaçava; de vez em quando revoltava-se, mas uma classe de mendigos, vivendo das migalhas caídas da mesa dos senhores, não podia estabelecer uma nova ordem social. Além disso, os escravos mantinham com seu trabalho toda a sociedade, estavam muito espezinhados, bastante dispersos, demasiado esmagados pelo jugo, tratados como bestas e vivendo bastante isolados das outras classes para serem capazes de transformar a sociedade. Revoltaram-se muitas vezes contra seus patrões, tentaram libertar-se em batalhas sangrentas, sendo dizimados pelo exército romano, que os massacrava aos milhares e os condenava à morte na cruz. 

Nesta sociedade que desmoronava, onde não existia saída desta trágica situação para o povo, nem esperança alguma de uma vida melhor, os desgraçados voltavam-se para o Céu procurando nele a salvação. A religião cristã aparecia a estes infelizes seres como uma tábua de salvação, um consolo e um encorajamento e tornou-se logo, desde o princípio, a religião dos proletários romanos. Em conformidade com a posição material dos homens pertencentes a esta classe, os primeiros cristãos fizeram a proposta da propriedade em comum - comunismo. O que é que poderia ser mais natural? As pessoas careciam de meios de subsistência e estavam morrendo de pobreza. Uma religião que defendia o povo pedia que os ricos partilhassem com os pobres as riquezas que devem pertencer a todos e não a um punhado de pessoas privilegiadas; uma religião que pregava a igualdade de todos os homens teria grande sucesso. Contudo, isto nada tem de comum com as propostas atuais dos sociais-democratas, com vistas à transformação em propriedade comum dos instrumentos de trabalho, dos meios de produção, para que toda a humanidade possa trabalhar e viver em unidade harmoniosa. 

Vimos que os proletários romanos não viviam do trabalho, mas das esmolas que o governo distribuía. Assim, a exigência, pelos cristãos, da coletivização da propriedade, não diz respeito aos meios de produção, mas aos bens de consumo. Eles não pediam que a terra, as oficinas e os instrumentos de trabalho se tornassem propriedade coletiva, mas apenas que tudo deveria ser repartido entre eles, casas, roupas, alimentos e os produtos acabados mais necessários à vida. Os comunistas cristãos não se preocuparam em inquirir acerca da origem destas riquezas. O trabalho de produção recaiu sempre sobre os escravos. O povo cristão desejava apenas que os que possuíam riquezas abraçassem a religião cristã e fizessem de suas riquezas propriedade comum, de modo que todos pudessem gozar destas coisas boas em igualdade e fraternidade. 

Foi, na verdade, deste modo que as primeiras comunidades cristãs se organizaram. Um contemporâneo escreveu:

"Estas pessoas não acreditam em fortunas, mas pregam a propriedade coletiva e nenhuma entre elas possui mais do que as outras. Quem desejar entrar na sua ordem é obrigado a pôr a sua fortuna como propriedade comum a essas mesmas pessoas. É por isso que não há entre eles nem pobreza nem luxo - todos possuindo tudo em comum, como irmãos. Não vivem numa cidade à parte, mas em cada uma têm casas para eles próprios. Se quaisquer estrangeiros pertencentes à sua religião aparecem, repartem a propriedade com eles e podem se beneficiar dela como se fosse propriamente sua. Essas pessoas, mesmo que desconhecidas anteriormente umas das outras, dão as boas-vindas uns aos outros e as suas relações são muito amigáveis. Quando viajam não levam nada senão uma arma para se defenderem dos ladrões. Em cada cidade têm o seu administrador, que distribui roupa e alimento aos viajantes. Negócio não existe entre eles. Contudo, se um dos membros oferece algum objeto de que ele precisa, recebe outros em troca. Mas também cada um pode pedir o que precisa, mesmo que não possa dar nada em troca".   

Lemos nos Atos dos Apóstolos (IV 34, 35) a seguinte descrição da primeira comunidade de Jerusalém: 

"Entre eles não havia ninguém necessitado, pois todos os que possuíam terras ou casas vendiam-nas, traziam o produto da venda e depositavam-no aos pés dos Apóstolos. E a cada um era distribuído de acordo com a sua necessidade".        

 Em 1780, o historiador alemão Vogel escreveu quase a mesma coisa acerca dos primeiros cristãos: 

"De acordo com a regra, todo cristão tinha direito à propriedade de todos os membros da comunidade; caso quisesse, podia pedir que os mais ricos dividissem sua fortuna com ele, de acordo com suas necessidades. Todo cristão podia fazer uso da propriedade dos seus irmãos; aqueles que possuíam qualquer coisa não tinham direito de recusar o seu uso aos irmãos. Assim, os cristãos que não tinham casa podiam exigir do que tinha duas ou três que os recebesse; o proprietário conservava para si apenas a própria casa. Mas por causa da comunidade de gozo dos bens, tinha de dar-se habitação àquele que não a tinha".

O dinheiro era colocado em caixa comum e um membro da sociedade, especialmente escolhido para esse fim, dividia a fortuna coletiva entre todos. Mas isto não era tudo. Entre os primeiros cristãos, o comunismo foi levado tão longe que eles tomavam as suas refeições em comum. A vida familiar era portanto abolida; todas as famílias cristãs, numa sociedade, viviam juntas, como uma única e grande família. 

Para terminar, acrescentemos que certos padres atacam os sociais-democratas alegando que somos a favor da comunidade de mulheres. Obviamente, isto é uma grande mentira, proveniente da ignorância ou da ia do clero. Os sociais-democratas consideram isso uma distorção vergonhosa e bestial do casamento. E contudo esta prática foi usual entre os primeiros cristãos.

Deste modo, os cristãos dos séculos I e II foram adeptos fervorosos do comunismo. Mas este comunismo era baseado no consumo de produtos acabados e não no trabalho, e mostrou-se incapaz de reformar a sociedade e de pôr fim à desigualdade entre os homens e de derrubar a barreira que separa ricos de pobres. Por isso, exatamente como antes, as riquezas criadas pelo trabalho ficavam num restrito grupo de possuidores, porque os meios de produção (especialmente a terra) permaneciam propriedade individual, porque o trabalho - para toda a sociedade - era fornecido pelos escravos. O povo desprovido de meios de subsistência, recebia apenas esmolas. 

Enquanto uns poucos (em proporção com a massa do povo) possuírem exclusivamente para seu próprio uso todas as terras cultiváveis, florestas e pastagens, os animais do campo e as casas de lavoura, todas as oficinas, ferramentas e materiais de produção, e enquanto outros, a imensa maioria, não possuir nada do que é indispensável na produção, não pode haver qualquer espécie de igualdade entre os homens. Em tais condições, a sociedade, evidentemente, encontra-se dividida em duas classes, os ricos e os pobres, os do luxo e os da pobreza. Suponhamos, por exemplo, que os ricos proprietários, influenciados pela doutrina cristã, oferecessem para distribuição ao povo todas as riquezas que possuíam em forma de dinheiro, cereais, frutas, vestuário e animais. Qual seria o resultado? A pobreza desapareceria por algumas semanas e, durante este tempo, a população poderia alimentar-se e vestir-se. Mas os produtos acabados são rapidamente consumidos. Após um pequeno lapso de tempo, as pessoas, tendo consumido as riquezas distribuídas, teriam uma vez mais as mãos vazias. Os proprietários da terra e os instrumentos de produção podiam produzir mais, graças ao trabalho  dos escravos, e assim nada se mudaria. 

Bem, aqui está por que os sociais-democratas consideram estas coisas de um modo diferente dos comunistas cristãos. Eles dizem: "Não queremos que os ricos repartam com os pobres: não queremos nem caridade nem esmolas; ambas as coisas são incapazes de impedir o retorno da desigualdade entre os homens. Não é de modo algum uma partilha entre ricos e pobres que nos desejamos, mas a completa supressão de ricos e pobres". Isto é possível desde que as fontes de toda a riqueza, a terra, em comum com todos os outros meios de produção e instrumentos de trabalho, se tornem propriedade coletiva do povo trabalhador que irá produzir para si próprio, de acordo com as necessidades de  cada um. Os primeiros cristãos acreditaram que podiam remediar a pobreza do proletariado por meio das riquezas oferecidas pelos possuidores. Isso seria deitar água numa peneira! O comunismo cristão foi não só incapaz de mudar ou melhorar a situação econômica, como não subsistiu.

A princípio, quando os seguidores do novo Salvador constituíam um pequeno grupo na sociedade romana, a divisão do pecúlio comum, as refeições em comum e o viver debaixo do mesmo teto, eram praticáveis. Mas, quando o número de cristãos se espalhou pelo território do Império, esta vida comunitária dos seus aderentes tornou-se mais difícil. Em breve desapareceu o costume das refeições em comum e a divisão dos bens tomou um novo aspecto. Os cristãos não mais viveram como uma família; cada um cuidou de sua propriedade particular  já não ofereciam o total dos seus bens à comunidade, mas apenas o supérfluo. As ofertas dos mais ricos dentre eles ao organismo geral, perdendo o seu caráter de participação numa vida comum, em breve se transformaram em simples esmolas, desde que os cristãos ricos deixaram de fazer caso da propriedade comum e passaram a pôr ao serviço dos outros apenas uma parte do que tinham, parte que podia ser maior ou menor, consoante a boa vontade do doador. Assim, no coração do comunismo cristão, apareceu diferença análoga à que reinava no Império Romano e contra a qual os primeiros cristãos tinham combatido. Em breve foram apenas os cristãos pobres - os proletários - que tomaram parte em refeições comuns; os ricos, tendo oferecido uma parte da sua abundância, conservaram-se à parte. Os pobres viviam das esmolas atiradas pelos ricos e a sociedade tornou-se outra vez aquilo que tinha sido. Os cristãos não tinham mudado a bel-prazer dos ricos.

Os padres da Igreja lutaram muito ainda, com palavras escaldantes, contra esta penetração da desigualdade social na comunidade cristã, flagelando os ricos e exortando-os a voltarem ao comunismo dos primeiros Apóstolos.

S. Basílio, no século IV depois de Cristo, pregou assim contra os ricos:

"Miseráveis, como vos ireis justificar diante do Juiz do Céu? Vós dizeis-me: 'Qual é a nossa falta, quando guardamos o que nos pertence?'  Eu pergunto-vos: Como é que arranjastes isso a que chamais vossa propriedade? Como é que os possuidores se tornam ricos, senão tomando posse das coisas que pertencem a todos? Se todos tomassem apenas o que é estritamente necessário, deixando o resto aos outros, não haveria nem ricos nem pobres".    

Foi S. João Crisóstomo, patriarca de Constantinopla (nascido em Antioquia em 347, falecido no exílio, na Armênia, em 407), quem pregou mais ardentemente aos cristãos para regressarem ao primeiro comunismo dos Apóstolos. Este célebre pregador, na sua 11ª  homília sobre os Atos dos Apóstolos, disse: 

"E havia uma grande caridade entre eles (os Apóstolos); ninguém era pobre. Ninguém considerava como seu o que lhe pertencia, todas as suas riquezas estavam em comum. . .uma caridade existia em todos eles. Esta caridade consistia em que não havia pobres, de tal modo que os que tinham bens apressavam-se a desprender-se deles. Não dividiam as suas fortunas em duas partes, dando uma e guardando a outra;  davam o que tinham. Assim não havia desigualdade. Todos viviam em grande abundância. Tudo se fazia com o maior respeito. O que davam não passava da mão do doador para a mão do que recebia;  as suas dádivas eram sem ostentação;  traziam os bens aos pés dos apóstolos que se tornavam os controladores e donos deles e que os usavam, daí para o futuro, como bens da comunidade e já não como propriedade de indivíduos. Por este meio cortaram a possibilidade de glória vã. Ah! Por que é que se terão perdido estas tradições? Ricos e pobres poderíamos todos tirar proveito destes costumes piedosos e uns e outros sentiríamos o mesmo prazer em nos conformarmos com eles. Os ricos não empobreciam ao desprenderem-se de suas posses, e os pobres seriam enriquecidos. . . Mas tentemos dar uma idéia exata do que se deveria fazer. . . Ora, suponhamos - e nem pobres nem ricos precisam de se alarmar, pois eu estou apenas supondo - suponhamos que vendemos tudo o que nos pertence para pormos o produto da venda numa conta comum. Que somas de ouro se amontoariam! Não sei dizer com exatidão quanto isso iria dar;  mas se todos entre nós, sem distinção de sexo, trouxéssemos os nossos tesouros, se vendêssemos os campos, as propriedades, as casas - não falo de escravos, pois não havia nenhum na comunidade cristã e os que houvessem tornavam-se livres - talvez, se todos fizessem o mesmo, creio que conseguiríamos centenas de milhares de libras de ouro, milhões, enormes valores
Bem. Quantas pessoas pensam que vivem nesta cidade? Quantos cristãos? Concordam em que haja uns cem mil? O resto será constituído por judeus e gentios. Quantos não conseguiríamos unir? Ora, se contássemos os pobres, quantos seriam? Cinqüenta mil necessitados, no máximo. O que seria necessário para os alimentar em cada dia? Julgo que a despesa não seria excessiva, se o fornecimento e o consumo da alimentação fossem organizados em comum. Dir-se-á talvez: 'Mas o que será de nós quando estes gêneros estiverem consumidos?' Mas o que? Isso poderia acontecer? A graça de Deus não seria mil vezes mais abundante? Não estaríamos nós fazendo um céu na Terra? Se anteriormente esta comunidade de bens existiu entre três a cinco mil fiéis e teve bons resultados e baniu a pobreza entre eles, por que não resultaria numa grande multidão como esta? E entre os próprios pagãos, quem não se apressaria a aumentar o tesouro comum? A riqueza que é possuída por várias pessoas é muito mais fácil e rapidamente gasta; a difusão da propriedade é a causa da pobreza. Tomemos como exemplo uma família composta de marido, esposa e 10 filhos; a esposa ocupando-se em fiar lã, o marido trazendo o salário do seu trabalho fora de casa; digam-me, em que gastaria mais esta família, se vivendo em comum ou vivendo separadamente? Obviamente, se estivessem separados. Dez casas, dez mesas, dez criados, e dez subsídios especiais seriam necessários para as crianças se vivessem separados. O que é que se faria se se possuíssem muitos escravos? Não é verdade que para reduzir as despesas se iria alimentá-los numa mesa comum? A divisão é uma causa de empobrecimento; a concórdia e a unidade de vontades é uma causa de riquezas.
Nos mosteiros, ainda se vive como na primitiva Igreja. E quem morre de fome ali? Quem é que ali não encontra o bastante para comer? Contudo os homens do nosso tempo temem viver dessa maneira mais do que temem cair ao mar! Por que é que não o tentamos? Temê-lo-íamos? Que grande ato seria esse! Se alguns fiéis, uns escassos oito mil, gostaram, na presença de todo o mundo, onde não tinham senão inimigos, de fazer uma corajosa tentativa de viver em comum, sem qualquer auxílio externo, quanto melhor o podíamos nós fazer hoje, agora que há cristãos em todo o mundo? Permaneceria um único gentio? Nenhum, creio eu. Nós atraí-los-íamos todos e ganhá-lo-íamos para nós."

Estes ardentes sermões de S. João Crisóstomo foram em vão.Os homens não mais tentaram estabelecer o comunismo nem em Constantinopla, nem em parte alguma. Ao mesmo tempo que o Cristianismo se expandia e se tornava, em Roma, depois do século IV, a religião dominante, os fiéis distanciavam-se cada vez mais do exemplo dos primeiros Apóstolos. Mesmo dentro da própria comunidade cristã, a desigualdade de bens entre fiéis cresceu.

De novo, no século VI, Gregório, o Grande, disse:

"Não é, de modo algum, bastante não roubar a propriedade dos outros; é errado conservar para si próprio a riqueza que Deus criou para todos. Aquele que não dá aos outros o que possui é um assassino; quando guarda para seu próprio uso o que proveria os pobres, pode dizer-se que está matando os que podiam ter vivido da sua abundância; quando repartirmos com os que estão sofrendo, nós não damos o que nos pertence, mas o que lhe pertence. Isto não é um ato de misericórdia, mas o pagamento de uma dívida". 

Estes apelos foram infrutíferos. Mas a culpa não foi, de modo algum, dos cristãos desses dias, que na verdade correspondiam mais às palavras dos Padres de Igreja do que os cristãos de hoje. Não foi a primeira vez na história da humanidade que as condições econômicas se mostraram elas próprias mais fortes que belos discursos.

O comunismo, esta comunidade de consumo de bens, que os primitivos cristãos proclamaram, não podia ser posta em prática sem o trabalho comum de toda a população, na terra, como prioridade comum, e  também em oficinas comunais. No período dos primeiros cristãos, era impossível iniciar o trabalho comunal (com meios comunais de produção) porque, como já afirmamos, o trabalho baseava-se, não em homens livres, mas em escravos que viviam à margem da sociedade.

A Cristandade não tentou abolir a desigualdade entre o trabalho de diferentes homens nem entre a sua propriedade. Razão por que o seu esforço para suprimir a distribuição desigual dos bens de consumo não deu resultado. As vozes dos Padres da Igreja proclamando o Comunismo não encontraram eco. Além disso, estas vozes, em breve, tornaram-se cada vez menos freqüentes e, finalmente, caíram no silêncio completo. Os Padres da Igreja cessaram de pregar a comunidade e a distribuição dos bens, porque o crescimento da comunidade cristã produziu mudanças fundamentais dentro da própria Igreja.  


(*) Obra publicada pela primeira vez em 1905 na Polônia. 

Notas:
(1) Cristãos ortodoxos. Até meados do século XI, não existia separação da igreja cristão em ocidental (Roma) e oriental (Bizâncio). Divergências entre os papas, representantes da igreja ocidental, e o clero bizantino, culminaram, em 1054, com a ruptura entre a igreja ocidental (que passou a chamar-se católica) e a oriental (que ficou conhecida como bizantina ou ortodoxa).

(2) Seita religiosa russa.
(3) O termo usado por Rosa Luxemburgo não se refere à classe dos explorados sob o regime capitalista, mas aos cidadãos pobres