A maconha e a revolução democrática. Por Ruy Braga

23/11/2011 14:55

A maconha e a revolução democrática
 

 

Assembléia geral de estudantes da USP, na FAU (fotografia de Hugo Chinaglia Santos)

Por Ruy Braga.

7 de outubro de 2010. Berkeley, Califórnia. Aconteceu mais ou menos assim: tinha acabado de participar de uma manifestação contra uma nova rodada de cortes de verbas estaduais para a Universidade da Califórnia em Berkeley. Atravessei a Bancroft e fiquei esperando minha carona na afamada esquina com a Telegraph. O rapaz que vendia camisetas em uma bancada logo em frente retirou um “baseado” do bolso e começou a fumar. Um policial que reforçara o efetivo da guarda universitária durante o protesto estudantil parou em frente ao jovem, retirou um bloco do bolso, colheu alguns dados, entregando-lhe a seguir o papel anotado com um envelope. Perguntei: “O que é este papel?” O rapaz me disse: “É só uma multa de US$ 60,00. Mas não estou preocupado, pois não moro aqui e não pretendo pagar mesmo…” “Mas e o envelope?” repliquei: “Bem, você sabe, isto é pra colocar o cheque ou o dinheiro. Já está endereçado e pago. Assim, você só enfia em uma caixa de correio”. Mais simples impossível.

Havia me mudado há pouco para a Califórnia. Não sabia nada sobre “Oaksterdã” e seus cafés. Nem tampouco que bastava pagar US$ 150,00 por uma consulta médica pra sair com uma receita e comprar maconha legalmente. Também não sabia que a Universidade da Califórnia lidera o campo de pesquisas sobre os usos terapêuticos da maconha. Isto foi bem antes de decidir me engajar na campanha pela aprovação da “Proposta 19” que, caso tivesse sido aprovada, legalizaria totalmente a maconha no “Golden State”, permitindo seu cultivo para fins pessoais, apesar de sobretaxar a comercialização. Uma campanha que obteve a aprovação de 80% dos eleitores registrados na Bay Area (San Francisco, Oakland e Berkeley), além da aprovação de 95% dos estudantes da Universidade da Califórnia em Berkeley. Dispensável dizer que se trata da principal universidade pública de pesquisa do mundo. Uma instituição que se dá ao luxo bastante excêntrico de reservar um estacionamento no campus apenas para laureados com o Nobel – alguns deles, inclusive, já admitiram ter feito uso de maconha.

Dirão os céticos: Berkeley é uma “bolha” plasmada pela migração hippie do final dos anos 1960, somada à influência do “Free Speech Mouvement”, além da presença de marxistas que lá se refugiaram a fim de lutar contra a Guerra do Vietnã. Diria eu: a lei que equipara o uso da maconha em locais públicos a uma multa de trânsito por estacionar em local proibido foi, na verdade, sancionada pelo ex-governador republicano Arnold Schwarzenegger…

27 de outubro de 2011. São Paulo, capital. No campus da principal universidade brasileira, responsável, sozinha, por aproximadamente 30% da pesquisa brasileira, três estudantes de geografia foram presos por policiais militares que assediaram a maior faculdade da USP durante o dia todo. Em resposta, colegas dos cursos de letras, história, geografia, ciências sociais… decidiram ocupar a administração da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) a fim de chamar a atenção para a militarização da universidade.

Na assembléia estudantil ocorrida na terça-feira seguinte, a maioria decidiu desocupar o prédio administrativo e a minoria ocupou a reitoria. Na madrugada do dia 8 de novembro, este movimento foi brutalmente reprimido por mais de 400 policiais da tropa de choque da PM, apoiados por helicópteros e pela cavalaria militar. O contraste com a política sobre a maconha na Califórnia serve apenas para revelar como estamos atrasados em relação ao tema das drogas. Mesmo se compararmos o Brasil a países como Portugal, por exemplo, perceberemos muito rapidamente, que nosso debate é pobre e nossas autoridades políticas, com algumas poucas exceções, tristemente obtusas.

Aliás, a este respeito, vale lembrar que mesmo o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso fez a auto-crítica da política anti-drogas de seu governo, tornando-se um dos mais conhecidos defensores da descriminalização da maconha no país. Infelizmente, Geraldo Alckmin, não seguiu a opinião do presidente de honra de seu próprio partido. Juntamente com o reitor da USP, o governador de São Paulo usou o pretexto de combater as drogas para legitimar o poder autocrático de uma estrutura cujo sentido é ampliar a alienação dos recursos humanos e materiais da USP em benefício do mercado. Contra este projeto, estudantes, equivocados ou não em seus métodos, insurgiram-se nos últimos dias.

Tanto em Berkeley quanto em São Paulo, estudantes estão se mobilizando por mais democracia e contra a mercantilização do conhecimento científico. Eles sabem que o atual sistema político não os reconhece como interlocutores. Ao contrário, os reprime com violência. A diferença é que na Califórnia, o governo estadual não pode usar o pretexto do combate às drogas nos campi para criminalizar o movimento estudantil. E enfrentando interesses poderosos, a juventude, lá e aqui, decidiu adotar o caminho da ação direta.

Se é uma revolução que estamos assistindo, diria se tratar da “revolução da democracia” e não, como a imprensa pejorativamente batizou o movimento uspiano, da “revolução da maconha”. Se queremos saber porquê o governo estadual não reprime o consumo de crack no centro da cidade, mas persegue estudantes fumando maconha no Butantã, se pretendemos perceber o que está por detrás da escala totalmente desproporcional da operação militar montada na semana retrasada, devemos ser capazes de ir além das aparências e mirar a estrutura política autocrática que asfixia a USP. Ao desafiarem este poder, os estudantes foram duramente reprimidos. Por isso, merecem nossa incondicional solidariedade.

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Ruy Braga, professor do Departamento de Sociologia da USP e ex-diretor do Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania (Cenedic) da USP, é autor, entre outros livros, de Por uma sociologia pública (São Paulo, Alameda, 2009), em coautoria com Michael Burawoy, e A nostalgia do fordismo: modernização e crise na teoria da sociedade salarial (São Paulo, Xamã, 2003). Na Boitempo, coorganizou as coletâneas de ensaios Infoproletários – Degradação real do trabalho virtual (com Ricardo Antunes, 2009) e Hegemonia às avessas (com Francisco de Oliveira e Cibele Rizek, 2010), sobre a hegemonia lulista. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às segundas-feiras.

 

Fonte: Blog da Boitempo