A propósito do artigo de Santigo Alba ''Líbia, o caos e nós'' (resposta de J. R. Cervera Grau)

23/09/2011 12:59
 

230911_tripoliRebelión - [J.R. Cervera Grau, Trad. do Diário Liberdade] Há uma frase lapidar e muito certa no artigo de Alba: Nós não decidimos. Não posso estar mais de acordo. São os poderosos os que decidem, e fazem-no por nós.


Aproveitam até nossa mesma ânsia transformadora em forma de revolução pendente, sonhada e ansiada, para vender-nos uma profecia que se cumpre ela própria: "Se os indivíduos definirem as situações como reais, são reais as consequências". Acabou a filosofia, agora é a vez do burdo sociologismo, da manipulação social que calou até nas mesmas mentes com boa intenção de muitos intelectuais que baixaram a guarda do rigor racional para caírem, obviando os fatos, na confusão entre a realidade e o desejo.

Um resumo apressado de todo o acontecido na Líbia tem muito que ver com a profecia auto-cumprida. Aqui pôs-se em marcha uma maquinaria imensa de propaganda e manipulação da que participou mais gente que nunca, para gestar completamente a guerra humanitária e que fosse não só desculpável, mas aceite e padrão. Dispersaram-se todas as energias bélicas, da propaganda e das consciências, na linha de confirmar os apriorismos e criar realidades virtuais que optam a reais pelo mero fato da opinião comum não contrastada. Os indivíduos apressaram-se a definir como real o que lhes contavam... e as consequências para 1% da população líbia assassinada não podem ser mais reais. E por convenção não refletida em quase nada, Alba aponta uma libertação do mundo árabe que não vemos, mais que ele e os que continuam com a profecia que se cumprirá com base na extensão da narração desse discurso.

Do artigo infere-se a normalização deste tipo de agressão manipuladora. E questionando à esquerda monista, dá-se por sentado desde o "monismo" de Alva que não pode ser negado o caráter espontâneo da revolta. Não sei que provas tem o autor ao respeito, mas são esmagadoras as que falam em sentido contrário. Com sua mesma rotundidade e falta de provas, mas sob a luz da suspeita, eu afirmo também que a Tunísia e o Egito são locais "gatopardianos" (pardo é o astuto gato, efetivamente... e a cada vez mais), onde se sabe que provocar mudanças que não mudem nada deixaram a Líbia desprotegida para lhe dar a faca. Desta guerra se gabam seus artífices, e com razão, de que é o novo modelo exportável a todo país que decidirem os poderosos. Falta-lhes acrescentar: E que humanitariamente promoverem certos "progressistas". Se esses que dizem, sem investir qualquer esforço, que temos que aceitar a ideia de que o mundo árabe inevitavelmente será governado pelo islamismo nos próximos anos. E aí os temos com essa alternativa e empenho nisso, contra estados laicos como o Líbia ou a Síria, que devem e podem ser melhorados, mas que em modo algum merecem uma volta ao feudalismo para benefício de Ocidente.

Consumou-se a profecia. Invocaram-se massacres para a população como pretexto para intervir e se fizeram reais no imaginário bem-pensante. Mas resulta que só se estampam em fatos reais com a intervenção da OTAN. Maquinou-se de modo perverso, inventando um conflito armado, idealizando uns rebeldes pré-fabricados e mercenários, falava-se de avanços e rendições como se a invocação tivesse propriedades mágicas das fazer efetivas, se falou da OTAN em missão "proteção dos civis", como se essa denominação tivesse atribuições balsámicas diante do que não é senão um massacre atroz, covarde e vergonhoso. Como se a profecia da proteção fizesse devir por convenção social o crime em salvação. Inventam-se um governo-amálgama de golpistas de mais do que duvidosa trajetória democrática e como profecia que se auto-cumpre por força maior, outorga-se-lhe por via mediática e de pressão diplomática a condição de governo provisório, encurralando o que assim admite como legítimo o direito e os acordos internacionais. Levam-se "razzias" contra seres humanos de cor porque na profecia auto-cumprida disse-se que Kadafi tinha mercenários e eram negros... E todo trabalhador subsaariano ou oriundo de cor, tem portanto que ser linchado para ajustar ao roteiro da tragédia. A profecia é também teatral: Recreia-se um palco em Qatar que represente a Praça Verde tomada pelos "rebeldes", a Praça Verde e Trípoli serão tomaradas inexoravelmente, estava também escrito no roteiro da profecia.

A profecia bíblica tem seu lado cómico: Muitos intelectuais atuaram como "deus ex machina" dessa mesma profecia, contribuíram à consumar. O tirano de dimensões cósmicas, encarnação de todos os males, mas no fundo extraído em conceito de filme de Série B de Fu Manchu; foi a falsa isca que morderam os que se supõe que estão sobretudo para pensar. Não importava o exagerado, o grotesco, a focalização, a ridiculização, o suspeito empenho em mencioná-lo como pano que esconde e legitima os crimes contra pessoas inocentes. Não, o sisudo intelectual entrava bem à vontade neste debate interminável, bem mais cômodo de manejar que o das revoltas assistidas pela OTAN. E em uma profecia com destino manifesto de consolidar-se como verdade revelada, bíblica; nada melhor que um mau diabólico, já que ao final não deixa de ser o filme de série B que nos contaram e todo aquilo da luta do bem e do mal. Por isso o magnicídio e o infanticídio passam sem pena nem glória nem menção no relato dos atores do roteiro profético.

Monismo da esquerda? E como chamamos à conceção do tirano de uma peça?, Como chamamos ao etnocentrismo de pretender de modo direto ou velado que as nossas democracias são superiores moralmente no contexto do Norte de África ao sistema de governo que tinham e querem manter a maioria dos libios? As nossas democracias são melhores, questionadas dentro e ensangrentadas fora pelas guerras de rapina? um tirano de uma peça como o que nos oferece Alba e todos os outros é crível num líder que podia ter ido embora com os seus "milhões" e com tapete vermelho e prefere ficar e resistir de um modo sobre-humano e agónico? É tão "monista" o assunto que aqui só esta Kadafi, não há ninguém detrás, não há apoio do povo, não há inúmeros mortos por culpa dessa resistência férrea a submeter-se diante do Império, duplamente despótico, já que agora têm ajuda e colaboração na práxis de muitos pensadores? Monismo? E como chamamos ao fato de que para o autor tem mais significação o que opine um minoritário Partido Comunista da Tunísia que o que digam os líbios em manifestações em massa de apoio ao seu governo e contra serem "protegidos" pela OTAN? Efetivamente, essas manifestações Santiago Alba não as viu já que aqui nas nossas democracias não se emitiram, desprezavam as razões mais básicas da guerra. Mas é estranho que não as visse, já que insinua que ele está mais perto do terreno que a esquerda maximalista. E no entanto, uns e outros têm ligação à internet.

Monismo. Não será que queremos a história sem arestas, a queremos "engraçada" e como nos sai feia e ensangüentada, em vez de baixar das alturas das disquisiciones metafísicas e esconder a soberba intelectual que não permite admitir que nos equivocámos, optamos por mater o engano? Que opinião merecerá agora ao autor a profecia que pretende se cumprir ela própria no caso da Síria e os seus rebeldes já pré-fabricados também noutro CNT? também apoiaria essa "revolta" por delegação na OTAN? A leitura do seu artigo faz-nos pensar que sim: Para o autor, é aceitável e defensável uma outra intervenção grosseira da OTAN, permitida tanto assim que segundo Alba evita mais danos dos que causa, sempre que existir a conivência necessária com uns "rebeldes" que não importa se são autênticos ou pré-fabricados, nada faz falta pesquisar sobre isto: É suficiente a mera condição de tais por pura adjetivação e a nossa ilusão revolucionária e romântica no nosso empenho de cumprimento da profecia.

Coincidências curiosas: O "tirano" da focalização e da satanização que esgrime a OTAN está desenhado com os mesmos traços grossos que o de Santiago Alba e os rebeldes são também descritos com o mesmo tom de simpatia, não importa que o "rebelde" chefe militar de Trípoli esteja vinculado com Al-Qaeda. Não é suspeita para o autor que desta guerra se gabem os seus artífices, e com razão, de que é o novo modelo exportável a todo país que decidam? O que a faz tão inédita e magnificada senão é o nosso colaboracionismo bem-pensante que não se surpreende da coincidência com os meios empregues pelos belicistas, quando se supõe que são diferentes as expectativas a respeito dos fins perseguidos entre eles e os "progressistas"?

Em definitivo, eu não vejo esse monismo na esquerda consequente. Vejo prioridades. Mais calor humano na compaixão humana que na frialdade oracular dos que sacrificam ou deixam que possam ser imolados no altar da história seres humanos inocentes, como tributo ao espírito absoluto da revolução mundial desde o salão e por delegação na OTAN. Vejo esse monismo na atitude do macaco, embora seja macaco sábio, do que não quer ouvir o que ecoa em seus ouvidos, do que não quer ver embora o tenha adiante dos seus olhos e do que não quer falar do importante, da vida humana como valor supremo acima dos catecismos e dos exploradores que se servem deles; com provas abafantes ao respeito.

E se ao monismo Alba se contesta com o dualismo, alguma coisa não encaixa na sua mais que provada capacidade de pensar. Acho que daesquerda tradicional "monista" apontou-se para uma terceira via, o plano de paz da União Africana que permitisse um alto o fogo e eleições livres. O próprio regime de Kadafi, vendo que lhe caia em cima o Sétimo da Cavalaria, mais os predicadores e inclusive até os tradicionais índios, optou desde o princípio do golpe de estado por aceitar o diálogo. Este dualismo nem-uma-coisa-nem-a-outra, sim é monista: Dá-se ao luxo de de obviar a possibilidade real desse cessar-fogo e dessas eleições. E não sua a camisa ao ver outra vez essas curiosas concomitáncias com todo o aparelho da propaganda e as únicas duas opções que nos brinda: OTAN ou Kadafi.

Há muito de idealismo hegeliano e nada de marxismo em pretender que uma espécie de espírito absoluto da história faz boas e efetivas supostas revoluções por si próprias, que há como uma teleologia que dirige a humanidade para o progresso, a base de revoltas boas por definição e por extensão. Não importam as provas objetivas do apoio externo prévio ao levantamento armado, que os rebeldes se componham em grande parte de fundamentalistas, que não existam esses conselhos operários líbios, que tenha mais mercenários estrangeiros que líbios... a profecia que se cumpre a si própria se dispersa como o espírito absoluto sobre a areia da história e vai se cumprindo como uma pre-destição libertadora. E agora descemos ao chão:

Nunca na história da humanidade existiram diferenças de classe tão grandes, nunca tantas guerras, nunca tanta fome, nunca tanto colaboracionismo bem-pensante e "bonista" fazendo tanto dano agora e amanhã... existe essa linha contínua do progresso humano então? Não a vemos por nenhuma parte. Em qualquer caso, a teimosia dos fatos e a fantasia desumanizada de alguns ideólogos nos faz alguns ansiar aquilo que se atribui a T. Mann: As coisas estariam melhor se Marx lesse Hölderlin.

A partir do marxismo, é a democracia burguesa fundamentalista e com "sharia" a receita de certa esquerda para os parentes pobres de África? está prevista a destruição total de um país para saqueá-lo e devolvê-lo ao paleolítico em algum plano indecifrável do espírito absoluto? Não podemos aceitar nenhum credo nem profecia que sepulte os seres humanos entre entulho. Nada pode desculpar isto, como não merece desculpa Santiago Alba como contador de cadáveres quando afirma que a intervenção da OTAN evitou mais mortos dos que provocou. A nova filosofia sociologista da profecia auto-cumprida é também oracular e estatística? Que sensor ou máquina do conto e da contagem leva o autor a realizar afirmações tão rotundas e científicas? Não só não gostei deste artigo como relato afastado da realidade imediata, como me entristece ver como o nível do rigor intelectual baixou até o extremo de ter que dizer ao autor que a sua imaginação bem-pensante estaria melhor outra vez na redação dos roteiros de programas infantis, como aquele espanhol de tão grata lembrança de "A bola de cristal". Esta profecia auto-cumprida na que nos fizeram incorrer, sim é uma "bola" de cristal... e de neve: Quando cair ao chão, esperemos que só fique feita pedaços ela própria.

Artigo original de Santiago Alba Rico, contestado neste artigo: Líbia, o caos e nós.